Um Homem Bateu Em Minha Porta
As lendas mais assustadoras são sempre aquelas de que não se tem provas. São os sussurros inseguros em uma noite tempestuosa e os pequenos trechos esquecidos em cartas. As lendas urbanas que ninguém sabe a origem e que pouco se conhece a respeito de seus personagens, são as únicas que são reais. Porque ninguém nunca vive para contar a história.
Os antigos (os velhos) contam sobre nunca abrir a porta para estranhos. Você não sabe o que se espreita, as verdadeiras intenções de quem está do outro lado. Isso é um pouquinho mais óbvio para Bela, quando ela acorda no meio da noite com um barulho no quintal, seus olhos castanhos se estreitam e ela tateia a cabeceira da cama, pegando o celular para ver as horas. 03:00.
Bela resmunga ao ver que é tão cedo, apaga a tela do dispositivo e se mexe na cama, procurando voltar a dormir, exceto que ela volta a ouvir barulhos.
É como se houvesse alguém mexendo nas coisas que se acumulam no quintal, cutucando os produtos e demais artigos de lavar roupa com curiosidade ou rasgando o lixo para ver o que tem dentro dos grandes sacos. Está no início do inverno e Bela treme só de pensar em uma pessoa realmente estando do lado de fora.
Mas Bela consegue ouvir o som inconfundível de passos quando, quem quer que seja, se move, ela houve o farfalhar de roupas e não seria exagerado dizer que quase pode ouvir uma respiração áspera. Andando pelo quintal, tocando e mudando tudo que está pela frente, como se procurasse alguma coisa no meio da bagunça de lixo e inutilidades que ela e sua mãe, Sabrina, acumulam ali.
Os olhos de Bela se arregalam ao pensar na mãe, de repente tensa, sabendo que deve avisá-la. E talvez não seja nada, talvez Bela esteja exagerando sobre tudo isso, mas ela continua ouvindo a movimentação e não saber o que está acontecendo é enervante.
Bela se levanta da cama no escuro, procurando com o pé por suas pantufas de ursinho e pelo casaco felpudo que jogou na beira da cama quando foi dormir. Ela não se atreve a ligar a luz do celular ou mesmo a olhar pela janela do seu quarto.
A casa delas é simples. Bela diria que tem formato de I, começando pelo banheiro, então a cozinha, o quarto de sua mãe e o seu quarto. Elas não tem uma sala. Existem duas janelas, uma em cada quarto e a única porta fica na cozinha. Do lado de fora existe um quintal amplo para elas poderem lavar suas roupas, relaxarem e plantarem. Bela gosta de morar ali e é por isso que está muito chateada quando cutuca sua mãe para avisar que:
— Tem alguém lá fora.
Sabrina tem olhos castanhos iguais aos da filha e eles se arregalam quando é acordada por essa frase. Seu coração dispara e ela engole o ar por um momento. Sem saber o que está acontecendo, ela sente vontade de brigar com a adolescente, porque Sabrina se assusta fácil e Bela sabe disso.
— Não quero te assustar — Bela diz quando a mãe não responde. — Mas tem alguém lá fora — repete com um pouco mais de seriedade.
Sabrina lambe os lábios secos e percebe que precisa de um pouco de água, ainda meio grogue enquanto processa as palavras da filha. Bela está um pouco impaciente, porque ela está ajoelhada ao lado da cama da mãe, no frio e tem alguém lá fora. As duas gostariam de voltar a dormir.
— Adulta — Bela cutuca sua mãe na bochecha. — Faz alguma coisa.
— Criança — Sabrina murmura, ainda com os olhos fechados e se aconchegando um pouco mais na cama. — Quem tá lá fora? — pergunta de forma embolada, um bocejo cortando o final da frase.
— Eu não sei, acho que é o Dave — Bela sussurra para a mulher e consegue ver quando sua linguagem corporal muda para uma mais atenta.
Sabrina se senta na cama, atentando os ouvidos para os sons, a cidade está dormindo, o que significa que ainda não há sons de carros e motos passando, pessoas caminhando pela calçada e até mesmo seus vizinhos estão mortalmente quietos.
Sabrina também consegue ouvir e atestar que, sim, tem alguém lá fora.
— Você olhou? — pergunta a Bela, também sussurrando.
Bela balança a cabeça, apenas para lembrar que não pode ser vista no escuro, mas sua mãe a entende mesmo assim.
— Vamos olhar? — a mulher questiona, um misto de expectativa e insegurança brincando em seu peito, sem saber se é mesmo o namorado que está do lado de fora. — Acha que é ele?
— Foi o que eu disse, não foi? — Bela retruca, subindo na cama. — Aposto que voltou para pedir perdão.
— Mas tá tarde.
— As pessoas se arrependem em momentos estranhos — dá de ombros, aproximando-se da janela que fica bem em cima da cama, coberta apenas pelas cortinas marrons e trancada por um cadeado.
Sabrina se aproxima, colocando uma mão nas costas da garota. Bela não sente mais tanto medo agora que não está sozinha e não fraqueja quando afasta a cortina e olha pela fresta da janela.
— Oh! — exclama com surpresa.
— O que? Que foi? — Sabrina se agita, empurrando Bela para ver também. — Oh — ela solta quando olha para fora. — Não tem ninguém.
O quintal está do mesmo jeito que elas deixaram. A mesa de plástico que fica embaixo da janela continua no mesmo lugar, assim como as três cadeiras ao redor dela. Em um dos cantos tem uma grande lata de lixo intacta e na outra ponta uma máquina de lavar e muitos produtos do lado, todos no lugar onde foram deixados.
Muitas folhas cobrem o azulejo, vindas das árvores da vizinha e não há absolutamente nada de errado com elas, com as toalhas no varal ou o portão que permanece trancado, uma parte da rua podendo ser vista e confirmando que não tem pessoas ou veículos passando, não existe gatos ou guaxinins, porque estamos no Brasil e a única coisa que cutuca nossas lixeiras é o bicho de Manuel Bandeira.
— Acha que foi embora? — Bela pergunta, seu tom neutro, saindo da cama e acendendo a luz.
O rosto de Sabrina se enruga com a claridade repentina, saindo de perto da janela para olhar a filha. Bela tem 17 anos, é magra e alta e Sabrina nunca se cansa de falar que sua meta é ter o corpo como o dela. Bela tem cabelos cacheados e castanhos que se mantém presos por uma piranha e apontam para todas as direções a essa altura da noite, em seu rosto existem restos de pomada cobrindo suas bochechas e seus olhos também estão fechados para se protegerem da luz opressora.
— O que aconteceu com a sua cara? — Sabrina brinca, rindo da expressão ofendida da garota.
— Você não está muito melhor — Bela retruca, analisando a mãe que tem os cabelos curtos soltos e embaraçados, usa uma camiseta horrível de alguma marca de bebidas aleatórias e em seu olho direito o roxo feio de um hematoma cobre a pele, parece um pouco melhor do que a noite anterior.
Sabrina ignora a risadinha da filha, levantando da cama para ir ao banheiro, em seguida ela bebe sua água e sai de casa para checar o portão. Quando pisa no lado de fora está frio e Sabrina não acha que está exagerando quando diz que pode sentir os seus ossos doerem com a temperatura, encolhendo-se dentro de seu casaco e verificando o trinco e a corrente do portão. Estão intactos, ninguém mexeu ali desde a última vez que ela verificou.
Ela ainda se sente estranha, como se houvesse alguém a observando e não é Bela, que a olha pela janela. Alguma coisa está próxima, alguém espreitando pelos cantos ou observando de longe. Um arrepio sobe por sua espinha com o pensamento, sua cabeça se virando de um lado para o outro a procura de alguma coisa que confirmasse isso.
Um ligeiro desconforto se instala em seu peito ao olhar para a porta de casa aberta, sabendo que se houvesse mesmo alguém ali fora tinha acabado de ter a chance de entrar.
Sabrina sacode a cabeça e volta para dentro de casa, está frio e ela só pode agradecer internamente o fato de estar de folga.
— Cama? — Bela pergunta assim que vê a mãe entrando e trancando a porta.
— Que tal um lanche antes? — sugere, sorrindo cúmplice para a filha.
Dez minutos depois, Bela e Sabrina estão comendo duas fatias de pizzas deixadas na geladeira no último final de semana.
— Vou beber porque tô nervosa com tudo isso, nervosa, nervosa, nervosa — Sabrina explica quando pega uma lata de cerveja. — Vai querer beber o quê?
— Suco, sua alcoólatra — responde risonha. — E pega ketchup.
Sabrina cantarola com metade do corpo dentro da geladeira, pegando o que precisa e indo se sentar na mesa. Apenas a luz da cozinha está acesa agora, o único som vindo do mastigar em suas bocas.
— O que você faria se fosse ele? — Bela pergunta, referindo-se a Dave.
Dave, o ex-namorado de Sabrina e padrasto de Bela, a situação é delicada e elas ainda não conversaram muito sobre o que pensam dele agora que ele deixou de ser o Dave Legal para se tornar o Dave Ilegal. Andando por aí de um jeito estranho, perseguindo as duas onde quer que vão e controlando suas vidas, dando ordens e gritando coisas ruins para qualquer um que tivesse ouvidos para ouvir e olhos para ler seus lábios.
— Não sei — Sabrina franze o cenho na direção da sua pizza, como se a existência do pepperoni a incomodasse profundamente. — Ele ainda tem a chave, se fosse o Dave ele teria entrado.
Um silêncio recai sobre elas, sem saberem como falar do que aconteceu. Ninguém tem certeza do que falar ou como reagir quando um namorado amoroso adquire uma fúria assassina e sai batendo em tudo que se mexe, fala ou respira. Tirem as crianças do caminho!
Os barulhos voltam a acontecer em algum momento entre a massa e a borda da pizza e as duas se encaram com olhos arregalados, correndo para a janela mais próxima para olhar. Não há nada.
Elas se afastam da janela e a movimentação volta a acontecer. Como se só existisse quando não estão olhando ou a pessoa fosse apenas muito boa em se esconder.
— Você olhou o teto? — Bela sussurra para a mãe.
— O que? Por que eu olharia o teto?
— Pessoas se escondem no teto — ela balança as mãos de forma exasperada. — Eu me esconderia no teto.
Sabrina ignora a filha, saindo de perto da janela para procurar alguma coisa que possa iluminar o quintal. A lâmpada do lado de fora estava queimada e ela se arrepende por não ter pedido ao Dave Legal para trocá-la.
Suas mãos estão tremendo enquanto procura por uma lanterna na gaveta da cozinha. Os barulhos diminuíram, mas ainda existe alguma coisa lá, ela sabe que sim. Como quando estamos de olhos fechados, mas sentimos a presença de alguém entrando no cômodo ou quando estamos sendo observados, apenas sabemos disso. Tem alguém lá fora. Talvez seja mesmo um guaxinim. Quem duvidaria disso a essa altura?
Sabrina polpa um grito quando ouve algo cair do lado de fora, gritando para Bela ir olhar, mas Bela não quer fazer isso, o medo gela seu corpo muito mais que o frio, o peito apertado como se respirar fosse impossível, como ela poderia, com alguém em seu quintal.
O que essa pessoa poderia querer? Sua mãe está certa, Dave tem a chave, se ele quisesse entrar já teria feito. Então quem ou o que está lá fora? Respirando desse jeito tão alto e ofegante que é possível ouvir do lado de dentro? Passos pesados esmagando o restante das folhas do outono e entregando sua movimentação de um lado para o outro no quintal.
Bela puxa a respiração com força, tentando se acalmar, torcendo para que seja apenas um ladrão habitual e não um fantasma. O pensamento infantil de que os mortos fazem mais mal do que os vivos.
Sabrina grita de novo para que Bela vá olhar o que está acontecendo quando mais alguma coisa cai no chão. A cabeça da mulher está cheia e ela bate os punhos nas laterais da gaveta quando não acha a lanterna.
Voltando para o quarto, Sabrina encontra Bela sentada na cama, a luz está acesa e ela tem uma expressão perdida no rosto, sem saber como reagir. Sabrina corre para olhar pela greta da janela, mas ainda não há nada, apenas o claro vestígio de que alguém passou por ali devido a dois produtos de limpeza derrubados no chão, manchando parte das folhas de azul e rosa elétrico no meio da noite escura, iluminada apenas pela lua crescente no céu e os postes da rua. Sabrina coça a cabeça com irritação quando se afasta da janela e volta a ouvir o andar quase imediatamente.
— Pelo menos não tem sons de correntes se arrastando, né? — Bela tenta sorrir para a mãe, embora seus pensamentos estejam confusos e ela queira muito apenas voltar para cama e dormir.
Sabrina se senta ao lado da filha, passando um braço por seus ombros de forma acolhedora. Do lado de fora, passos se arrastam de um lado para o outro, sem tomar qualquer atitude, sem querer entrar ou roubar. O cadeado do portão ainda está intacto e, fora os produtos de limpeza derramados, não há qualquer sinal de que realmente alguém esteja caminhando pelo quintal. A cabeça das duas, mãe e filha, está girando com hipóteses do que elas devem fazer.
— Vamos ligar pra polícia — Sabrina diz confiante.
— E dizer o que? — Bela zomba. — Alô, polícia? Tem alguém invisível no meu quintal.
Sabrina suspira em resposta, tentando manter sua respiração estável enquanto o pânico toma conta dela. Precisam fazer alguma coisa.
— Vamos sai então — Sabrina decide. — Não sei quem tá lá fora ou se tem mesmo alguém, mas não vou conseguir dormir aqui hoje não, vamos pra casa da sua vó.
— Mas e a nossa casa? — Bela protesta quando vê a mãe se levantar e pegar uma bolsa que elas mantém a fácil acesso para viagens eventuais.
Sabrina começa a jogar algumas peças de roupa dentro da bolsa e acena para que Bela se apresse. As duas tropeçam entre si nos próximos minutos, correndo de um lado para o outro da casa em busca de fazerem as malas, os rastejar de passos no quintal parecendo acompanhar seus movimentos.
Elas não poupam um grito quando um carro passa na rua, jogando momentaneamente a luz do farol no quintal e iluminando quem está lá fora, de forma que sua sombra deformada pisca por um momento no quarto, transpassando o vidro da janela e as cortinas finas.
Malas feitas, cabelos mais ou menos arrumados e sapatos trocados, elas olham mais uma vez para fora e garantem que não há ninguém. Luzes dos quartos apagadas, elas se dirigem e param ao perceberem:
— Onde tá a chave? — Sabrina olha de um lado para o outro, confusão em seu rosto.
— Não está com você? — Bela engole em seco, olhando entre a bagunça de pizza meio comida e contas para pagar em cima da mesa. — Onde você colocou depois que entrou?
— Eu... — Sabrina começa, mas não sabe como terminar a frase.
Ela se dirige para a porta, trancada. A chave não está no chão ou em cima dos armários, nem mesmo nos quartos ou já dentro da bolsa. Sabrina sente que está enlouquecendo, gritando por cima do arrastar de passos do lado de fora para que Bela ache a maldita chave.
— Está ficando mais perto — a filha nota de repente, parando sua busca para apontar para a porta.
Sabrina se levanta do lugar onde está sentada, indo ficar ao lado da filha para observar a porta, pela abertura de baixo elas conseguem ver o claro sinal de alguém parado ali, pés com sapatos pesados que param na frente da porta por um segundo e então voltam a andar.
Elas conseguem acompanhar o movimento, ver a sombra seguir para a janela do quarto de Sabrina e então para o quarto de Bela. E quando elas olham por baixo da porta não há ninguém.
— Quem está aí? — elas gritam, mas ninguém responde.
Apavorada com o que pode estar acontecendo, Sabrina deixa Bela cuidando da busca pela chave e com as mãos trêmulas corre para o telefone, onde procura pelo número de Dave com urgência.
— Oi — uma voz masculina responde no telefone depois de cinco toques.
A respiração de Sabrina para completamente agora, sem saber como prosseguir, o que falar para o homem do outro lado da linha. Ela ainda ouve os passos do lado de fora e nenhuma voz, isso dá a ela a certeza de que não é Dave quem está lá e ela não tem certeza se isso é bom ou ruim.
— Sabrina? — o homem no telefone pergunta com a voz grogue de sono. — Sabrina, é você?
Bela consegue ouvir, no silêncio da noite, a voz que vem do telefone e corre da cozinha para o quarto da mãe, sem acreditar que ela tenha ligado para Dave.
— Como você pode fazer isso depois de tudo que ele fez — Bela reclama, aproximando-se da mãe.
— Bela? É você? — o homem pergunta ao ouvir a voz da garota no fundo. — O que está acontecendo? Vocês estão bem?
E Sabrina não sabe o que fazer, o que dizer. Ela está com tanto medo, porque da última vez que ouviu essa voz, Dave não era mais Dave. Ele não estava sendo mais o marido amoroso e gentil, que sempre a abraçou como se fosse feita de porcelana e a olhando como se fosse o sol. Dave estava fora de si, descontrolado quando começaram a brigar por algo que Sabrina nem se lembra mais. Da última vez que viu Dave eles estavam na delegacia e seu olho ainda sangrava com o soco que ele deu em seu rosto.
— Sabrina — Dave fala de novo, mas dessa vez é diferente, porque a voz não vem do telefone, mas do lado de fora da casa.
Bela e Sabrina se encaram, sem terem certeza do que ouviram.
— Sabrina? — fala e elas se assustam, dessa vez é o Dave do telefone.
— Onde cê tá? — Sabrina pergunta com a voz trêmula.
— Está tudo bem? Sua voz... — a ligação corta alguns pedaços, um chiado incômodo no fundo. — Onde você está? — pergunta com mais convicção.
— Em casa — ele responde como se fosse óbvio.
— Sabrina! — alguém bate na janela e as suas mulheres se assustam, porque é claramente a voz do Dave lá fora.
A ligação é cortada e as batidas na janela começam a ficar mais insistentes, embora o barulho projetado seja fraco, como um toc, toc tímido, a voz de Dave se alongando de forma preguiçosa, sem pressa, embora constante.
Sabrina não sabe o que fazer. Ela de alguma forma acredita em Dave, que ele está em casa e longe dela, não tem como ele estar alí, o portão ainda está trancado afinal. Mas a voz é exatamente igual a voz do homem que a acordou com beijos carinhosos e lhe contou piadas sujas apenas uma semana atrás.
Sabrina quebra nesse momento, começando a chorar sem saber o que fazer e tanto quanto Bela quer ajudar, ela corre para o banheiro e vomita tudo que comeu na noite, seu estômago revirando e a cabeça disparando com tantos pensamentos que chega a doer.
Com o peso inclinado em cima do vaso sanitário, lutando para respirar, Bela sente alguém atrás dela, um vislumbre de um sorriso aparecendo em sua visão periférica. Embora ela não entenda, porque sua mãe está no quarto e o que quer que esteja do lado de fora ainda não entrou em casa, ela pode sentir alguma coisa ali em suas costas e ela fecha os olhos com força, dizendo a si mesma para não olhar para trás.
— Não olhe para trás, não olhe para trás... — murmura repetidas vezes quando se levanta do chão e se inclina sobre a pia, os olhos fechados para não olhar o espelho na frente dela. Ela não quer saber o que tem atrás dela. Não precisa saber. — Devia ter acendido a luz — pensa e se repreende ao perceber que, exceto a do quarto de Sabrina, todas as luzes estão apagadas.
Bela corre para acender a luz do banheiro e da cozinha, seguindo para o quarto, onde sua mãe ainda soluça com as batidas e o arrastar dos passos. Todas as luzes são acesas e Bela se junta a Sabrina na cama, sem saber o que fazer.
Sabrina aperta a mão da filha, sentindo o medo rastejar por sua espinha com o que quer que continue chamando seu nome do lado de fora. Ela quer olhar, mas não sabe se verá alguma coisa e sabe que se ver, se realmente confirmar que há algo lá fora, ela não tem certeza de como vai reagir.
As luzes estão acesas e elas estão juntas, ainda assim elas perderam a chave e o que antes era apenas alguém caminhando, está batendo na janela e chamando por ela, nunca respondendo quando Sabrina grita perguntando quem é ou o mandando embora.
Quando Bela era pequena e a vida era mais simples, elas costumavam ver muitos filmes de terror. Zombando das protagonistas que corriam de um lado para o outro, fugindo de um assassino ou uma assombração, sem nunca fazerem nada realmente útil para se salvarem. Sentada ali, Sabrina não tem mais tanta certeza se essas protagonistas eram mesmo tão burras. Ela não sabe o que fazer.
— Podemos pular a janela, correr pra fora — Bela sugere com um sussurro quebrado, quase chorando também.
— É tarde, se sairmos ele vai pegar a gente — responde com a voz fraca, cansada de tanto gritar e chorar.
Sabrina não tem certeza de como sabe disso. Assim como Bela não tem certeza do por que não deve olhar para trás.
As batidas insistem, bem na janela do quarto de Sabrina. Elas se mudam e ficam no quarto de Bela, mas as batidas as seguem e o nome de Sabrina continua sendo chamado pelo falso Dave.
São cinco da manhã e o sol está nascendo. Elas não ousaram olhar para o quintal novamente, sem saberem se estão loucas ou se quem chama por elas realmente existe. Conforme as horas passam, elas se agarram mais uma à outra, aliviadas quando as sombras estranhas na parede somem aos poucos e alguém batendo na janela não parece mais tão assustador. Elas já ouviram o nome de Sabrina tantas vezes na mesma noite que a palavra ficou desconexa e as batidas que eram assustadoras passaram a ser apenas um barulho irritante.
Não muda o pânico que sentem quando tudo para por um momento. Só por um momento tudo fica quieto, o silêncio conseguindo ser ainda mais perturbador.
Então a maçaneta se move. Elas prendem a respiração, encarando-se sem saberem se correm para a cozinha ou ficam onde estão. Alguém estava tentando abrir a porta. Até agora quem estava lá fora não tinha tentado entrar, mas agora a maçaneta está sendo virada repetidas vezes com uma suavidade quase zombeteira.
É ainda mais aterrorizante notar a chave da porta caída no meio quarto de Bela. Elas passaram quase o tempo todo ali e só agora notaram o pequeno objeto prateado largado ao acaso no meio do chão, parado ali de forma ameaçadora.
Estão cansadas, com frio e com dores em todo o corpo, enjoadas e cheias de confusão, o medo faz suas pernas tremerem e a tensão faz seus músculos doerem com a falta de ação.
Sabrina estica o pé na direção da chave, trazendo objeto para a palma da mão, ela o aperta com forma e espera que Bela diga alguma coisa que vai fazer a diferença, algo que torne a situação menos assustadora, como Bela sempre faz.
Bela está exausta e não consegue pensar, não consegue falar, ela só quer fazer alguma coisa. Só quer acabar com tudo. A incerteza é a pior, seu corpo não sabe se deve se preparar para lutar ou correr, ela não sabe o que vai acontecer, se a coisa vai conseguir entrar em casa, o que ela vai ter que fazer ou o que ela vai ver quando acontecer.
Sua cabeça vem propondo teorias, suposições vindo de antigas lendas e cantigas de roda do que pode estar lá fora. Mas isso importa? Do que adianta saber de onde veio ou o que é, ela só quer que acabe, ela não precisa de respostas, ela precisa de ação, fazer alguma coisa, tomar uma atitude, por isso Bela é a primeira a se levantar.
Sabrina a segue. Ela sabe que deve proteger a filha, porque sem essa menina ela não é nada. Tanto quanto Sabrina sente isso e sabe que lutaria e mataria pelo bem da filha, ela ainda prefere evitar a todo custo que alguém tente machucá-las de alguma forma, isso faz seus passos serem hesitantes quando se aproximam da porta de entrada, a casa ainda bagunçada da noite anterior, as luzes acesas e as bolsas de viagem esperando para serem desfeitas.
É dia e do lado de fora elas ouvem o ir e vir de carros e motos, o barulho das pessoas que passam, até o som de alguns pássaros e é como se o mundo tivesse voltado a girar. O dia trás essa calmaria com ele e isso torna menos assustador chegar à cozinha.
Sabrina pega uma faca na gaveta, a mais afiada e longa que tem, então sinaliza para que Bela abra a porta. As duas estão prontas para lutar ou correr.
Chave na fechadura. Faca erguida. A pessoa do outro lado parece ter ouvido sua aproximação, a maçaneta agora está parada, embora ainda esteja parada em frente a porta.
— Me deixem entrar — Dave diz.
Mas não é Dave, elas sabem disso.
E isso quase faz Sabrina ter esperança, de que o que aconteceu e quem a agrediu, foi esse falso Dave, esse que está na porta da sua casa e lhe roubou uma noite de sono.
Sabrina e Bela se olham, comunicando com o gesto tudo que precisam. Bela gira a chave e abre a porta. Sabrina está pronta para atacar.
Não tem ninguém do lado de fora.
Sabrina grita para o nada e sai de casa, olhando para os dois lados à procura do que estava falando com elas agora mesmo e desapareceu de novo. Sua cabeça dói em confusão. Ela sabe que não estava louca. Bela também ouviu. Elas passaram a noite sem dormir por causa dele. Os produtos de limpeza que foram derramados no chão ainda estão ali. Há um notável caminho no chão livre de folhas depois de tanto ir e vir da figura desconhecida. Aquilo falou com elas. Chamou por elas.
Sabrina grita quando ninguém não aparece, grita para que venha e a enfrente. Silêncio.
Bela a puxa de volta para dentro de casa. Elas fecham a porta, esperando que a figura volte a aparecer, andando ou falando pelo quintal, mas nada acontece. O dia amanheceu e não tem mais ninguém lá fora.
Elas não entenderam o que aconteceu. No começo, Bela tenta entender, ela foi atrás de pesquisar e ler, mas sua cabeça doía tanto que ela desistiu quando se viu em dúvida se o que aconteceu foi um delírio, se teria sido um fantasma ou o homem invisível.
Sua mãe e ela tomaram o café da manhã desse dia com as portas abertas e quando voltou anoitecer elas não conseguiram dormir. Nada aconteceu. Não na casa delas, pelo menos. Dave, o Dave de verdade, desapareceu.
Vizinhos o viram entrando em casa naquela noite. A última pessoa com quem ele falou foi com sua mãe e em seu celular tinha uma ligação de Sabrina, uma que ele nunca chegou a atender. Ninguém ouviu nada em sua casa. Quando amanheceu Dave não saiu para ir trabalhar. O dinheiro, os aparelhos eletrônicos e as poucas coisas de valor ainda estavam na casa. As fechaduras não foram forçadas e as câmeras de segurança estavam limpas. Ninguém entrou ou saiu. Não foram feitas malas, nenhum documento foi levado e nenhuma informação foi dada a ninguém. Não foi roubo, sequestro ou uma fuga emocionante do país. Dave desapareceu.
— Acha que ele estava mesmo lá fora? Naquela noite? — Bela pergunta para sua mãe assim que elas sabem da notícia.
Sabrina tem os olhos apáticos, assustada demais com tudo que estava acontecendo, nervosa com a falta de explicações.
— Não sei — responde devagar, as palavras saindo estranhas na sua mente nebulosa. — Não sei se quero saber também.
Bela faz um som compreensivo, sem ter certeza do que seria apropriado falar em uma situação dessas. Sua mãe perdeu o namorado, alguém que estava se encaminhando para ser o marido e poderia facilmente ser classificado como alma gêmea por qualquer um que olhasse os dois.
Até Dave enlouquecer. E enquanto Bela ainda estava tentando entender isso, talvez esperando descobrir que Dave tinha um gato preto que o levou à loucura ou que ele passou um tempo em um hotel assombrado, não pareciam haver motivos.
Bela podia não entender a dor da mãe, mas ela também sentia a perda. Dave era uma figura paterna, alguém que lhe deu os conselhos e a atenção que seu pai nunca se importou em dar a ela. Lidar com isso estava sendo difícil para as duas, elas estavam confusas e perdidas. Sem saberem o que fazer, qual o próximo passo a seguir.
— Estou feliz por termos aberto a porta — Bela decide falar antes de encerrarem o assunto. — Se não tivéssemos aberto nos sentiríamos culpadas, porque poderia ter sido a última vez que veríamos Dave — ela suspira, incerta se estava sendo clara. — Estou feliz por termos aberto e confirmado que não era ele.
Sabrina sorri com isso, um sorriso torto e pequeno, mas um sorriso. Ela também estava feliz por terem aberto a porta.
Bela não demora para perceber que tem algo de errado com Sabrina.
Em seus 17 anos de vida, Bela viu sua mãe sair e entrar em casa muitas vezes, Sabrina sai de manhã para o trabalho e volta a tarde, sempre com um sorriso no rosto. Dois dias depois da fatídica noite onde o suposto Dave Ilegal estava rondando a casa delas e o tal do Dave Legal desapareceu, a mãe de Bela saiu para trabalhar e quando voltou abriu a porta sem dizer nada.
A pequena mudança deixou Bela assustada no início, um pouco perdida e meio risonha, porque, em 17 anos de vida, todas as vezes que Sabrina voltava para casa, ela abria a porta da frente e anunciava:
— Criança, cheguei!
Essa sempre foi a frase de Sabrina ao colocar os pés em casa. Frase essa que sempre fez Bela revirar os olhos porque, é claro que sua mãe chegou, quem mais poderia ser?
Exatos 17 anos zombando dessa frase, apenas para Bela ter a surpresa de sua mãe chegando em casa em completo silêncio.
As coisas ficaram um pouco loucas durante a semana.
Sabrina parecia transtornada. A mulher que já se assustava com tudo agora gritava por coisas que não existiam e por coisas que achava que ouviu ou viu. Sabrina estava paranóica, verificando fechaduras, trancando os cadeados, colocando correntes mais fortes no portão da frente.
Parecia haver alguma coisa que ela não estava contando, mas a única resposta que Bela teve quando perguntou foi algo genérico como "nada com que tenha que se preocupar". Pelo amor, Sabrina nem mesmo está falando da sua forma normal, a mãe de Bela come os r's do verbos, abrevia palavras e se confunde entre o plural e singular, ela fala muito rápido, fala muito e se repete muito. Sabrina a chama de Criança e não a repreende por colocar os pés na mesa, não se importa quando Bela não lava a louça e não surta com pequenas coisas, como a tampa do vaso aberta ou a toalha em cima da cama.
Dizer que Bela está assustada é eufemismo, ela está apavorada, aterrorizada, assombrada e qualquer outro sinônimo que se possa inserir aqui. Bela sabe que tem algo errado acontecendo, que sua mãe não está bem e ela não tem certeza se é a "raiva" dos cinco estágios do luto entrando em ação ou se tem algo a mais... Se existe algum outro motivo para Sabrina andar tão irritada, calada e só falando quando quer gritar que falta sal na sopa ou que Bela é uma imprestável.
Bela pode tolerar os ataques de nervos. Ela aguenta os xingamentos e as maldições que a mãe de repente está jogando nela, como se tivesse acabado de descobrir que Bela é o maior problema da sua vida. Parece que Sabrina tinha apenas acordado e decidido que os problemas do mundo eram todos culpa de Bela. Agindo toda passiva agressiva, gritando e dando chiliques a cada hora. Bela aguenta isso. A mãe acabou de perder o namorado, é uma fase delicada.
Mas Bela também perdeu com isso, não é justo que Sabrina desconte tudo nela. E agora parece que além da figura paterna, também está perdendo a mãe.
Ainda assim, Bela ficou. Ela não gritou de volta quando Sabrina se rebelou contra ela, chamou sua atenção e lhe disse coisas horríveis, coisas que sua mãe jamais diria, que estavam gravadas e se repetindo em looping na cabeça de Bela, enquanto continuava se perguntando o que mudou na relação das duas.
Bela sobreviveu a semana. E percebeu que não aguentaria mais quando sua mãe lhe deu um tapa forte no rosto por derrubar a jarra de suco no chão.
Sabrina, a Sabrina de verdade, normal e simpática, conhecia a filha que tinha, ela costumava chamar Bela de "mão furada'' e há muito se cansou de ficar zangada quando a garota derruba alguma coisa no chão. Mas dessa vez foi diferente. Sabrina ficou furiosa, as mãos gesticulando sem parar em gestos amplos e agressivos, o rosto franzido enquanto falava sem parar e gritava coisas horríveis para Bela. Sabrina tinha os mesmos olhos e cabelos castanhos, as mesmas pequenas rugas nos cantos dos olhos e a mesma pinta no nariz, era a mesma voz, o mesmo corpo, as mesmas memórias e, ainda assim, Sabrina não parecia ela mesma.
Bela sente como se a queimação suave do tapa tivesse vindo primeiro. Como quando vemos um relâmpago antes de ouvirmos o trovão. Foi fraco, como se zombasse dela.
Para alguém que nunca tinha apanhado da mãe, Bela reagiu bem. Ela não gritou, chorou ou se zangou. Bela foi para o seu quarto e pegou a mesma bolsa que tinha preparado na noite em que havia alguém lá fora e então era ela quem estava fora de casa.
Talvez apenas por essa noite, até que sua mãe se acalmasse e lhe desse alguma explicação do por que diabos bateu na cara dela por derrubar uma jarra de suco. Ela merece uma explicação, sabe que sim.
Bela tenta não pensar no que aconteceu até estar na casa da sua vó. Por sorte ela tem as chaves e sua avó está viajando, ela não acha que saberia explicar o que estava acontecendo na sua casa e qual era o problema de Sabrina.
Bela suspira de alívio quando entra na casa da avó, sentindo-se segura pela primeira vez desde que as coisas saíram do controle. Ela joga sua bolsa no quarto de hóspedes e deita na cama, onde fica lá até o anoitecer, sem ter vontade de ligar a TV para se distrair ou cozinhar alguma coisa para comer.
Bela fecha os olhos, cansada, perdida, sozinha. Existe alguma coisa muito errada em toda essa história, alguma coisa que ela não consegue identificar e que a incomoda profundamente. Talvez seja a falta de respostas. Talvez seja as inseguranças com o futuro. Talvez seja essa sensação persistente de estar sendo observada que ela não sabe mais se vem da sua cabeça ou se realmente existe algo perseguindo ela e a mãe dela, o mesmo algo que mudou Dave.
Como uma criatura sobrenatural que rastejou para fora dos contos lovecraftianos e se instalou em sua família, se divertindo ao vê-los pegando caminhos que não levavam a lugar nenhum. Se escutasse bem, Bela quase podia ouvir as risadas e os sussurros, alguém acompanhando seus passos, aplaudindo seus fracassos, roubando suas respirações.
Bela não se conforma com a falta de certezas. Ela quer saber o que está acontecendo. Mas algumas lendas são simplesmente esquecidas no tempo e não importa o quanto ela tenha procurado, os livros que leu e as pessoas com quem falou, ninguém sabe o que está acontecendo.
Figuras rondando sua casa? São ladrões, é claro.
Seu namorado desapareceu? Não quero me precipitar, mas acho que ele tem outra pessoa.
Pessoas agressivas? Isso é um caso sério de alguma doença psicológica grave, como bipolaridade ou ideologias.
As pessoas não achavam que tinha algo de errado. É normal, elas continuaram dizendo a Bela e Sabrina.
Bela se pergunta se a forma como sua mãe vem reagindo a tudo isso é apenas medo, talvez raiva. Bela não consegue entender. Não entende o que fez de errado, o que está acontecendo, o que vai acontecer. Ela não entende o que é esse medo de olhar para trás e ver algo a seguindo, colado a suas costas o tempo todo. E não sabe o que é esse aperto no peito que sente ao pensar na mãe, como se algo ruim fosse acontecer. Ela não entende os olhos que sente queimarem sua nuca, não entende a mistura em sua cabeça de vozes dos outros e de sua própria voz. Não se entende. E acha que está enlouquecendo um pouco.
Bela dorme. Um sono impreciso. Existem vozes de pessoas que ela não conhece. Rostos indelicados e risadas cruéis. Bela ouve passos se arrastarem. Ela olha para algo que não consegue ver e tocar algo que não está ali. Que loucura tudo isso.
Bela acorda. São três da manhã.
Senhoras e senhores:
— Tem alguém lá fora.
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