7 🍁 Filhos
OS DIAS passam rápido até a véspera da partida,ela move os homens a recolher pertences,fazer juramentos para suas famílias e compartilhar da mórbida reflexão de ir embora com outros convocados. Uma certeza de retorno preenche seus olhos duros,mas o risco,o lapso imprudente do destino também os espreita por cima dos ombros.
As nuvens pesam diante do céu cinzento,e as cores fortes do outono ganham certa palidez, gosto de pensar que a natureza está sendo generosa em demonstrar respeito, honrando nossas preces de tristeza e saudade.
Observo minha família da janela enquanto preparo o café da manhã, Daniel corre no quintal lameado enquanto Astra tenta pegá-lo, posso escutar as risadas,a estranha moldura que a janela exerce sobre a visão.
Daniel nunca brincou com Ast desse jeito,frequentemente está resmungando pelos cantos a respeito da menina,ou ela fala demais, é agitada demais ou faz perguntas demais.
Hoje,no entanto, talvez sensibilizado pela partida iminente,seu coração tenha permitido leves demonstrações de afeto: a compra do doce favorito de Ast,ouvir suas intermináveis histórias e agora,correr junto dela debaixo do céu.
Sorrio,mas meu coração se parte ao meio,como seria maravilhoso ver Astra e o pai assim todos os dias,uma parte considerável deles que seja.
Mas ao lembrar das reclamações infinitas de Daniel, sinto o gosto amargo da verdade: o filho do vizinho tem basicamente as mesmas características que Astra e meu marido demonstra muito mais carinho pela criança.
Ast está limitada a sentimentos de proteção e raso afeto,já que nasceu menina.
A raiva quase mancha a beleza do momento, mas consigo espantá-la para longe.
Encaro o quintal de relance várias vezes enquanto lavo a louça,depois de alguns minutos,Daniel e Ast correm até a porta da frente, sujos, suados e famintos.
- Limpe os pés querida! - digo para a pequena, flagrando sua tentativa de entrar com lama nas solas.
Astra bufa,é engraçado o barulho de seus pés ao esfregá-los no pano de chão.
- Por que o papai pode entrar sem limpar?
- Porque eu sou o homem da casa - responde ele, bem humorado - e esposas não dão ordens aos maridos.
- Então você não dá ordens a mamãe também?
Daniel solta uma risada curta,que me causa um estranho incômodo.
- É diferente pequena.
Escuto calada a conversa dos dois, concentrada em despejar o mel nos biscoitos, dedico tanto tempo a tarefa que consigo enevoar a raiva latente vindo da garganta,ela nunca me abandona, é um maldito cachorro fiel.
Pelo menos Ast limpou os sapatos, reduzindo bastante meu trabalho para ajeitar a entrada da casa.
Como a tradição ensina,todas as refeições do dia devem ser as favoritas do Abençoado,para que ele tenha um pequeno banquete de paz e alegria antes do nascer do sol seguinte.
Daniel parece contente, embora tenha reclamado das panelas rangendo às cinco da manhã - tive que acordar duas horas antes a fim de preparar tudo: biscoitos com mel, torta de laranja, lascas de frango grelhado em cima de pães recheados com gergelim, ovos mexidos e bolinhos de chocolate, além de outros pratos amados por meu marido.
Ast coloca poucas coisas em sua tigela, obedecendo às minhas ordens de ontem: "amanhã o banquete será especialmente para o papai, como dizem os mandamentos".
Comemos em silêncio, meu marido devora o café da manhã como se estivesse atrasado, faço uma careta para Astra o imitando, ela ri baixinho em resposta.
Assim como os outros abençoados tiraram folga, Daniel passa o dia conosco,depois do almoço,ele e Ast sentam no tapete e fazem animais de papel,o tempo transcorre até ele se recolher na varanda,tirando um tempo para si enquanto lê as escrituras.
Há muito o que se cozinhar e lavar na cozinha, então apenas observo os dois e fico grata por minha menina estar recebendo tanta atenção, infelizmente não consigo oferecer o bastante, faço o que posso entre tarefas da cozinha e do resto da casa.
Perco a noção da hora e vejo que já anoiteceu,uma chuva fina pinga na janela e forma gotas minúsculas,terminado os afazeres, ponho Astra para dormir e tomo o banho mais rápido que consigo, receosa para não ter aqueles pensamentos de novo.
Daniel está sentado na poltrona da sala, aproveito sua ausência para vestir minha melhor camisola, deixar os cabelos presos em tranças e passar uma leve camada de ruge nas bochechas.
A véspera da partida, dizem as Madas, é um período especialmente fértil para se conceber filhos de guerra, espero que meus esforços sejam vistos pelo Grande Céu, que possam agraciar Daniel com um filho forte e saudável.
Sinto o peito doer por Ast, mas as coisas funcionam assim, posso dar todo o amor que ela merece, se o pai não for capaz disso e preferir nosso futuro menino.
Meus pensamentos parecem invocá-lo,já que Daniel entra no quarto no mesmo instante,com roupas de dormir e bocejando, abro um sorriso discreto, ele assente, sem sorrir, mas com as feições tranquilas.
A cama afunda quando nos deitamos, as velas ainda acesas e o silêncio acobertando tudo o que não sabemos dizer um ao outro.
- Ana.
Olho para ele e encontro beleza em seu rosto,é como observar pastos verdes e saudáveis,sem floreios - calmo e direto.
- Sim?
- Nunca foi minha intenção magoar você. - vejo sua garganta engolir a seco. - às vezes os homens são estúpidos e fazem coisas estúpidas, entende?
É a última noite até que ele retorne em doze meses, hoje é a única certeza de sua presença, assim que partir, só me restarão as orações e as probabilidades positivas.
Diante de tudo isso, consigo abrandar a raiva e o ressentimento,consigo sorrir para Daniel de verdade.
- Sim, entendo.
Sua respiração deixa o peito com mais suavidade, os olhos, em um raro evento, pousam gentis nos meus.
- Você sempre foi uma boa esposa sabe..não é astuta ou reclamona, cozinha tão bem que me gabo aos homens da ferraria.. - ele solta um riso baixo - não posso condená-la pelo deslize daquele dia..você só estava magoada,o Reverendo disse para mim certa vez que mulheres tendem a ceder às emoções, acontece.
Engulo a seco, fica mais difícil sustentar o sorriso mas o mantenho por zelo.
- Mesmo que Astra ainda seja nossa única filha, é uma boa menina - Daniel continua - sou leal a nossa família acima de tudo, e eu..te amo Ana.
A respiração escapa pesada e me esmaga,digo o que devo dizer? Justo agora, quando a intimidade entre nós não parece tão distante?
Decido confortá-lo ao invés de ser honesta,minha honestidade só causa rupturas,meu marido detesta rupturas,odeia mais do que tudo paredes rachadas.
- Sinto o mesmo.
Ele abre um sorriso satisfeito.
- Tenho fé que me dará um herdeiro, um rapaz robusto como eu - Daniel aperta minha mão - e diligente feito a mãe.
O corpo dele se aproxima até selar nossas bocas,é estranho já que normalmente não há beijos quando ele realiza os atos de reprodução,consigo suportar o mover dos lábios,ele parece gostar.
Daniel se arrasta para cima de mim,entendo que devo abrir as pernas,é o que faço,quando ele desabotoa a calça,fecho os olhos,o pior está por vir.
A dor é muito forte,sinto seus batimentos e o hálito sufocante,Daniel está menos suave do que das outras vezes,se movendo rápido demais e com certa brutalidade.
Ocupo a mente,deixo o corpo aqui e fujo com a alma,penso na lista de compras, nos remendos dos vestidos de Astra,no que farei para o café de amanhã..
Meus esforços são infrutíferos, a dor se torna mais penosa, as pernas doem e meu interior arde, a sensação é de ser rasgada ao meio.
Continuo em silêncio,reprimo a vontade de chorar. Aguente,é o seu dever,aguente apenas mais um pouco.
Daniel solta grunhidos,afundando meus ossos no colchão,tenho o delírio de pensar em animais,em ursos e rugidos. Mas eu sei o que ele está fazendo,está me forjando um filho.
Cerro os dentes, deixo uma lágrima cair, suplicando pelo fim disso.
- "É patético mas..eu uso cores de acordo com os meus sentimentos - a voz de Ivy Island se faz presente em memória - quando estou triste, o vestido azul é o ideal, quando estou alegre, o amarelo, quando me sinto destemida, o vermelho é a escolha certa"
Outra lágrima pesa no rosto,esta noite eu usaria um vestido púrpura, a mistura da tristeza e da raiva, da ebulição e do vazio.
Lembrar de Ivy Island me faz aguentar até o final,ele pode ter sido bom para ela, mas prefiro acreditar no contrário,saber que suportamos o mesmo homem traz certo alívio - uma dor compartilhada.
O grunhido mais alto de Daniel me faz abrir os olhos, seu corpo tomba para o lado, ele está exausto e eu também,mas é diferente.
Viro de costas, finalmente libertando as lágrimas.
Mas Daniel põe o longo braço sob meu corpo, rastejando palavras em meio ao próprio sono.
- Eu te amo Ana..
Sufoco os gritos em um canto escuro da mente, suplico ao coração que cale as malditas indignações para si.
- Mas eu não te amo. - sussurro, baixo demais para que ele escute - não dessa forma,nem quando me esforço muito.
Sinto o alívio me afagar,então continuo:
- Eu não sei o que é isso,nunca soube.
Daniel murmura, fico assustada, acreditando que ouviu tudo.
- Hum..boa noite Ana. - as palavras rastejam, como se ele estivesse bêbado.
Solto a respiração.
- Boa noite Daniel.
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