6 🍁 Legião de pensamentos
QUANDO volto para casa,Daniel está apoiado na mesa da cozinha,lendo um manual de instruções para ferreiros.
Ao ouvir a porta ranger,ele fisga meus olhos com hostilidade.
- Tive que buscar Astra na escola doméstica - diz entre dentes - onde você estava?
Engulo a seco, tentando formular uma explicação coerente, o que digo agora?
- E-eu..fui buscar frutinhas silvestres para a sobremesa, mas não encontrei nenhuma em boas condições,peço perdão se me esqueci da hora.
Daniel solta um bufo discreto e dá de ombros,Astra surge do corredor,correndo até minha cintura para envolvê-la.
- Olá querida,como foi seu dia?
- Divertido,papai foi me buscar na aula não foi papai?
- Sim,sim - ele meneia a cabeça - Ana me acorde quando o jantar estiver pronto.
Daniel sempre diz algo nas entrelinhas,desta vez é um aviso implícito de que preciso fazer a comida rapidamente. Houveram raras ocasiões em que não temperei uma caça o suficiente ou queimei a receita por descuido,mas até em casos isolados pude sentir uma avaliação severa nos olhos dele.
Daniel nunca falou mal da minha comida, pelo contrário, mas deslizes não são encarados com razoabilidade.
O que é muito curioso,porque ele deslizou o mais longe que pode e eu não pude fazer nenhuma tempestade.
- Não vai agora não papai - minha filha ergue a voz - conta pra mamãe como foi me bus..
- Astra - Daniel a interrompe - estou cansado.
- Mas o senhor..
- Astra,eu já disse que não.
A dureza das palavras finalmente cala a insistência dela, que se encolhe e abaixa a cabeça.
- Desculpe.
Meu marido dá as costas para a cozinha e pisa rápido até o quarto,vejo que Ast está decepcionada,então puxo-a para mim e lhe dou pequenas tarefas.
- Conte tudo para mim - digo,sorrindo porque ela também abre um sorriso.
Astra se debruça na mesa enquanto corta as cenouras,falando sem parar e com entusiasmo, às vezes desconfio se ela é mesmo um fruto das partes minhas e do marido que tenho,Astra não é dura como nós,é flexível,cheia de ideias maiores que sua estatura.
Olho de relance para as canecas no apoio da janela,brancas e estéreis, penso nos desenhos desleixados de Ivy Island e um sorriso involuntário toma meu rosto, seguido por um suspiro dolorido.
Minha filha termina suas tarefas e vai brincar no quintal,observo enquanto ela conversa com Joana,a vaca,depois pega gravetos e faz uma tenda,o que não dá certo e me arranca risadas.
A casa de Ivy Island vem à tona novamente, foi bom colocar um pouco das minhas indignações para fora, mas a intriga inicial que eu tinha por sua pessoa apenas aumentou,transformando a curiosidade em pensamentos constantes sobre a tarde de hoje.
As flores por toda a casa, os cabelos desgrenhados e os ávidos olhos dourados tentando descobrir quem eu era.
Reconheço que é um evento recente, mas já fiz o sugerido por Mada Vera,tudo está resolvido e acabado,Ivy Island nunca mais chegará perto de Daniel e a família está protegida contra tais influências.
É difícil porque continuo massivamente indignada com a indiferença do meu marido, sua calmaria cotidiana mesmo tendo criado trovões dentro da própria casa. O que ele espera de mim? O que deve ser esperado de mim?
Reconheço que a raiva não é um bom sentimento para nutrir,em poucos dias Daniel vai partir para a guerra,ficaremos sem vê-lo por um tempo determinado, Astra já demonstra tristeza, apesar do pouquíssimo tempo que passam juntos,é como o amor funciona.
Amor, os Reverendos sempre nos orientam que o amor conjugal se conquista ao longo do tempo, na cumplicidade do cotidiano, na realização cabal dos respectivos gêneros, é o que acredito, mas talvez meu coração seja duro demais e o coração dele impassível demais para que o amor floresça,dez anos e não passamos de uma semente.
Apesar de não amá-lo ainda,me preocupo com Daniel de coração aberto,sou acostumada as manias e a sua companhia, as vezes,quando me esforço,consigo sentir uma espécie de carinho desajeitado, cobrindo seu corpo enquanto dorme, preparando sua comida favorita aos domingos,ajeitando os fios da frente de seu cabelo, que ele sempre esquece de arrumar.
Talvez alcançar o amor seja como fazer uma longa trilha na mata, testando sua resistência e perseverança, talvez não seja a caminhada tranquila perto de um lago que as Madas insistem em ilustrar.
Jamais questionaria esse talvez é claro,não sou ousada o suficiente para balançar ensinos de gente mais importante do que eu, no entanto, é difícil não pensar na palavra enquanto o dia passa tão devagar e repetitivo.
Patriarcal, lembro da palavra esquisita cheia de r's que Ivy Island usou, minha nuca coça para procurar o significado, mas jogo tal pensamento longe,já escutei boatos onde a ruiva é posta como - além de imoral - herege em suas idéias.
A visita deveria ter durado no máximo cinco minutos, eu deveria ter dito palavras de ameaça e ido embora. Mas não consegui, tudo sobre ela parecia mais interessante do que qualquer coisa que eu conheça.
Aí, queimo o dedo por acidente na lenha,detesto ser acometida por vários pensamentos, ter as certezas testadas pelas dúvidas a todo momento.
Mada Sol já havia me dito - depois de um sermão - que algumas mulheres são amaldiçoadas por uma legião de pensamentos, que as perseguem dia e noite.
"É como pegar coceira - explicou-me - já aconselhamos dezenas de mulheres da vila que se encontram desse jeito, sempre irritadas e gritando com seus maridos, é terrível".
Ivy Island se materializa para mim novamente, as mãos se mexendo com agitação, o tal sarcasmo, o desleixo do cabelo sem tranças.
Teria a maldição se firmado nela? É possível, mas difícil assimilar, Ivy Island parece tudo menos louca e doente, talvez sua maldição seja ter vida em excesso.
- Hoje é carne de porco? - Astra felizmente interrompe meus devaneios,escorada na entrada da porta.
- Sim meu amor - puxo-a até meu quadril, acariciando o topo de suas madeixas. - só preciso de mais alguns minutos e a comida estará pronta.
- Entendi..espero que o papai volte logo da viagem dele.
Astra diz viagem,mas sabemos que é a guerra.
Eu me lembro do conflito enquanto ainda era uma menina,quando me casei e concebi Astra - a guerra acontece desde que me entendo por gente,Daniel havia me preparado para o momento em que cumpriria seu dever,nós sabíamos disso no momento em que nos casamos.
Mas ao contrário de suas colegas de escola e meninos das esquinas, Astra não coloca o pai no retrato de guerreiro mítico, sua maturidade para entender que ele é apenas um ser humano com risco de morrer a atinge de forma muito dolorosa.
- Ele sabe se cuidar, é um homem cauteloso e resistente, só precisamos marcar no calendário os Doze Meses de Vitória, você me ajuda quando chegar a hora?
- Mas é lógico mamãe.
- Boa menina - beijo-a no rosto - agora vá tomar um banho e lave direito as mãos.
- Eu prefiro comer primeiro!
- E eu prefiro que você vá se lavar primeiro, acho que o argumento da mãe vence.
Ast revira os olhos e se arrasta até o banheiro,o que arranca um riso meu.
Cerca de trinta minutos depois a refeição está pronta, Daniel e nossa menina sentam na mesa e comem em silêncio e a vontade, belisco muito durante a preparação da comida, então quase não sinto fome ao compartilhar a mesa de fato.
Sigo as pegadas de hoje como sigo dos outros dias: lavo a louça, ponho Ast para dormir - lendo histórias ou cantando sobre lendas - pego as roupas de Daniel da corda para que ele use no dia seguinte,dobro todas elas e verifico se o resto da casa está em ordem,só depois de cumprir os deveres que posso finalmente tomar um banho.
A casa está em silêncio e as velas me fazem companhia, é um bom momento do dia, gosto de estar sozinha, ligando palavras em pensamentos e à vontade com minha nudez.
Daniel quis ver o meu corpo inteiro uma única vez: quando éramos dois jovens imaturos na noite de núpcias,ele com dezoito anos e eu perto de completar dezesseis. Única vez é exagero da minha parte, mas depois de alguns meses Daniel passou a dizer que eu só precisava levantar a camisola,ficar tirando a roupa não era prático.
O nascimento de Astra o inibiu ainda mais,antes seus toques eram desconfortáveis e brutos, mas ainda representavam certo interesse,acredito que meu corpo tenha mudado,perdera o frescor da juventude,só restando para Daniel um dever rotineiro de pôr em mim um segundo filho,no sentido masculino da palavra.
É uma das razões para sua traição,considerando que Ivy Island possui esse frescor, esse vigor jovem que nunca tive.
Às vezes, em um lapso de loucura e inconsciência, o entendo por cair nos encantos dela,Ivy Island é feita de chamas dos pés a cabeça, chamas aquecem,incendeiam,um beijo capaz de explodir todo o bom senso de um homem.
Pendo a cabeça no vão da banheira e fecho os olhos,tateando meus seios com a delicadeza de uma artesã, sinto o toque no meu ombro novamente, a voz perigosa perto do meu rosto. Um som estranho escapa dos meus lábios, mas me reprimo ao escutá-lo.
Levanto da banheira e cubro o corpo com a toalha,abandono o cômodo como se estivesse infestado de insetos, sinto a respiração falha e os pensamentos correndo para cantos escuros da minha mente, tão envergonhados quanto eu.
Fecho a porta do quarto com força, assustando Daniel .
- O que foi mulher?
Visto a camisola tão depressa que nenhum pedaço de pele fica à mostra, deito na cama com os cabelos meio molhados e me cubro até o pescoço.
Daniel solta um murmúrio confuso e volta a ficar de costas.
- Você anda bastante estranha.
- Eu sei.. - sussurro, invocando rezas que apenas invocam lágrimas.
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