21 🍁 Companhia
AS JANELAS da capela estão incrustadas de poeira,é o dia designado para limpá-la,mas aparentemente sou a única a chegar na hora e realizo as demais tarefas.
Um xingamento corre pela mente antes que eu possa contê-lo,imploro perdão de imediato,mas a raiva continua borbulhando na boca do estômago.
Eu deveria acostumar-me, pois essa negligência existe desde que sou esposa de Daniel,as mulheres marcam o dia da limpeza e depois alteram os horários para que eu limpe tudo sozinha,nunca adiantou recorrer às Madas,que também me encaravam com maus olhos pelo nascimento de Astra,o tempo passou e a resignação tomou espaço para encerar o chão,tirar a poeira dos bancos e janelas,polir os objetos de prata e abrir o Manuscrito exatamente na página do próximo sermão.
Enquanto o sol da manhã se reparte para dentro da capela escura,solto a respiração cansada, ingênua por acreditar que minha ajuda com os caras-de-noite e a sutil aprovação das Madas me garantiriam inclusão e mérito.
Ilapouá,a desajustada mulher que limpa sozinha as janelas de uma capela,é doloroso saber que faço parte de algo apenas quando sou útil.
O rosto de Ivy Island procura espaço entre as lamúrias,os olhos atentos a cada palavra que digo,as mãos que gesticulam ideias empolgadas,certa vez,quando nos despedimos no limite da trilha,virei para trás até perceber que Ivy também reproduzia o mesmo gesto.
Embora eu a ajude com as compras domésticas,sinto que minha companhia não lhe representa uma obrigação,Ivy não conta os minutos para que eu vá embora,ela engana o tempo e me hipnotiza para suas conversas com sagacidade e um cheiro inebriante de lavanda.
– Ana,por favor,ainda temos alguns minutos. – Island disse ontem a tarde – você adoraria ouvir essa história!
Ouvi-la entoar Ana despretensiosamente invoca sensações das quais não consigo nomear,como se não houvesse palavras o bastante para a vibração em sua voz.
– Assim como todas as outras histórias – retruquei na metade de um riso – eu gostaria mesmo de ficar,mas preciso estar em casa e preparar a torta de cereja para a reunião das Madas.
Island deixou escapar um bufo indignado,usava um vestido rosa tão sereno que divergia do gesto.
– Não entendo como elas podem dispensá-la e ainda mandam que faça comida para as reuniões...
– Ivy.
– Eu sei – ela levantou as mãos em rendição – são obrigações e você as segue,me desculpe.
– Não deve se preocupar com isso – respondi,lutando contra a coceira para segurar sua mão – mas essa raiva por mim é adorável.
Ivy franziu o cenho e abriu os lábios,era uma expressão engraçada,desejei ter papel e lápis naquele exato minuto.
– Pare,eu não tenho nada de adorável – retrucou – sou ameaçadora e infame.
Refleti sobre as palavras dela por um instante,de fato,Island é sarcástica,astuta e tempestuosa quando necessário,mas não há nada em sua natureza que seja ameaçador,a reputação lhe condena é claro,mas não para mim,que conheço sua gentileza melhor do que as pessoas de Prudente.
Balancei a cabeça,perseguida por um sorriso.
– Você é adorável Ivy,dizer o contrário seria a maior das mentiras.
Ivy exalou um riso breve,os fios ruivos sendo agitados pelo vento,que ainda serpenteava o caminho indeciso entre a delicadeza e a veemência.
– Obrigada Ana.
Que tamanha insanidade,permitir que Ivy diga o meu nome é como ser engolida pela deriva,ao ponto de não me reconhecer.
Island jamais viria até a capela para uma tarde de sermões,mas é impossível reprimir o sentimento de ausência quando não a vejo em qualquer lugar ou espaço.
– Senhora Fraser?
A voz desperta os sentidos,viro-me na direção das portas abertas: Gabriela Hondara está hesitante ao pé da entrada,carregando uma cesta.
– Hondara? – pisco,perplexa – o que faz aqui?
Ela lança um olhar óbvio à capela.
– Hoje é o dia da limpeza certo?
Arqueio a sobrancelha e paro de esfregar a moldura da janela.
– Sim – respondo, impaciente – os horários da limpeza são sempre os mesmos.
Gabriela cruza os braços e morde o lábio inferior,é estranho vê-la nervosa ou acanhada – principalmente acanhada,já que Hondara costuma ser um pavão a céu aberto.
Lembro do momento de gentileza que tivemos assim que sua filha nasceu,mas ainda guardo sérios ressentimentos sobre os anos em que ela me desprezou junto com as outras mulheres,inclusive os dias em que contribuiu para que eu limpasse toda a capela sozinha.
Pela expressão em seu rosto e trejeitos tímidos,ela reconhece os erros.
– Não,não são senhora Fraser.. – Gabriela entrelaça os dedos e os puxa – .. às vezes eu e as novas mães..acho que você imagina o que fizemos.
– A respeito dos horários? – suspiro com apatia – não há nada para imaginar senhora Hondara,sei bem o que fazem.
– Sinto muito.
Desvio o olhar de sua figura e volto a atenção para a poeira nas molduras.
– Não deveria ter vindo senhora Hondara,sua filha tem apenas algumas semanas de nascida.
– June cuidará dela enquanto eu estiver aqui.
Continuo limpando a madeira,empenhada em ignorar a presença alheia,mas Hondara interpreta meu silêncio como permissão,observo-a de soslaio no instante em que pega a escada e arregaça as mangas para limpar a janela ao lado da minha.
Minutos depois,ela expressa dificuldade e quase escorrega os pés do apoio,suspiro e viro-me de lado.
– Pelos céus,o que está tentando provar?
Gabriela apoia as mãos nas madeiras laterais da escada e olha para mim incisiva,suas tranças antes bem arrumadas tem fios escapando e sua testa está molhada de suor.
– Não quero provar nada, só quero reparar o que já fiz de errado.
– Esse gesto é baseado na pequena ajuda que ofereci quando deu a luz? Não parece grandioso o suficiente para alguém feito a senhora.
A Nova mãe solta a respiração pelas narinas,ela desce as tábuas da escada com cuidado,anda até a janela em que estou e põe as mãos na cintura.
– Minha filha é grandiosa para mim senhora Fraser,e sua confissão naquela noite me fez perceber que estava tudo bem em assumir tal sentimento.
Engulo a seco,então ela continua:
– Parece estúpido,mas sim,sua ajuda teve grande importância naquela noite,você me ofereceu palavras de conforto mesmo consciente do meu comportamento maldoso e...não alinhado às escrituras.
Solto um riso baixo.
– Não alinhado mesmo.
Gabriela deixa uma risada mais encorpada fugir,motivada pela minha.
– Realmente não me ocorreu que exibir uma barriga sem saber o sexo do bebê me traria problemas.
– Não foi sua melhor ideia Hondara.
Ela sorri e balança a cabeça.
– E eu tenho tantas boas ideias.
– Boas?
Seu riso escapa mais alto,Hondara volta para a janela ao lado,subindo as tábuas com determinação.
– Não sou uma pessoa má,apenas aprecio a atenção dos outros.
– Céus,eu nunca havia percebido.
Gabriela abre a boca para responder,porém nota que meu comentário não foi genuíno e sim sarcástico.
– Senhora Fraser,mas que astúcia! – Hondara parece chocada,mas está sorrindo.
Quando lhe devolvo o sorriso,ele não é nervoso ou submisso,é honesto,como há muito tempo não era por alguém de Prudente.
A manhã transcorreu quente e tediosa,Gabriela Hondara e eu limpamos as janelas restantes e terminamos de lustrar o chão,o trabalho é regido por um silêncio cúmplice e tranquilo. Nenhuma Nova mãe ou esposa arrependida aparece nas horas seguintes,mas ter a compreensão,mesmo que seja de apenas uma delas,traz um alívio poderoso.
Os pensamentos me conduzem de novo até Ivy Island,imagino-a sozinha na sua casa bonita e solitária,o peso da condenação de uma vila inteira em seus ombros magros,os olhares gratuitos de ódio por erros que nenhum deles presenciou.
Se todos em Prudente a conhecessem de verdade,seriam imediatamente cativados por seu espírito,ignorariam os pecados para prestar atenção em todas as partes fascinantes.
Na manhã seguinte,arrumo Astra para a escola e preparo sua bolsa com a refeição do intervalo,assim que ela parte de casa volto a atenção para a cozinha.
Tiro o bolo do forno, corto a massa em camadas e adiciono creme de frutas vermelhas entre elas, decoro o topo com cerejas e folhas minúsculas,tenho delicadeza ao colocar o bolo dentro da cesta,e mais destreza ainda ao abrir o portão e sair,rezando para que nenhum movimento falho estrague o bolo feito para Ivy.
Corto o caminho a fim de chegar a trilha mais rápido,a terra continua arenosa,as árvores balançam e deixam cair folhas acobreadas,algumas transformadas pela cor amarela,elas florescem e me lembram a parte singela da infância.
Eu gostaria de transfigurar o corpo para as brisas,me tornar a única coisa que transpassa todas as outras,as árvores,a relva,os pássaros,o agente invisível que incomoda e rejuvenesce as almas.
Suspiro,os cantos do rosto me puxam um sorriso encantado,o que o Grande Céu diria para mim? Longe de todos,em pureza e liberdade,o que diria? Ele escolheria o silêncio e os deuses do meu pai ganhariam espaço? Neepa,a deusa dos ventos e das mudanças,sorriria para mim?
As folhas empolgam-se e voam segundos antes da queda,caminho por algum tempo até sentir a floresta assumir a identidade de Ivy Island,sorrio,mais alegre do que outrora.
Os grampos em minhas tranças coçam e doem,olho para os lados a procura de alguma Mada altamente zelosa ou uma esposa intrometida,não,estou sozinha,então apoio a cesta no chão por um instante e quebro essa pequena regra: deixo as tranças perto da testa presas,mas solto a parte de trás,arrumando as madeixas enquanto sinto os cachos enrolarem nos dedos,um sorriso me visita novamente,as flores me apoiam,as cores da floresta são um incentivo.
Os minutos passam rápido,a casa branca e iluminada de Ivy Island cresce em meu campo de visão,sinto as bochechas quentes e o suor,presumo que o cabelo está cheio e bagunçado,mas quando percebo que Island está na varanda,o impulso para vê-la conduz os meus passos.
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