5 🍁 Cores
A VARANDA de Ivy Island é quase do tamanho da minha sala de estar, toda revestida de branco e rodeada por uma cerca baixa, onde rosas pingadas de chuva estão penduradas em cestos.
No canto esquerdo há uma mesa redonda de madeira com duas cadeiras,do lado direito - aonde estou sentada - um sofá pequeno faz companhia a mesinha de centro, com um arranjo de margaridas embelezando a rigidez da madeira.
O que ela faz da vida? Onde conseguiu dinheiro para tanto luxo?
- Perdão pela demora - Ivy Island aparece,fechando a porta da frente - me retirei para colocar roupas mais apropriadas.
O vestido que ela usa é verde pálido com raminhos dourados subindo pela saia, simples mas elegante.
- Não estou lhe fazendo uma visita - rebato - quando a chuva passar irei embora.
Ivy Island solta um riso incrédulo.
- A senhora não acredita em mim não é mesmo? Nunca vai acreditar.
- Não a conheço, como acreditaria? E a reputação diz muito sobre uma pessoa.
- Diz muito sobre o que outros acham de uma pessoa.
Encaro-a rapidamente, viro o rosto logo em seguida, sinto a chuva gotejar para dentro de mim, desfocando um pouco, todas as minhas certezas.
O céu briga com as nuvens agora, quebrando trovões e jogando raios na terra dos mortais, engulo a seco,sempre odiei tempestades.
- Senhora Fraser.. - a ruiva ergue a voz cansada - está tremendo de frio, e um raio pode cair perto da varanda a qualquer instante..seria bom que viesse para dentro.
- Não vou entrar na casa de uma..
- Está bem, entendi! - Island me interrompe, impaciente - eu sou uma puta do norte e minha casa fede a imoralidade, entendi senhora Fraser!
Antes que eu possa falar qualquer coisa, ela me dá as costas e volta para o interior da casa, batendo a porta.
Sinto uma espécie de culpa invadindo meu peito, é algo completamente irracional de se sentir devido as circunstâncias,vê-la magoada deveria me deixar, no mínimo, satisfeita.
Mas a tristeza nos olhos dela se parece demais com a minha,a raiva em sua voz se parece demais com a raiva que me consome todos os dias.
A teimosia no entanto, foi maior que a empatia, com os braços cruzados e sola da bota arranhando a madeira do chão, permaneci na varanda por quase uma hora, até que um raio se chocou contra as margaridas,partindo minha resistência ao medo.
Ando pela varanda, envergonhada de bater na porta, praguejo baixinho os raros xingamentos que ouço de Daniel, sinto um constrangimento absoluto se apoderar de mim, criador mas que dia infeliz!
Outro raio atinge o chão, perto o bastante para fritar meus nervos.
A porta é aberta, Ivy Island me fita com preocupação.
- O céu está pegando fogo senhora Fraser, será que não pode ao menos por um minuto..
- Sim eu aceito!
- O q-que?
- Eu..gostaria de entrar se, hã..for possível.
- Ah, certo, certo.
Ela não faz perguntas sobre minha repentina mudança de opinião, o que traz alívio, toda a situação é um verdadeiro mal estar.
Ivy Island abre a porta, dando passagem para mim, o interior da casa é semelhante a varanda: aconchegante e enfeitado.
Não há divisórias ou cômodos,a cozinha fica no canto direito separada dos sofás e cadeiras por uma bancada de tijolinhos, de frente para a "sala" há uma mesa redonda com uma máquina de costura engatando um tecido azul,o lado esquerdo é mais íntimo, com a cama de casal feita de metal branco retorcido e uma banheira no canto perto da janela.
Certamente é uma casa estranha, mas estranhezas parecem acompanhar Ivy Island por onde ela passa, não deveria estar surpresa.
Ando a passos lentos até o sofá amarelo próximo a cozinha, como se pissasse em cacos de vidro no chão. Ao afundar no sofá, entrelaço as mãos, contendo o nervosismo de ser uma estrangeira no lar de alguém.
- Posso lhe oferecer um chá? - diz a ruiva, fitando minhas mãos trêmulas.
Assinto, mas com olhos frios e queixo erguido, outro trovão estilhaça o céu, respiro fundo, respiro fundo e repito o processo.
Minutos depois, Ivy Island traz o chá e coloca o pires na mesinha de centro, o cheiro é bom,a cor amarelada..de certo é chá de camomila.
- Obrigada. - murmurro, segurando a alça da xícara com força.
Um relâmpago atravessa o limite das paredes, invadindo móveis e corpos com seu clarão,estremeço por um instante, largando a xícara no tapete, é um álivio que eu já tenha bebido todo o líquido.
- De-desculpe..
Ivy Island se ajoelha no chão e pega a xícara, ela levanta os olhos para mim e abre um sorriso comedido.
- Tudo bem senhora Fraser, aqui - sua mão levanta a xícara intacta - não está quebrada.
- Ah, certo..
Island volta a ficar de pé, carregando a xícara para a cozinha e a pondo junto de outras três,cada uma com desenhos diferentes: sol e nuvens, flores e galhos, folhas de outono e flocos de neve.
- Uma para cada estação. - sussurro, mas ela alcança minha voz.
- Sim, eu as pintei.. - Ivy Island começa, um pouco tímida - é algo estúpido e pessoal.
- Eu gostaria de pintar as minhas. - digo, sem pensar muito - mas quando tentei Daniel disse que era bobagem, que gostava das xícaras de uma cor só.
O silêncio que nos semeia agora também semeia o olhar que Ivy Island me dirige, colhemos tristeza e frustração nas respectivas íris,tanto pálidas quanto brilhantes.
- A senhora poderia pintar metade delas. - sugeriu a sua voz desprendida - e deixar a outra metade do jeito tradicional.
- É uma boa ideia.. - abaixo a cabeça por instinto - ..mas meu marido gosta de todas assim, ele não gosta de cores, detesta a primavera por exemplo, diz que só é boa pelo clima ameno.
- E a senhora gosta.
- O que?
- A senhora gosta de cores, não é?
Os sulcos da minha bochecha se levantam, formando algo parecido com um sorriso.
- Cores tem vida própria, transmitem sentimentos próprios, se misturam e criam cores diferentes..eu gosto das cores porque é como estar em um museu a céu aberto,sem precisar pedir permissão para olhar.
Viro o rosto quando percebo que Ivy Island me encara demais, com aquela mesma propriedade de quando estávamos discutindo, mas serena dessa vez, o brilho dos olhos amenizado pela curiosidade.
- É patético mas..eu uso cores de acordo com meus sentimentos - diz a ruiva - quando estou triste, o vestido azul é o ideal, quando estou alegre, o amarelo, quando me sinto destemida, o vermelho é a escolha certa.
- O que o verde significa? - pergunto, encarando o tecido preso ao seu corpo.
- Ah..nada exatamente, eu apenas vesti de última hora para recebe-la.
Solto uma risada estranha, não sei muito bem o que está acontecendo, talvez eu esteja nervosa demais para pensar em como essa situação é descabida.
Tudo fica mais estranho quando ela me acompanha na risada, a risada dela também é estranha, como se compartilhassemos a loucura do que aconteceu, junto ao tal sarcasmo ensinado por Ivy Island uma hora atrás.
- Porque estava de camisola - continuei rindo.
- E com o cabelo parecendo pelo molhado de raposa.
- Certamente eu estava pior,tão assustada quanto um cervo de pernas bambas.
Ivy Island ri mais alto, não sei se sua barriga dói de rir como a minha, mas os olhos dourados estão encharcados nos cantos.
Outro silêncio nos visita, ela fita meu rosto, não com a falsa pena das mulheres de Prudente, mas como se pedisse desculpas por todos os males que me atingiram.
- A primeira pessoa que joguei pedras não foi você, saiba disso.. - confesso, abaixando a cabeça - corri o risco de ser punida por brigar com meu marido, sim, eu briguei com ele, o enfrentei e olhei em seus olhos,exatamente como homens falam com outros homens.. - suspiro - mas todo o ar que eu respirava estava a favor dele, senti tanta raiva que mal pude recuperar o fôlego..eu precisava de um culpado, um pecador para condenar..
- ..então você me escolheu - Ivy Island completa as palavras - era a pessoa mais lógica a ser escolhida, uma mulher estrangeira, de reputação ruim e boatos pendurados nas costas..eu entendo senhora Fraser, entendo mesmo.
- Daniel procurou por você? - pergunto,firme dessa vez.
- Bom..eu fui até a vila entregar um vestido, a Noite de Vigor estava no início, eu sabia que jamais me aceitariam ali, então apenas olhei de longe e voltei aos meus afazeres..mas então..seu marido olhou para mim e eu retornei seu olhar. - Ivy Island vira o rosto, constrangida - todos os homens estavam com as esposas no festival, ele era o único sozinho, imaginei que fosse solteiro.
- Eu estava muito doente, não havia condições de ir.
A ruiva me fita com mais culpa.
- Continue, por favor - peço, ajeitando a postura.
- Então...então eu entreguei o vestido e segui meu caminho, mas Daniel foi atrás de mim até a trilha do bosque,começou uma conversa sobre o quanto a noite estava bonita..e eu acabei cedendo,porque me sentia terrivelmente sozinha.
Fecho os olhos, sentindo um turbilhão de coisas, mas a raiz das coisas é a raiva, é o que mais sinto quando lembro dele,dos olhos duros e trejeitos quietos, raiva de sua prepotência, de seu direito auto-declarado de procurar outras pernas para se enfiar.
Estou com raiva principalmente, porque eu deveria estar triste, arrasada, aos prantos, o mais perto de tristeza que sinto é pelos votos que fizemos quando eu era jovem demais para acreditar neles.
São dez anos de raiva ao invés de tristeza.
Respiro fundo e encaro o rosto molhado por lágrimas de Ivy Island.
- Está tudo bem, o que aconteceu, aconteceu e..
Luto contra os pensamentos de Mada Vera invadindo os meus e consigo dizer:
- ..a culpa não é sua, não tem votos a cumprir com ninguém,já Daniel, tem votos comigo por uma década.
- Eu peço perdão mesmo assim, deveria ter perguntado..
- Ele teria mentido - dou de ombros, resignada - teria inventado qualquer desculpa para se deitar com você.
- Eu..
- É a verdade - solto um riso libertador - é bom dizer a verdade em voz alta.
- Saiba que nunca mais nos encontramos, nunca mais.
- Tudo bem, sei que está sendo honesta, eu que não fui honesta comigo mesma.. - suspiro - mas fica a lição caso vá sair com outro homem casado.
- Não me deito com homens casados senhora Fraser. O caso da vila do norte é..muito mais complicado do que imagina.
De repente tenho vontade de perguntar mais, saber cada pormenor da vida estranha de Ivy Island, mas calo as palavras na garganta.
Não é uma vida estranha, é uma vida imoral - diz uma voz absoluta e interior - Daniel pode ter sido um caso isolado, mas Ivy Island não pertence ao mesmo lugar que você.
Não é uma pessoa completamente ruim, mas ainda é uma completa pecadora.
Os trovões se aquietam e não chove mais, ignoro suas últimas palavras e levanto do sofá.
- Enfim, a chuva passou e creio que já estamos resolvidas, muito obrigada pelo chá - ajeito o corpete - mas preciso voltar aos meus afazeres.
Ivy Island solta um suspiro discreto, um lampejo de esperança sendo tirado dela a força.
Não posso fazer nada, ela escolheu uma vida difícil para se viver neste mundo.
- Eu a acompanho até a porta. - murmurra a ruiva, deslizando pelo chão com seu vestido sem significado.
- Tenha um bom dia senhorita Island - digo, abrindo um sorriso contido ao sair pela porta.
Enquanto desço os degraus,ela me impede novamente com a mão no meu ombro, os raios não parecem ter passado, pois sinto que um atravessa minha pele.
Foi um dia longo, é o nervosismo - reflito,prendendo um suspiro.
- Espere eu..não posso mesmo saber o seu nome?
- O m-meu nome? Por quê?
- Não sei, eu só..gostaria de saber, mas esqueça, estou sendo esquisita.. - ela coça a nuca timidamente.
- Ah,certo..
Viro as costas, descendo as escadas com rapidez, mas antes que Ivy Island retorne para o interior de sua casa, tenho coragem de inflar a voz e calar as vozes da vila sobre mim:
- É Ana.
Não senhora Fraser, quis completar,senhora Fraser é apenas como todos me tratam.
- O que?
- Meu nome é Ana,queria que soubesse,mas não diga em voz alta.
- Como um segredo.
Assinto, enquanto um breve divertimento passeia em meu rosto.
- Como um segredo.
Ivy Island abre um sorriso sincero, e tal sorriso me acompanha por todo caminho de volta para casa.
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