8 🍁 Fardo
FAZ sete dias que minha cama não tem o mesmo peso,faz sete dias que apenas eu e Astra ocupamos a mesa de jantar.
A essa altura,Daniel está arrastando as botas nos pedregulhos da Trilha Árida, onde não há árvores e folhagens para se apreciar, nada para se esconder dos próprios pensamentos.
Pensar não deve atormenta-lo,sua mente é ponderada e a sua fala é contida,eu soube desde o primeiro momento em que nos conhecemos: ele é um homem feito de ações.
Meu hálito tem gosto de manhã,mas não demoro a me levantar, já lavei os lençóis,mudei a posição dos travesseiros,mas a lembrança continua estridente dentro de mim,um homem que é meu marido,me forjando um bebê sufocado,eu sufocada debaixo do peso dele,rezando pelo livramento de um sumiço.
Costumo trabalhar na casa até tarde da noite, levo-me a exaustão, é o jeito que encontro para atenuar a visão da cama, não há cama, já que meus olhos estão pesados demais para ver, não há lembrança, já que o cansaço estapeou a capacidade de formar vozes,cheiros e momentos.
Faço uma trança rápida no ninho que está meu cabelo, não me preocupo em deixá-lo asseado e arrumado demais, não há ninguém para vê-lo além de Ast - que acredita veemente que sou bonita. Boba.
Abro mão do corpete também,passarei o dia em casa, não há necessidade,visto um traje simples e cinza,solto nas mangas e aberto do pescoço até os ombros.
Quando chego na cozinha,Astra está roubando biscoitos de leite.
- Desfulfa. - tenta dizer,com a boca cheia de farelos.
Apoio as mãos na cintura.
- Se você comer agora, não terá nada para a ceia.
- Eu não resisti mamãe, são tão bons!
- Sei disso,fui eu mesma que preparei. - sorrio, pondo a água para esquentar na lenha.
- Um dia quero cozinhar exatamente como você mamãe.
- Ah isso você terá que aprender de qualquer jeito.. - suspiro - vai se casar e cuidar da comida para seus filhos e marido.
- E para mim mamãe.
- O que?
- Assim,imagina que meu marido e filhos saíram pra passear e eu tive vontade de comer uma torta de morango, vou cozinhar uma para mim,entendeu?
- E vai comer a torta inteira sozinha?
- É óbvio!
Solto risada,o calor do metal atravessa o pano de cozinha,inclino a panela rapidamente no coador,pronto, chego mais perto para sentir o cheiro,é delicioso.
O riso me escapa de novo, Daniel acha estranho quando sinto o aroma das coisas, diz que eu pareço maluca.
- O café está pronto.
Misturo a metade dele com leite e açúcar para Ast,que segura a caneca pelando com a devoção de uma fiel.
Comemos bolo de cenoura e pão de milho com presunto, bebo meu café puro e quase sem açúcar,gosto de sentir o sabor de verdade.
Apoio as costas na cadeira,percebo que uma das minhas pernas está cruzada e a outra balança no tapete,meu corpo parece mole e lavado de posturas,é como arrebentar miçangas no chão e não se importar em recolhê-las.
- Mamãe?
- Sim?
- Você está mais bonita hoje.
Pisco para ela e mordo um pedaço de bolo,a calda de chocolate derretendo sob os lábios.
- São seus olhos querida.
- O provérbio diz que os olhos não podem mentir. - ela revida,erguendo as sobrancelhas.
Por um instante,os olhos de Ivy Island me atingem o pensamento,olhos tão sinceros que assustam.
- Acho que tem razão. - saio do transe - vamos, coma este último pedaço,ainda falta trocar de roupa para a aula.
Ela faz uma careta preguiçosa e come de má vontade, até sua saída dramática da mesa me arranca uma risada materna.
- Odeio aquela escola! - grita Ast,antes de fazer a curva da cozinha para o seu quarto.
Cruzo as pernas,rindo dela novamente, termino o café e contemplo a manhã,os raios de sol quente e o barulho das folhas acordadas.
Aproveito a paz do vazio,a ausência dos pensamentos, não vai durar muito,mas é o bastante para continuar.
- Quando Pietro voltar, provavelmente estarei em trabalho de parto!
As esposas e Novas Mães presentes acham as palavras da senhora Feire muito engraçadas,eu seria uma pária se não as acompanhasse,então mesmo sentindo o contrário do que deveria,abro um sorriso largo,rezando para permanecer invisível até o resto da tarde.
Nossas reuniões informais acontecem duas vezes por mês,logo nas primeiras semanas,as Madas organizam a reunião e o ponto de encontro é na parte oeste da floresta,longe da casa de Ivy Island.
Depois que Astra foi para a aula,preparei uma cesta de aperitivos e parti para o local marcado,a referência para achá-lo é a parte esverdeada do lago Comprido, os Reverendos dizem que o Grande Céu abomina tanto os nossos pecados que os vomita no lago,purificando seu corpo infinito para escutar nossas orações.
A parte esverdeada é bastante generosa,quanto pecado devemos esconder por baixo dos olhos e do sorriso educado?
Penso no dia da banheira e sinto um frio no estômago,olho para a esquerda do lago,uma parte abundante de verde mais escuro, deve ser culpa minha.
As mulheres continuam conversando,lençóis grossos estão espalhados pela folhagem,cestas de vários tipos prendem os tecidos no chão, duas Madas coordenam o espaço,lêem passagens e escrituras para nós,depois comemos,conversamos e não é raro algumas mulheres chorarem e lamentarem sobre seus maridos na guerra,mesmo que a chance de retorno seja enorme,doze meses é o esperado a se cumprir.
- Confiem no Grande Céu irmãs - diz Liliana,uma Nova Mãe que vez por outra acredita ser a "Mada" do grupo. - Confiem no fruto em seus ventres,eles estarão prontos quando os abençoados estiverem de volta,vamos passar por isso,todas juntas.
Admito que as palavras de Liliana me comovem ao ponto de pousar a mão no ombro de Verônica,uma esposa e mãe que chora bastante.
As mulheres estão com os dedos entrelaçados,unidas no propósito de aguentar o fardo da espera.
Mas então percebo,tarde demais,que Verônica retira minha mão do seu ombro,ela é discreta, faz isso como faria para enxotar um inseto.
Engulo a seco,disfarçando meu embaraço ao pegar uma laranja.
- Todas juntas - dizem as esposas em uníssono.
A Nova Mãe que está a minha esquerda também não oferece a mão, continuo descascando a laranja,mas não é um alívio.
Todas juntas exceto eu,a desafortunada senhora Fraser,que não conseguiu engravidar no primeiro ano de casamento,que um ano e meio depois finalmente deu a luz a uma criança,mas uma menina,um peso de honra para a vila, não um vindouro soldado.
- Ana,por que está comendo no meio das lamentações? Sabe que isso é um baixo-pecado não sabe? - Mada Vera me fita com serenidade.
- Perdão Mada. - abaixo a cabeça,evitando os olhares das outras.
- Não seja tão dura com a Ana,Mada Vera - June,a Nova Mãe e esposa do padeiro,destila veneno pelos lábios - algumas de nós tiveram menos bençãos do que outras,o que abre espaço para alguns baixos-pecados.
Sinto a nuca queimar e cerro os dentes.
- O que exatamente você quer dizer? - revido,sentindo o autocontrole deixar o meu corpo.
Eu sei exatamente o que ela quis dizer,mas anseio pela secura do óbvio, anseio por mais combustível para a raiva.
- Pelo Grande Céu irmã,que hostilidade é essa?
- Peço somente que seja honesta. - encaro June e carimbo seu rosto com ferro quente.
- Ah claro! - ela abre um sorriso mecânico - é o nosso dever como servas do Grande Céu sermos honestas umas com as outras. - sua voz afina - O que eu pretendia dizer Ana,é que o destino lhe atravessou um grande azar! Coitadinha, ao invés de receber uma coisa mais útil para a si e o marido,recebe um fardo.
- Minha filha não é uma coisa para ser útil ou não. - revido sem refletir - ela não é um saco de batatas nos ombros para ser um fardo.
- Ah não, você está certa - June sorri novamente e desejo quebrar seus dentes tortos - é pior do que um saco de batatas,é uma menina que não serve para nada.
Minha cabeça é a borda de uma panela fervente,é a água que borbulha e estoura.
Meu corpo é o sol quente se levantando,minhas botas são dois cascos pisando numa cesta de aperitivos,amassando um papel de identificação, Senhora June Alves,mulher do padeiro e uma grande filha da puta.
- Minha cesta! Minha toalha!
- Senhora Fraser! Controle-se! Agora!
O véu de raiva delirante finalmente desliza para o chão, pisco os olhos,sinto uma vertigem, pedaços de comida deixam minhas solas enlameadas, todas as esposas férteis,todas as Novas Mães com sorte, encaram meu conjunto de pele e ossos com espanto,desdém e falsa compaixão.
Abaixo a cabeça,dominada pela vergonha, lágrimas ameaçam a borda da garganta,mas consigo engoli-las.
- Peça perdão para a senhora Alves,em nome do Grande Céu.
Levanto os olhos,June está horrorizada,mas a maldade que brilha nas íris dela parece mais assustadora.
- E-eu..
- Ana,seja uma boa serva do criador e peça perdão. - Mada Fenícia insiste, há urgência na sua voz,"acabe logo com esse teatro ridículo."
- M-me..me..
Escuto risadinhas ao fundo, June se delicia assistindo minha pequena ruína, mas quando uma Mada se vira na direção dela,as feições ganham a placidez de uma devota as escrituras.
- Por favor senhora Fraser - Mada Vera pousa a mão em meu ombro - daqui a alguns dias vamos todas esquecer isso.
Eu não vou esquecer.
- Eu não vou esquecer. - sussurro,a cabeça um pouco erguida.
- Ana..
- Eu não vou pedir perdão.
Mada Vera suspira,ela sabe que vou ser expulsa das reuniões,pelo menos até decidirem que meu comportamento voltou para os trilhos,ela sabe que June Alves falará sobre meu nome até que os pães do marido consigam ouvir. A Mada ainda fita meus olhos,esperando que haja regresso nas palavras,não há,nem mesmo o estremecer da culpa.
É Mada Fenícia quem dá o veredito.
Estou expulsa.
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