20 🍁 Palavra curta
A CESTA para os mantimentos é espaçosa e tem as bordas largas,durante semanas ela passou de minhas mãos para as de Ivy Island,o fundo carregado de quilos de arroz, feijão e açúcar, além de temperos e sacos de biscoito.
Foram longas semanas que atravessaram o nosso acordo, às vezes eu lhe entregava a cesta pessoalmente,em outras o combinado era deixá-la no meio da trilha,é comum seguir um atalho,mas nada tem sido penoso - como parecem as boas ações.
Levar a cesta abastecida para Island se tornou parte da rotina,quando vou buscar a cesta vazia na trilha,a lista para a próxima compra e as moedas escondidas sempre estão no compartimento invisível,que Island gosta de chamar de “bolso secreto”.
Além disso,desenvolvi o hábito irrefletido de pendurar sua lista de compras na parede da cozinha ao lado de outros lembretes,Astra notou rápido a letra diferente e perguntou de quem era,respondi que estava ajudando uma conhecida,minha filha deu de ombros e não fez mais perguntas – mantimentos não são um assunto interessante.
Traços sobre Ivy Island se manifestam a cada virar dos dias, descobri que ela gosta de salsa e pimenta assim como eu, mas compra muitos biscoitos de frutas vermelhas,que simplesmente não aprecio. Recolho as informações dessa mulher ímpar como um jogo de memória: Island sempre pede sal a menos,bebe muitos chás diferentes,sua letra no papel é grande,inclinada e preguiçosa,ela desenha ramos desajeitados nas bordas de cada lista.
Quando a encontro na metade da trilha para repetir o mesmo processo,digo que ramos simpáticos não disfarçam uma letra feia.
Island mantém a face emburrada,mas acaba sorrindo.
– Minha letra não é feia,é só..autêntica.
Solto risada.
– São sinônimos? Ora Island,por que não me disse antes? Algumas Novas Mães merecem ouvir o quanto tem personalidades autênticas.
Ela gargalha alto,constrange as árvores maduras,assusta os animais com os barulhos de sua irreverência.
"Quem é irreverente zomba do Grande Céu,e do Grande Céu não se zomba" - é o que dizem as escrituras,mas quando Ivy Island solta estes risos enormes,a irreverência é doce,me agrada e confunde.
– Não esperava que fosse dizer tal coisa – ela ajeita os cabelos que caem para frente – não mesmo senhora Fraser.
– Acho que é um baixo-pecado a que posso recorrer de vez em quando. – sorrio de lado.
– A senhora tem as garras mas elas ficam escondidas – sou atingida por um olhar cúmplice – respeito isso.
– Garras? Céus..olhe para mim,que exagero.
– Estou olhando – suas íris me intoxicam – não,não é exagero.
– Mas é claro que é.
Island une as sobrancelhas,sorrindo de lábios fechados.
– Não esconda seu temperamento como esconde suas covinhas,senhora Fraser.
Levo uma das mãos a bochecha,tocada por uma súbita vergonha.
– Eu não tenho essas marcas..pelo menos nunca reparei que as tinha.
Então Ivy Island as vê,elas existem além das fronteiras do meu espelho.
Perguntei a Daniel uma vez se eu tinha marcas no sorriso,ele deu de ombros e disse que não fazia diferença.
Ele estava certo,mas Island enxergou esta indiferença,é como se ela tivesse descoberto uma fonte de água em uma floresta densa.
Até ela dizer a próxima frase, que parece transformar a fonte em raios de sol queimando meu rosto.
– Tente reparar,porque é deslumbrante.
Prendo o fôlego e abaixo a cabeça,perdida em minhas próprias ações,penso nos tópicos necessários para mudar de assunto,mas suas palavras agem como um sino de igreja para acordar os trabalhadores "porque é deslumbrante", "porque é deslumbrante".
– Que jeito forte de definir marcas. – torço para que ela revide,esperando outra confissão bonita.
– Não só as marcas.. – Island continua,sem me olhar diretamente – a senhora também é.
Dou um passo para frente,viciada no tom de segredo das suas opiniões.
– Eu sou o que?
Ela solta um riso sarcástico,enquanto estou desesperada pelo óbvio,é uma correnteza que me suga cada vez mais até o fundo para ouvir um simples elogio.
Ivy Island encara tudo ao redor menos os meus olhos,é uma mulher que não tem vergonha da própria vida,não se embaraça com julgamentos,não teme nem mesmo o peso dos pecados,mas parada na trilha ao meu lado,o acanhamento lhe atinge,suas bochechas ganham cor e a cor se espalha até os ombros sardentos.
– Você está vermelha,de novo. – sorrio.
– Maldição.. – ela sussurra,revirando os olhos.
– Experimente ser a única filha-metade de uma vila de Crentes.. – digo – eu preferiria corar.
Island arregala os olhos.
– A senhora é uma filha-metade? Eu achava que..
– Eu era uma cara-de-noite convertida?
– Sim,foi o que pensei.
– Meu pai era um cara-de-noite,mesmo após a morte dele minha mãe insistiu que eu continuasse aprendendo o básico da língua nativa dele,minha também – suspiro – às vezes,quando alguma palavra me escapava eu percebia os olhares das pessoas,então me disciplinei,mas nunca me permiti esquecer,é parte de quem sou.
Ela pisca os olhos dourados,seu espírito concentrado absorve cada palavra dita por mim,sinto as bochechas queimarem, tenho a sorte de não corar.
– Island?
– Você é deslumbrante senhora Fraser.
Você é – as palavras ecoam.
Solto um suspiro,próximo do que Island chama de sarcástico.
– Aposto que está tentando ser gentil.
Ela levanta a sobrancelha e põe uma mão no quadril.
– Vai mesmo fingir que não adorou o elogio?
Abro um sorriso complacente e dou de ombros.
– De qual elogio está falando?
Island solta uma risada alta,esta é a sua forma favorita de rir: alto e com vontade.
– Ah céus..não,não vou inflar ainda mais o seu orgulho senhora Fraser.
Solto um riso curto,pegando a cesta vazia do chão,começo a andar lentamente,Island me acompanha,devo partir pelo atalho – onde nos separamos. As primeiras vezes eram rápidas e formais,no passar dos dias,as conversas ocuparam o silêncio,conversas inteiras que sempre ficam pela metade.
De metade em metade,o inteiro nunca se finda,o que resta é uma constante ansiedade,um desejo quase infantil por esses momentos.
– O orgulho pertence aos homens – respondo – o máximo que devo sentir é uma ligeira vaidade,mesmo que não acredite que a qualidade que você me atribui seja verdadeira.
– Deveria acreditar – ela se aproxima – não costumo mentir sobre as pessoas.
– Então sobre o que você mente? – pergunto com divertimento.
Island abre um sorriso escondido,porque não sou capaz de decifrá-lo,ela pousa a mão direita sob o cotovelo esquerdo no instante em que a brisa carrega os cabelos dela centímetros para frente,ela cruza nossos olhos com seus arcos dourados,as folhas fazem barulho,mas sinto o silêncio escorrer pelo peito.
– Sobre sentimentos – responde sem rodeios – sobre mim mesma.
– Céus,e aparenta o oposto.
Island solta um riso singelo.
– Me vestir e falar de forma diferente não me torna verdadeira senhora Fraser,essa é apenas uma forma que encontro...de escapar,de provar que mereço ter uma vida,parecida com a dos outros ou não.
As palavras dela levam embora uma série de ideias barulhentas,agora completamente desencaixadas.
O Grande Céu chove sobre todos,renova plantações e as destrói sobre todos, Ivy Island também não faz parte de todos?
Fito seus olhos,são bonitos e cansados,tenho uma súbita vontade de segurar sua mão,mas o gesto apesar de inofensivo,parece assustador.
– Você merece uma vida Island.
– Eu sei.
– Uma vida maior do que essa, certamente.
Ela abre um sorriso honesto.
– É..eu sei disso também,mas vindo da senhora,essa afirmação me deixa mais contente.
Questiono-a sobre por que minha opinião importa. Voltamos a andar.
– Bem..reconhecer que alguém não gosta de viver no lugar em que a senhora tem crenças fortes poderia..chateá-la.
– Foi o que senti no início.. – suspiro – ..mas minha filha Astra tem me ensinado muito sobre..aceitar fatos das quais não estou acostumada – cruzo nosso olhar – não estou em seu coração Ivy,não posso mandar nos lugares que pertence ou nas coisas que sente.
O nome escapa dos meus lábios feito uma expiração,nunca o havia dito assim sozinho,em voz alta,muito menos para que ela ouvisse.
Um nome é como desenhar o rosto e não apenas a silhueta de alguém,por isso amedronta,este desconhecido alívio me amedronta.
Ivy,são três letras,uma palavra curta,um som agudo e macio.
As íris de Ivy Island brilham,sinto a acidez no estômago se agravar,é apenas um nome,eu sei,mas não é apenas um nome,disso eu também sei.
– É visível o quanto sua filha é especial para você,é um gesto muito bonito senhora Fraser.
Solto a respiração e confirmo com a cabeça.
– Sim,ela é de fato.
– Seria incômodo perguntar a idade dela?
– Não,não,de maneira nenhuma – sorrio – Astra tem onze anos,é uma menina radiante,embora eu seja suspeita para elogiá-la.
– Tenho certeza de que ela é mesmo.
Abaixo a cabeça,porque é o primeiro instinto que tenho sobre introduzir tal assunto,mas a presença de Island me passa uma estranha serenidade,como se eu pudesse lhe confessar qualquer verdade ou pensamento.
– Sabe..quando ela nasceu..foi difícil para mim..demonstrar amor.
Certa vez tentei explicar a experiência para algumas Madas,porém fui imediatamente cercada por julgamento e estranheza,desisti de expressar-me.
Não há um resquício de repúdio ou condescendência no semblante de Island,seus sentidos estão abertos para os meus,ternos e pacíficos.
– Bom..ter um menino sempre foi meu objetivo como esposa, mas eu..nunca pensei sobre..desejar um filho de verdade.. céus,me sinto um monstro ao dizer isso.
– Não,não se sinta – Island para de andar,faço o mesmo – eu nunca tive filhos mas em meu breve conhecimento,eles devem ser um desejo.
– Ter um menino é sim um dever,é pelo bem da comunidade,pelo fim da guerra.
– Acha que enviar mais homens para a guerra vai terminá-la mais rápido? Ela vai apenas se estender.
– Não concordo que nossos homens morram em vão,é verdade,mas ter um filho também é um prestígio, você morava numa vila ao norte,sabe que as tradições são as mesmas, e há consequências se não forem cumpridas,não importa se você é realmente culpada ou apenas desafortunada pela vida.
Ela suspira e franze o cenho.
– É..eu sei.
– E sabe também o quanto é difícil estar excluída da comunidade.
Island balança a cabeça sutilmente,negando conclusões para a brisa enquanto seu rosto endurece.
– Não é justo com você senhora Fraser.
Island está brava,a boca em linha reta e os olhos indignados,brilhando de frustração. Está brava por mim, o que é descabido,tão descabido que é engraçado e bonito de sua parte.
– Não é justo comigo? Como pode ser tão gentil a ponto de pensar na minha situação? Todos em Prudente tratam você com a pior das atitudes,isso sim é injusto.
Island se aproxima,as linhas de indignação dão lugar a um sorriso triste.
– Tendo em vista o que fiz para você..acho que a senhora está sendo muito gentil.
– Pelo criador, esqueça isso! – exclamo bem humorada – de uma vez por todas Ivy: meu perdão é sincero.
Eu disse novamente,Ivy,deixei o nome fugir e agora está grudado nos meus lábios. Céus.
Island pisca os olhos devagar, o sorriso florescendo feito o rubor em suas bochechas e colo.
– Você está vermelha. – aviso.
– E você disse o meu nome – ela revida – duas vezes.
Desvio o rosto, sentindo frio no estômago.
Finalmente percebo que estamos no início do meu atalho para casa,é aqui que nos despedimos,por essa trilha que vou fugir de suas palavras que perfuram e grudam.
– Preciso ir,logo Astra deve voltar para a casa e não terminei de preparar o jantar.
– Claro,eu..eu imagino – Island abre um sorriso resignado – semana que vem nos encontramos,obrigada senhora Fraser.
Assinto e retorno o agradecimento,dou as costas para Island e começo a andar,as folhas fazem alvoroço,indignadas comigo porque não disse o que desejava,a brisa intensa é outra força implicante,que sussurra fale,fale agora.
Interrompo os passos,viro para o lado oposto e vejo as costas de Island partindo.
Penso em desistir,mas o grito sai vencedor:
– Ivy!
Seu vestido rodopia,o cabelo ruivo brinca com os raios de sol atrás dela.
– Sim?! – Island solta a exclamação que é metade uma risada.
– É Ana!
Ela abre um sorriso maior,então grito antes de partir:
– Ivy,você pode me chamar de Ana!
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