25 🍁 Tortas desmanteladas
A TRANQUILIDADE que permeia o sermão subverte os meus sentidos,as Madas revezam a oratória e as esposas e Novas mães tem ligeiros minutos para expressarem o próprio zelo sentadas entre outras mulheres,um ritual costumeiro ao qual sempre fui grata de fazer parte,mesmo habituada a sentar nos fundos,com os espaços mais desconfortáveis ou apertada entre duas senhoras que não me deixavam ouvir o discurso.
Hoje estou na primeira fileira,apreciando as palavras límpidas e audíveis,acomodada na grama macia e incentivada pelas Madas a dizer o que acho sobre determinada oração ou passagem,a Ana de semanas atrás estaria atordoada de alegria e satisfação, contudo o esforço para segurá-la entre as mãos é um vigor apático,restrito a um sentimento que deveria existir,mas não existe.
Um pensamento previsível me cerca,imagino Ivy Island sentada ao meu lado,erguendo a mão para contestar a Mada centenas de vezes,o brilho astuto dos olhos e a letra terrível escrita nas margens dos livros-instrução.
A mente dissolve tal imagem para dar lugar a uma memória recente, seu corpo pálido agarrado a um vestido rosa,os cabelos um pouco bagunçados,mas de uma maneira própria o suficiente para tornar o rubor em sua face uma visão desconcertante.
"É apenas uma cor bonita" ela me respondeu quando perguntei o motivo do tecido,a frase não faz jus ao efeito de sua imagem,e Ivy é sagaz o suficiente para deixar questões no ar e se divertir às custas da minha inata curiosidade.
– Por que está sorrindo senhora Fraser?
Sou arrancada da introversão rapidamente pela voz branda,porém incisiva,de Mada Célia,as mulheres olham para a cena.
– E-eu..perdão – sorrio,acanhada – estava concentrada nas escrituras.
A Mada franze o cenho,ponderando a suposição do blefe descarado,enquanto eu a fito de maneira reverente, igualmente surpresa por ter lhe rebatido com desculpas falsas.
– Pois bem – ela segura o manuscrito para si – sobre qual passagem está mais concentrada?
Deixo cair o nó preso na garganta,certa de que serei pega em uma mentira,uma mentira dolorosa à consciência: não me lembro das passagens recitadas até agora, não tenho a justificativa da exclusão e desconforto.
Ah Ivy…por que você me é tão intrusiva? Por que se rebela contra este lugar até dentro de mim?
Sou surpreendida quando Gabriela Hondara – na segunda fileira – ergue a mão e intervém na conversa.
– Se me permite a palavra,garanto a você Mada Célia,que a Senhora Fraser é uma das mais diligentes esposas em matéria das escrituras,mas nós a conhecemos e sabemos de sua natureza aérea.
A olhos literais,o comentário de Gabriela soa maldoso,mas a olhos que aprenderam a conhecê-la melhor,entendo que Hondara está empenhada em me livrar de tal situação constrangedora através de seu jeito característico.
O toque de desprezo empregado a mim convence a Mada afinal,o sermão prosseguiu normalmente,e esta é uma das poucas vezes em que ser julgada de forma superficial me trouxe alívio.
Não deixei os pensamentos vagarem no resto da tarde,atenta aos olhos constantes de vigia recebidos tantas vezes, mais intensos devido a boa posição que me foi dada,reprimo um suspiro, consciente da perspectiva em que meu lugar nunca é seguro,será sempre tomado de mim ao menor sinal de ingratidão,ah e como devo ser grata,a todo momento,a qualquer mínima fração de dignidade.
Durante o lanche ao entardecer,quando o sermão já havia acabado,Gabriela aproximou-se com a pequena June nos braços enquanto eu arrumava a cesta de aperitivos para distribui-los as outras.
Hondara provou um pedaço de bolo recheado com mel e murmurou satisfeita.
– Que deus me perdoe a inveja,mas por que você cozinha tão bem senhora Fraser?
– Culpa das ansiedades constantes – respondo num misto de riso – cozinhar traz alívio.
– Pensei em dizer para ficar mais ansiosa,mas isso me tornaria uma pessoa pior? – Gabriela franze o cenho,metade receosa metade bem humorada.
– Creio que não Hondara,você está apenas sendo..sarcástica.
– Sarcástica? – ela não assimila.
– Sarcasmo é como…dizer as coisas em tons contrários ou zombadores.
Gabriela ergue as sobrancelhas assim que entende,June desperta com um choro agudo, ofereço um dos poucos bancos de madeira para que Hondara se sente, ela retira um dos seios de dentro do tecido da roupa e amamenta a filha.
– Se esta é a definição,fui sarcástica por toda a vida e não sabia – Gabriela sorri de canto.
– Ah sobre isso não há dúvidas,como foi que disse a pouco? "sabemos de sua natureza aérea". – imito sua voz.
– De nada a propósito – ela revida– que deus me perdoe mas ficar na primeira fileira é um tormento,as Madas não deixam passar nada.
– É como voltar as tempos de escola doméstica.
Gabriela faz uma careta.
– Não ouse me lembrar destes tempos,eu era um patinho feio.
Uno as sobrancelhas,é difícil imaginar Gabriela Hondara sendo uma criança deslocada.
– Não acredita em mim não é? – ela lê minhas feições – mas é a verdade. Era reprovada em quase todas as matérias e naquelas em que era boa,como a matemática e geometria,não me traziam muito mérito. E você?
A desconfiança ainda me fisga,como se fosse impossível que esta mulher ao qual tanto me dirigiu palavras ácidas estivesse disposta a conhecer-me honestamente. No entanto,os olhos castanhos de Gabriela Hondara são atenciosos quando me encaram,iluminados por um brilho ávido ao descobrir afinidades,decido permanecer receptiva.
– Tive algumas agonias por ser uma filha metade,mas de forma geral passava despercebida,era mediana em todas as matérias.
– Até nas aulas de culinária?
– Infelizmente sim,descobri que era razoavelmente boa em certas coisas quando me casei.
Lembro-me da solidão esmagadora dos primeiros anos, de me sentir internamente desesperada perante a quietude maçante de Daniel e descobrir refúgio no desenho e autocontrole na cozinha.
– Razoável? – Gabriela caçoa – quem me dera ter essa razoabilidade no preparo da comida. Meu marido vivia reclamando.
– Imagino que sinta saudades.
– Não das reclamações,mas de sua pessoa,é claro que sim…embora,que o criador me perdoe pela décima vez, há momentos em que aprecio estar sozinha…e com June,é difícil passar muito tempo com amigas quando se tem um marido em casa.
Assinto,tendo Ivy novamente deslizando através dos pensamentos,indago como seremos amigas quando meu marido retornar,se vai permitir tal relação,expulso essas perguntas no mesmo instante,até a ínfima possibilidade de intervenção em nosso laço me enfurece e amedronta.
– Vocês são muito próximas realmente. – retorno do breve transe. – imagino que nossa aliança a deixe irritada.
Gabriela solta uma risada alta,atordoando a pequena filha,ela a balança num ritmo lento enquanto as pálpebras de recém nascida se fecham em um cochilo.
– Irritada? – Hondara abotoa o tecido do busto – June ainda odeia você por ter esmagado sua cesta de aperitivos.
– Sei que ela é importante para você,mas não me sinto culpada. – digo, surpreendida pelas palavras diretas.
– Não deve sentir – Gabriela revida – veja bem,eu a adoro,mas pense em um pequeno demônio de saia e cabelos loiros? Aí está minha June.
Contive a risada com a mão,e o leve espanto por ter ouvido a palavra "demônio" tão irrefletida nos lábios de uma mãe e esposa influente,a sentença final no entanto,prendeu a minha atenção entre aquelas palavras francas.
Minha June,é difícil ouvir palavras de carinhoso pertencimento vindas de uma Nova mãe ou esposa para outra,a verdade é que talvez eu não tenha percebido o suficiente ou tais gestos sejam sufocados a ponto de esmaecerem em declínio para que prevaleça a vigilância e a hostilidade.
Gabriela parece ter notado meu franzir de cenho depois do riso,por um segundo a ansiedade está evidente em seu semblante.
– Ela me lembra das minhas irmãs, entende?
– Ah, apenas imagino,não tive irmãs,mas gostaria de tê-las.
Hondara alivia a tensão no sorriso,o que me intriga ainda mais efetivamente,reflito rápido em minhas ações supondo que expressei algo rude ou mal educado,mas quando me inclino a pergunta-la, Gabriela é chamada por alguém e se levanta do banco.
– Deus,quase me esqueço,desculpe senhora Fraser,combinei que voltaria para casa mais cedo com a senhora Olivieira,ela precisa ajudar na capela e eu recolher June.
– Não se preocupe,quem sabe conversaremos outro dia.
– Nós vamos – ela abre um sorriso genuíno – e obrigada.
– Pelo que agradece?
– Por ter me dado a chance de provar que sou mais do que uma Nova mãe arrogante.
Devolvo seu sorriso com igual honestidade.
– Disponha senhora Hondara.
– Mas ainda me acha arrogante?
– Provavelmente
Soltamos risada.
– Até mais.
– Até,Hondara.
Por volta de quarenta minutos depois que Gabriela parte,me encarrego de ajudar as outras esposas guardando os utensílios e retirando os lençóis do chão,guardo dois pedaços de torta – uma de limão e outra salgada – dentro de minha cesta da maneira mais sutil,não é educado separar comida para casa após os sermões, mas as tortas não serão minhas,vou levá-las para uma certa ruiva que adora sobremesas.
Prolongo a partida mais um pouco,afim de não me destacar quando for embora e evitar uma acompanhante até a vila, as Madas estão distraídas por uma acalorada discussão sobre um versículo, esposas e Novas mães também conversam em seus pequenos círculos,a sensação de deslocamento atravessa-me em ondas grossas até finalmente se tornar sólida,é hora de ir.
Deixo o espaço do sermão discretamente e caminho até a trilha,ando por bons minutos e sinto a brisa fresca,logo avisto a curva embrenhada entre as relvas que levam para o terreno de Island. Um sorriso largo repuxa minha pele,a vontade impulsiva de soltar os cabelos me assola outra vez,enquanto anseio por ver a expressão dela emoldurando meu rosto.
Os passos ficam mais apressados a medida que me aproximo,mas os pés regridem lentamente assim que escuto o filete de um grito.
Viro as costas,são duas Madas vindo ao meu encontro.
– Senhora Fraser! Como anda rápido!
Quando por fim estão frente a frente comigo,tento esconder a frustração com um sorriso educado.
– Mada Vera e Mada Célia – reconheço-as – peço desculpas,estava tentando ir para casa o mais rápido possível.
– No entanto,este é o caminho mais longo.. – Mada Célia rebate.
Engulo a seco,incomoda pelo tom maldoso.
– A senhora está certa,não prestei a devida atenção.
– Entendo,foi perceptível sua tendência a vaguear durante o sermão, espero que tal ato não interfira em suas bençãos.
Mada Vera percebe meu constrangimento ao fitar-me com uma tímida compaixão e resolve se manifestar.
– Muitas vezes as tarefas nos absorvem a mente não é mesmo? – ela diz – não alimente a culpa,o Criador compreende as falhas humanas.
Mada Célia fita a companheira de soslaio,um olhar que se dá a uma criança petulante,mas ela recupera a falsa polidez rápido,sorrindo para mim o que deveria ser um sorriso acessível,mas a expressão continua intimidadora.
– Bom,de qualquer forma, ficamos chateadas que partiu tão cedo e sozinha,eu e Vera iremos para a capela,se desejar podemos fazê-la companhia.
Escondo um suspiro na garganta,as palavras "se desejar" e o aspecto de convite parece cordial,mas a verdade é estou presa a esta escolha,recusar qualquer demanda de uma Mada acarreta punições sociais dolorosas,passar por isso agora,quando estou em tamanha vantagem,seria o cúmulo da irracionalidade.
– É claro que podem,fico grata pela consideração,muito obrigada. – digo,as palavras têm um gosto mecânico.
– Ótimo então, o que estamos esperando? Vamos.
A Mada Célia toca meu ombro,o conduzindo para frente,não olho para trás mas sinto o caminho para casa de Ivy cada vez mais distante enquanto as senhoras dialogam sobre assuntos menores,presto atenção em uma ou duas coisas para poder assentir e confirmar,minha mente permanece entorpecida até o final da trilha,a raiva infantil sendo repartida em expressões solenes.
Quando chegamos a vila,as Madas seguem seu rumo,volto para casa,sem tempo para retornar pelo atalho,já que preciso preparar o almoço e arrumar a casa.
Encaro os pedaços de torta dentro da cesta,desmantelados e um pouco derretidos,decido comê-los antes que azedem,estranho como exalam o sabor da frustração e de uma brecha de respiro perdida.
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