23 🍁 Livros
AS PALAVRAS, quando estão ao lado de Ivy Island,são um exercício de movimento,nós nunca estamos inertes,as vozes se alteram,com as mãos apressamos as ideias e as risadas transbordam generosas.
Depois da introspecção no tapete,fomos para a cozinha,enquanto ela prepara o café,meus cotovelos estão apoiados na bancada e minha curiosidade investida no livro de capa azul que retirei da varanda
– Sobre o que é este livro? – deslizo os dedos pelo título. Poemas Selecionados de Emily Dickinson.
– Ah,são poemas maravilhosos Ana! Mas meu elogio é suspeito,sou apaixonada por Emily Dickinson.
Ergo as sobrancelhas,passeando os olhos pelo nome da autora.
– É uma…mulher.
Island entende rápido o meu espanto.
– Nas cidades litorais tanto escritoras antigas quanto novas podem ser publicadas e lidas – ela explica – não é perfeito,ainda há fortes estigmas sobre livros femininos,mas não são proibidos co..
– ..como em vilas – a interrompo, perplexa – eu..não fazia a menor ideia que existiam livros que não fossem livros-instrução,a não ser as fábulas autorizadas que leio para Astra e as escrituras sagradas…isso não..não era nem ao menos uma possibilidade.
Ivy leva a água quente para o coador e deixa a fumaça suave e o cheiro do café – tão delicioso e único – invadir minhas narinas,estou zonza ao reconhecer um simples cheiro,por descobrir que há mais palavras do que me foram ensinadas.
Island se aproxima da bancada e delicadamente pressiona nossas mãos.
– Tudo bem? Você está pálida.
– E-eu..me desculpe, são muitas informações ao mesmo tempo..
– Não peça desculpas.. – ela roça os dedos nos meus – sei que é estranho e diferente,por isso não falei sobre o livro de início…tive receio que o julgaria uma blasfêmia.
– Sim,é diferente e talvez seja uma blasfêmia,mas eu..– experimento um sorriso e o borbulhar no estômago – …estou absurdamente curiosa.
Ivy sorri com os dentes à mostra,seus olhos me enlaçam cativos à uma satisfação.
– É bom vê-la curiosa.
Solto um riso repleto de nervosismo.
– É provável que tamanha curiosidade vá me arruinar.
Island desliza rapidamente até o bule de metal e o fecha,ela olha para mim por cima do ombro,confiante e bela.
– Não vai arruiná-la Ana,vai deixá-la mais viva.
– Como você conhece tais livros? – pergunto – se nasceu em uma vila como eu?
Por que é tão questionadora e afiada,se fomos constituídas pelas mesmas ordens? Reflito,mas não o digo.
– Devo este conhecimento a minha mãe – Ivy contém um suspiro – tínhamos uma pequena biblioteca em casa,durante toda a infância e adolescência fui incentivada a ler.
- Como nenhum Reverendo ou Mada não confiscaram os livros?
Island atravessa a sala enquanto carrega o bule até a mesa de centro. Pego duas xícaras e o vidro com o açúcar.
– Lembra quando eu disse que vivíamos à margem?
– Sim,uma situação parecida com a minha, certo?
Ivy aperta as mãos no tecido de sua saia e não cruza nossos olhos,prestando uma atenção excessiva a despejar o café nas xícaras e adoça-las.
– Perdão,você prefere pouco açúcar?
– Prefiro sem açúcar – seguro a colher de sua mão – e prefiro que olhe para mim.
Ela engole a seco,os ombros permanecem retraídos.
– Não quero dizer o que vai confirmar tudo de maldoso que acreditam sobre mim.
Island pisca os cílios,seu peito sobe e desce em agonia e seus dedos nervosos atraem a minha atenção para aproximar nossos corpos no sofá.
Apoio a mão em seu ombro,ignorando as cores que saltam pelo gesto.
– Tem medo do julgamento? – é uma indagação como também uma certeza.
As lágrimas de Ivy ainda beiram as pálpebras,seu sorriso é sarcástico e cortante.
– Não quero que tenhamos mais uma súbita e dramática discussão sobre os pecados da minha vida.
Solto um suspiro compassivo,é um temor válido considerando nossos atritos. Decido acalmá-la.
– Não é meu direito pôr rédeas na sua vida,muito menos em seu passado,você pode contar comigo Ivy,prometo que irei ouvi-la de coração aberto.
Island ergue uma sobrancelha,não acreditava ser possível alguém possuir um rosto tão travesso e melancólico em igual medida,mas vejo que estava completamente errada.
– Promete?
Assinto,levando os dedos do ombro até sua palma,Ivy suspira,recusando-se a cruzar nossos olhos.
– Minha mãe...herdou uma boa propriedade dos pais,construída por eles ao longo dos anos,era a maior casa da vila Sabere,a casa da família Santos,muitas pessoas comentavam sobre a família e a casa,com inveja ou admiração – ela engole a seco – mas a pompa deles foi arruinada depois que a única filha se envolveu com um forasteiro.
– Céus.
– Sim,tudo se agrava quando ela descobre a gravidez,então se torna impossível encontrar um marido e revindicar um pouco de respeito... – Island transparece amargura – assim que eu nasci,meus avós abandonaram a casa e se mudaram para outra vila,deixaram uma quantia de dinheiro só para que não passássemos fome.
Acaricio a pele de Ivy e vislumbro uma fração da angústia exposta nas suas iris.
– Quando o dinheiro acabou,minha mãe implorou ajuda as Madas e aos Reverendos,precisava me alimentar,mas compaixão só cabia as crianças nascidas em matrimônios sagrados,aquelas como eu não eram vidas preciosas.
– Isso é um absurdo – balanço a cabeça,indignada – ..todas as crianças são iguais para o Grande Céu.
– Não para os homens.
A resposta de Ivy gela minha espinha,porque tal indignação espiritual é ingênua comparada a realidade que conheço desde cedo,que Astra era tratada diferente,que as crianças nascidas meninos eram melhores recebidas e que se as crianças das vilas são atravessadas dessa maneira,compreendo a devastação que aguarda aquelas oriundas de situações complicadas,pecados e as que são ilapouá, desencaixadas,como eu fui.
– O que aconteceu depois? – me limito a perguntar.
Ivy retorna ao olhar esquivo,repelindo discretamente o meu toque.
– Minha mãe apelou para as famílias,depois de fracassar,se humilhou para os comerciantes,um deles a ajudou,lhe ofereceu leite e alguns suprimentos,mas..ele queria ser recompensado de qualquer jeito, só restava a ela o corpo.
A revelação me impacta mas não de forma sórdida,contenho qualquer opinião e permaneço branda,disposta a ouvi-la continuar. Ivy estuda silenciosamente tais detalhes e decide em um acordo tácito,confiar em mim.
– Com o tempo,minha mãe separou uma parte de nossa casa e abrigou outras mulheres..desonradas como ela.
– Mas..este foi um jeito de muita bondade. – revido,sem entender a questão.
Ivy solta um suspiro embargado e luta para equivaler nossas íris.
– Ela não abrigava estas mulheres de graça Ana..não haviam empregos muito menos dinheiro para sair da vila, então a maioria concordou em vender o próprio corpo,aquelas que não queriam se tornavam empregadas da casa..minha mãe era quem as administrava,depois de recebidas,todas as meninas e mulheres mudavam o sobrenome para aquele escolhido por minha mãe: Island. Ela não queria nenhuma associação com o sobrenome da família.
– Você foi criada em um bordel? – digo,abismada – céus,mas que tipo de mãe permite isso?
Os olhos de Ivy endurecem.
– Minha mãe tinha grandes defeitos é verdade,mas não vou permitir que a chame dessa forma,ela fez o que pode com os poucos recursos que tinha.
– E expôs você a uma vida absolutamente indigna.
– Eu fui uma criança muito amada e abastecida Ana,minha mãe fez o máximo para me preservar dessa parte de sua vida. – ela desata nossa mãos e desvia o queixo – E você prometeu que não julgaria.
A postura de Ivy é frágil apesar dos olhos firmes,eles vacilam em minúsculas lágrimas enquanto um choro maior é sufocado,sinto o remorso torcer meu coração.
– Eu..não soube como reagir além da indignação,me desculpe.
Island leva as mãos ao nariz vermelho enquanto os ombros permanecem retraídos.
– Nunca me preocupei com o julgamento de ninguém e olhe para mim agora! Totalmente amedrontada pelas suas condenações.
Aproximo nossos corpos novamente,pois não conseguiria suportar a ideia de fazê-la duvidar ou sentir medo de si mesma e da própria vida – já bastam o medo e a dúvida inerentes a minha particular existência.
Envolvo-a pelas costas e sinto o calor orgânico de sua pele se misturar a minha,ela finalmente me encara,invadindo medianos olhos castanhos com a grandiosidade dos seus olhos dourados.
– Me perdoe,pareço a cópia estúpida de uma Mada não é?
Ivy franze as pálpebras quando o riso lhe escapa.
– "Vejam minhas bainhas bem passadas! – imito a postura e faço uma careta – e o nariz franzido a todo momento,como se o esterco dos estábulos estivesse sempre debaixo do queixo,pelo Grande Céu!"
As risadas de Island perdem a cautela neste instante,abro um sorriso largo, já presenciei uma boa quantidade de seus risos,mas enxerga-los como correspondências dos meus gracejos é uma sensação de outra natureza,parecida com aqueles breves segundos quando paramos de correr,as bochechas estão coradas e quentes,o coração agitado e feliz.
– Creio que não seja o suficiente senhorita Island – ajeito os ombros – para ser uma Mada de verdade é preciso cortar os cabelos e julgar qualquer emaranhado nos cabelos das outras pessoas.
– Céus,não faça tal coisa – Ivy fita os meus cachos – criarei uma lei em que Madas possam ter cabelos grandes se for preciso.
Solto um riso tranquilo enquanto as bochechas queimam, provavelmente efeito do café ainda fresco nos lábios.
- Bom,para resumir a história - Island suspira - os Reverendos sabiam que muitos homens frequentavam o lugar para fins óbvios,as Madas fingiam não enxergar e os moradores mantinham um acordo tácito,já que minha mãe possuía milhares de pecados alheios para espalhar se assim o quisesse. De certa forma, toda essa exclusão nos proporcionou alguma liberdade.
A decepção pelo comportamento dos Reverendos e Madas é dolorosa,mas não surpreendente,em minha longa experiência como moradora da vila,já presenciei em segredo lapsos de perversão e uma boa quantidade de ganância - nada harmônicas às escrituras.
– Sinto muito pela sua mãe – ponho os dedos sob os dela – por vocês duas,honestamente.
– Está tudo bem,é difícil lembrar do passado,quem dirá expressá-lo…
Quando Ivy decide olhar para mim,um sorriso vulnerável percorre seus lábios.
– …obrigada Ana,por me ouvir.
Sinto uma vontade desesperada de abraçá-la,por longos segundos asfixiantes,sinto o desejo irracional de nadar em seus olhos,me cobrir das nuances douradas e esquecer o papel que desempenho para o mundo.
O medo,no entanto, sobrepõe a ousadia,um medo de natureza desconhecida,o temor que transforma pequenos atos de gentileza em explosões fechadas dentro do corpo.
– Essa deve ser a função de uma amiga – abro um sorriso comedido.
Por breves segundos,a vejo engolir um suspiro.
– Sabe..a ideia de destino é tediosa para mim – Island apoia as costas no sofá – mas estou começando a acreditar que conhecê-la não foi por acaso.
– Uma amplo-religiosa ponderando sobre destino? – descanso a nuca no tecido também – Me traga a verdadeira Island.
Ivy ergue a sobrancelha e sorri de canto.
– Para alguém que não conhecia o sarcasmo,você o faz com bastante propriedade.
– O que posso dizer? Todos somos passíveis de influência.
– E esta influência por acaso sou eu?
Solto o riso preso na garganta,saboreando sua indignação dramática.
– Pessoas diferentes inspiram as outras,para o bem ou para o mal.
– Sou a inspiração para o mal então? – Island revira os olhos.
– Não! Você tem um coração enorme Ivy,apenas tem dificuldade em cumprir tradições.
Ela apoia a cabeça na própria mão,enquanto o antebraço está lindamente dobrado na estrutura do sofá. Suas bochechas ruborizadas enfeitam o sorriso que sozinho e desarmado,já se revela deslumbrante.
– Acha mesmo que possuo um coração enorme?
Prendo o fôlego por um segundo,imaginando este rosto em um quadro de verdade,pendurado a uma parede para que qualquer pessoa consiga apreciar,e esta ainda não seria a melhor parte, precisariam conhecê-la para entender,entender o coração,as palavras rápidas e a angústia.
– Claro que acho.
– Gostaria que tivéssemos nos conhecido em circunstâncias diferentes - Ivy suspira - uma em que eu não lhe trouxe tanta tristeza.
– O responsável de verdade por essa tristeza foi o meu marido,e isto está no passado - sorrio - tenho sua amizade e nas últimas semanas ela tem sido...muito importante.
– Ah Ana.. - Island pisca os olhos adoráveis - você,sua amizade..é imensurável para mim,sabe disso não é?
Ao longo da vida,minha importância sempre esteve vinculada a ser relevante para o propósito divino,sempre cultivei o pavor de me tornar um fardo para todos,apenas pelo fato de estar viva.
Mas Ivy Island não deseja que eu seja correta,útil ou designada,ela aprecia a simples noção de estar ao meu lado. Um afeto assim,honesto e doce, me assusta,mas a ele é impossível resistir.
– Eu sei. - respondo,tomada por uma atípica e esmagadora gratidão.
– Ana.. - Island põe fios de cabelo para trás - por acaso seria desrespeitoso recitar um dos poemas do livro para você?
– Eu gostaria muito de ouvir,embora não saiba como eles são.
– Os poemas são parecidos com as rezas,só que não se restringem a religião.
– Eles podem falar sobre qualquer assunto então? - uno as sobrancelhas.
– Sim,sim,não há limites,é uma das razões para que eu os ame tanto.
Ivy Island ama poesia,registro mentalmente.
– Eu adoraria ouvir - digo,tomada pela satisfação imediata quando vejo o rosto de Island se iluminar.
– Já volto! - ela sorri e levanta do sofá,indo buscar o livro na bancada da cozinha.
Ao meu lado novamente,Island cruza as pernas no sofá e folheia o livro a procura de uma página,sua expressão vívida e concentrada é um encanto singular.
– Posso? – Ivy hesita.
– Sim senhorita - relaxo os ombros no encosto macio.
– "Coração, nós o esqueceremos!
Coração, nós o esqueceremos!
Eu e ti, hoje à noite.
Deves te esquecer do acalento que ele nos deu,
Que eu me esquecerei do lume.
Quando o houveres feito, diga-me te suplico,
Que aos meus pensamentos toldarei;
Apressa-te! Que enquanto te tardas,
Dele ainda me lembrarei!"
Prendo a respiração por um instante,sempre fui fascinada pelas cores,presentes em meus rascunhos e no meu pequeno e doméstico mundo,mas neste exato momento,descubro que as palavras possuem cores equivalentes e maiores.
– Ana?
– Você poderia..ler outra vez? – pergunto,ainda absorta.
– É claro.
Enquanto Island retorna aos versos ,deixo as pálpebras pesarem e mergulho na textura das palavras,formando sentidos que me provocam uma estranha e prazerosa ânsia
"Acalento,lume,suplico"...
– Ela está apaixonada – digo – a mulher que escreveu e..está sofrendo.
Island me encara rapidamente antes de voltar os olhos para as páginas do livro.
– Você gostou? – a ruiva engole a seco – digo,do poema?
– Não está óbvio? É mais do que gostar,é mais afoito do que amar,acho..acho que estas foram as palavras mais lindas que já leram para mim.
Ivy solta um riso tímido e ganha rubor.
– E este nem é um dos melhores poemas dela,sem contar os outros poetas e poetisas a que leio.
– Há mais deles?
– Há uma variedade deles – ela se ajeita no sofá,empolgada – não somente de poemas,mas romances,aventuras,filosofias e..
– Ivy?
– Sim?
Meus olhos estão acesos e o coração impulsivo quando lhe faço a pergunta:
– Você poderia me emprestar alguns livros?
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