27 🍁 Sereias
ISLAND ameniza o gesto para cruzar nossos olhos,o dourado das íris rapta o meu equilíbrio,nunca os vi sob a roupagem da noite,astutos e brilhantes como as raposas selvagens.
Os cabelos soltos estão desgrenhados e a camisola fina e branca vai até os tornozelos,tenho o ímpeto de dizer o porquê da inapropriada visita, cumprimentá-la devidamente,mas tudo o que escapa dos lábios é um elogio estranho:
– Você está tão parecida com uma fada..
Suas mãos não largam os meus braços,como se temesse a minha fuga.
Ela solta uma risada alta,gotejando fundo em meu estômago,jamais poderia fugir.
– Me abandona e depois faz o elogio mais singelo de todos? Tenha pena do meu coração senhora Fraser.. – Ivy abre um sorriso doce e melancólico.
Sinto o peito arder de remorso.
– Eu sinto muito,sinto mesmo…você não faz ideia do quanto esses dias ausentes tem sido estranhos e as Madas..
– Está tudo bem – Island olha para os lados e para o terreno – acho que é melhor entrarmos.
Do lado de dentro,observo-a fechar várias trancas e uma adaga longa está jogada no tapete da sala. Ela percebe tais gestos e explica:
– Não sabia que era você até abaixar o capuz,a adaga tem sido uma companheira desde que vim morar sozinha no meio do bosque.
Assinto,imaginando as primeiras noites que Island passou sozinha nesta casa,o barulho dos animais,o risco dos viajantes e homens..entendo que a coragem foi imposta a ela,mas não deixo de admirá-la a cada instante por tal qualidade.
– Já que estamos falando em segurança,o que pelos grandes santos deu em você para atravessar a floresta sozinha?
E céus,durante a madrugada?!
Há ternura em sua preocupação,e apenas consigo ter um pensamento incessante: como me fez falta,como tive falta.
– Fui imprudente,eu sei.
– E a pequena Astra?
– Está em seu costumeiro sono pesado.. – respondo – mas por ter a deixado sozinha,não posso demorar.
- Arriscou-se demais Ana...não deveria ter vindo.
– É claro que deveria.
Ivy mergulha em meus olhos,o brilho deles enviesado por uma intensidade cortante,é uma expressão que desliza para dentro de mim e alimenta o ímpeto de aproximar nossos corpos,para que eu possa segurar sua mão e apertá-la afetuosamente entre as minhas.
– Estou a duas semanas e alguns dias asfixiada pelo zelo das Madas,agora estão presentes na minha rotina como ervas daninhas,multiplicando-se sem parar.. – suspiro e engulo a seco – acredite Ivy,minha ausência se deve a estes contratempos e nada além deles..você não faz ideia da falta que senti de sua presença,tão grande que estou aqui,no meio da madrugada escura,feito uma louca.
Island tem as maçãs do rosto tingidas de rubor e um sorriso pleno que a deixa mais bela do que já é,ela segura minhas duas mãos de volta e me abraça novamente,a pele quente como um sopro de verão acolhendo-me inteira.
– Ana,e se alguém viu você?
– Não me importo.
A avidez e calor das íris douradas acompanham seus dedos,que vão e voltam em meu braço,sinto-me vulnerável,hipnotizada,mas não perdida.
Recebo outro abraço,este mais consistente e demorado,as mãos suaves de Ivy apertam minhas costas e ombros,sinto o cheiro de seu cabelo bagunçado impregnar toda noção de realidade,por um instante sinto-a absorver o aroma dos meus cachos,mas os pensamentos estão atordoados demais para se ter certeza.
Faço breves carinhos em seus ombros ao perceber um medo oco cercando a mente,um pavor irracional de corresponder ao seu gesto tão intensamente a ponto de cair, para onde cairia? A mente teme tanto as respostas que as esconde nas sombras mais sólidas,não sou capaz de alcançá-las.
– Me desculpe o impulso.. – Ivy percebe meu súbito desconforto – ..não a vejo faz um tempo considerável,amigas também sentem saudades.
– E-eu entendo,me sinto da mesma maneira.
A frase soa quase imprópria diante do que realmente foi não estar ao lado de Island,mas reprimo este lado obscuro e intenso dos afetos e me aproveito da superficialidade confortável.
– O que mais me indigna é você estar pagando mais caro na mercearia já que não pude ajudá-la.
Ivy solta um riso gracioso,o lapso de uma estrela.
– Foram apenas duas semanas Ana,agradeço imenso,mas sei me virar sozinha.
– Estas duas semanas…você não faz ideia.. – suspiro – fui de excluída a prestigiada num piscar de olhos,parece absurdo diante das coisas que fiz,céus,eu pisei na cesta de uma esposa! Elas me viram andar ao seu lado!..sem ofensas..
– Tudo bem - ouço-a rir - prossiga.
– ..e então..depois de tudo isso ainda recebo bençãos? Não faz sentido..ou talvez eu seja
mal agradecida pela sorte que tenho e..
A expressão de Island permanece estranhamente serena a medida que me escuta,não há intriga em seus olhos, interrompo o desabafo e a encaro repleta de dúvidas:
– Está ouvindo o que digo? Não lhe parece incomum?
Ela desvia o olhar,abraçando a si mesma enquanto um suspiro resignado escapa.
– Deseja que eu seja honesta?
– Céus,mas é claro que sim.
– A natureza dessa honestidade pode te ofender.
– Ivy.. – acaricio seu ombro – ..creio que já passamos dessa fase.
Vejo-a erguer o rosto e me olhar,causando o impacto característico do qual tanto senti falta.
– Acho que..estão tentando afastá-la de mim.
– As Madas? – uno as sobrancelhas – Como se não fazem ideia da nossa amizade?
– Será que não fazem?
- Elas nos viram juntas uma única vez.. – pondero – pensar que um evento isolado seria o suficiente para me perseguir é de fato extremo.
– Você e eu sabemos que Madas podem ser extremas Ana,sentiu na pele tal realidade antes mesmo de me conhecer.
– Elas não fariam isso..não arquitetariam minha inclusão somente para me..separar de você.
Island não diz nada,mas se aproxima e massageia o meu pulso,exalando uma aura de conforto e paciência.
– Você não precisa acreditar em mim, posso estar equivocada..mas esse comportamento, principalmente a meu respeito,já presenciei inúmeras vezes…então voltando à questão inicial,não,não acho incomum que Reverendos e Madas tentem me afastar de pessoas estimadas,eu represento uma imperfeição,um erro,a estátua de blasfêmia a qual nenhuma mulher deve se espelhar...
– ...você não é nada disso para mim. – a interrompo – você não faz com que eu me sinta errada, imoral,Ivy..você ilumina os meus caminhos.
Island suspira,deixando escapar uma lágrima tímida,os olhos são vulneráveis como o menor dos pássaros,batendo as asas para resistir a vida que tenta esmagá-lo.
– Ana…não me diga essas coisas..
Levo os dedos até as maçãs de seu rosto e dissolvo a lágrima contra a pele,neste instante finalmente ultrapasso todas as vozes que me incitam a odiá-la,a tratá-la como a personificação dos males,Ivy existe,é feita de carne,osso e uma alma feita para receber tudo o que é bom.
– Digo porque é a verdade – revido – você não é imoral,você não é uma blasfêmia,você é apenas uma mulher que gosta de estar viva...e nenhuma Mada voluntariosa ou reverendo autoritário vai me apartar de você.
Ivy tem os lábios entre abertos,parte de suas íris brilham e a outra parte é enevoada por uma violência desconhecida, capaz de me dissolver até o fim.
Deixo escapar um suspiro,perdida entre as sensações pulsantes que atingem o meu corpo,parecidas com o momento fatídico da banheira,mas tal semelhança é pálida diante do agora.
– I-vy,você me ouviu?
Ela balança a cabeça lentamente,o cabelo esculpido para cair e dar forma ao rosto – a tortura que é fitá-la.
Meu marido tinha razão. - penso, subitamente, e me condeno em seguida.
– Como não ouvir? – Ivy abre um sorriso frágil – se você fala feito as heroínas dos meus romances preferidos? – ela põe os cabelos atrás da orelha – tenho medo da sua resistência,medo de lhe fazerem mal.
– Creio que já me fizeram mal o suficiente – solto um riso amargo – não deve se preocupar.
– Impossível.
– Ivy,entenda de uma vez,não vou abrir mão de vê-la.
– Céus – o rubor espalha pelos seus poros – você está louca mesmo.
– E você está vermelha – sorrio – como as pimentas.
Ela solta uma risada que escandaliza o meu íntimo,limpo um resquício de lágrima em sua bochecha,que arde feito uma enfermidade.
– Ivy, está febril..
Sigo seu olhar latente,como se desejasse me arruinar,o olhar das sereias e seus mitos de encanto,nenhum homem resistiria a Island,nenhuma criatura,penso que estou fadada a repetir o destino de todos eles.
Mas como eu poderia? Não sou um homem e no entanto..me sinto como um,fraco diante da metamorfose entre a lua e o sol.
– Sinto-me assim a muito tempo - ela sussurra,fito seu peito subir e descer em uma palpável agonia.
Em um movimento delicado,Island leva a mão ao extensão da minha mandíbula e a acaricia,pela primeira vez,me permito ver que seus arcos dourados fitam as minhas feições como eu sempre fitei as dela: um encanto ininterrupto.
Suspiro atordoada,algo ludibrioso se derrama no alto do quadril.
– Doente? – sussurro,como se somente este tom coubesse ao instante.
Ela solta um riso delicado,os olhos parecem me reconstruir.
– Não.
Sinto os dedos gentis e firmes de Ivy puxarem-me feito uma correnteza,fecho os olhos e vislumbro os espíritos da noite quando seus lábios me resgatam.
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