14 🍁 Interminável
– CERTO – suspiro – está difícil de limpar estas manchas.
Island solta risada,estamos sentadas em seu sofá pequeno,há uma tigela de porcelana com água em cima da mesa,levo o pano molhado até a parte direita do rosto dela,limpo a terra e as nuances marrons que insistem em ficar,o pequeno risco de sangue agora está rosado e não sangra mais.
– Deveria ter pensando nisso antes de se oferecer para ajudar. – zomba Ivy,fitando meu rosto.
– Que bobagem. – murmuro,concentrada demais na pequena mancha em sua têmpora.
– Não demore a atenção aí,esta mancha é de nascença. – explicou-me.
– Como não havia percebido? – uno as sobrancelhas.
– E por que perceberia?
Ela está me fitando enquanto sorri,um sorriso travesso e questionador,mas os olhos são desconcertantes o suficiente para acanhar meus gestos.
E por que perceberia não é mesmo? Exatamente,não há razão,mas o súbito aborrecimento infantil a me atingir se deve a ter notado tantos aspectos nela,a pequena falha na sobrancelha,o anel dourado ao redor das íris,as pontas irregulares do cabelo,mas não,uma marca de nascença passou despercebida.
– Por nada ora – retruco,estou finalizando a limpeza – talvez curiosidade.
Island levanta o queixo para que eu limpe a região entre a mandíbula e o pescoço,os olhos permanecem fixos em mim.
– Você é uma mulher curiosa então?
Tenho a impressão de estar ruborizada,mas a sensação é contínua ,são palavras tão triviais que me envergonham..
– Creio que sim.
Ela não ergue o rosto da forma que preciso,então pouso as mãos delicadamente em seu queixo,abaixando-o um pouco,sinto a ponta dos dedos formigarem,imagino que seja o resto de terra.
Quando termino, sinto que fiz uma cirurgia,estou com batimentos fortes e uma pressão estranha ao redor do corpo.
Estou prestes a tirar os dedos de seu rosto,mas Ivy fecha a mão em meu pulso, semelhante ao gesto que lhe fiz, diferenciando-nos apenas a suavidade.
– Obrigada.
Penduro o pano na borda da tigela e expresso confusão.
– Me ofereci para limpá-la,não foi incômodo algum.
– Não,não sobre a ajuda...você ainda se empenha em compreender minha vida,e eu dormi com seu..
– Isto é um assunto encerrado.
– Eu sei,eu sei,mas..não entendo o porquê aceita meus convites,por que bebe chá na minha casa e conversa comigo,você deveria me odiar,atravessar para o outro lado da rua enquanto eu passo.
– Não odeio você Ivy Island.
Seus dedos arrastam pelo meu pulso até a minha palma,ela a aperta e olha para mim, as feições mergulhadas em confusão.
– Por que não odeia?
Suspiro,a pele dos dedos é quente,sua voz é próxima e seus olhos intimidam,não como os olhos do meu marido intimidam,é uma intimidação de outra natureza.
– Apenas não a odeio,sem razões mirabolantes,não a odeio e ponto final.
Island franze o cenho,é estranho vê-la compenetrada e desentendida,tão estranho que é engraçado.
– Está rindo de mim? – pergunta ela,bem humorada.
– Um pouco.
– Certo,irei superar.
– Você supera muitas coisas.
As íris de Ivy estão cheias de doçura quando me fitam.
– Fico grata por perceber,na verdade fico grata por alguém perceber.
– O que as pessoas mais fazem é percebê-la.
– Da pior maneira possível.
Não revido,é uma verdade.
– Enfim, obrigada por perceber..de uma boa maneira.
Reúno coragem para apertar sua mão de volta,o ato desequilibra alguns sentidos,desperta minha estranheza,mas ignoro-a.
– Estou tentando resgatar parte das escrituras que muitos em Prudente andam esquecendo.. – abro um sorriso ameno – o Grande Céu diz que devemos ter compaixão com os pecadores.
Island franze o cenho,desatando nossas mãos sutilmente.
– Um pecado não me define,senhora Fraser.
– Não se trata de fazer parte de uma traição,esta é uma questão resolvida e perdoada,você é uma pecadora pela sua forma de vida,apesar dos outros a enxergarem somente por tal ótica,não devem condená-la com tamanha rigidez,é falta de ponderamento.
– Céus – ela resmunga – você não é capaz de ouvir os absurdos a que diz?
– Absurdos? Estou sendo honesta.
– Honesta baseada em suas crenças.
Island afasta discretamente o corpo do meu,ainda estamos próximas no sofá,mas parecemos muito distantes.
– O que eu estava tentando dizer – pigarreio – era que os julgamentos deles são extremos e severos,mas..
– ..mas no fundo estão corretos. – Ivy completa minhas palavras.
A visível decepção de Island me empurra para longe,o ar está suspenso e os olhos dourados estão magoados e frios,encará-la assim contorce meu peito de agonia,mas não posso deixar de falar a verdade.
Ela levanta do sofá e balança o corpo com certo nervosismo,suas maçãs do rosto estão vermelhas e vivas.
– Dizer palavras cruéis e punir fisicamente um pecador é selvageria para você não é? – Ivy continua – é demais,exagero,falta de ponderamento.. – ela cospe as palavras em raiva – mas ignorar sua existência e tratá-lo feito esterco pelas costas é aceitável.
– N-não,não é aceitável,não foi o que...
– Foi exatamente o que você quis dizer,me defendeu porque ainda possui humanidade,mas logo em seguida volta a impor seu modo de vida a mim.
– Porque é um modo de vida seguro! – revido – se escolhesse tal caminho não estaria sofrendo tanto na mão dos outros!
– A senhora enxerga o que diz?! Preciso ignorar tudo o que eu sou para não sofrer? Fingir uma vida segura,morrer segura e nunca ter realmente estado viva?
– Você não está sendo racional,está sendo levada pela luxúria e por emoções rasas! – ergo o corpo do sofá,dando dois passos em sua direção.
– A luxúria de existir? A emoção rasa de seguir um caminho próprio? – ela debocha – ah céus,devo estar enlouquecendo por almejar uma vida digna.
– O que há de digno em se deitar com diversos homens e não cultivar fé em nada?
– Não é a senhora que determina tal coisa! – ela grita,os olhos em chamas – nem mesmo os Reverendos e Madas! Esta vila ridícula,sua vida minúscula não são o centro do mundo!
Sua vida minúscula,as letras juntas despertam a raiva,estou queimando de ódio por uma mulher imoral ter a audácia de me rebaixar dessa forma.
Levada por um instinto desconhecido,levanto a mão,estico a palma de encontro a sua bochecha,mas outro instinto me interrompe no meio do percurso,travando minha mão como se estivesse presa a uma corda que enlaça cavalos.
– Vá em frente! – cospe Ivy com ódio – com essa mão estendida você daria uma ótima Mada.
Os cortes do evento recente me acometem de súbito,os dedos grossos da Mada marcando o rosto de Island,o corpo magro caído no chão,a bochecha suja de terra,o pequeno risco de sangue,as risadas de escárnio,a humilhação esmagadora nas íris douradas.
– Não! – abaixo a mão bruscamente,sinto os olhos arderem – Eu não odeio você.
Ivy está com o rosto próximo o suficiente para que eu enxergue a marca de nascença antes ignorada,não parece furiosa neste instante,apenas cansada.
– Se não me odeia – ela pisca os olhos marejados - pare de censurar a vida que me pertence,e pela qual somente eu pagarei pelas consequências.
– Não deveria pagar tão alto.. – sussurro,fitando-a.
– Como não deveria senhora Fraser? Vivendo despercebida e amedrontada como as mulheres de Prudente ou porque tenho liberdade de escolha?
Meus impulsos gritam para a primeira opção,mas esta insistência é a razão pela qual estamos discutindo,então me retraio e dou um passo para trás.
– Porque tem liberdade de escolha,Island.
Ela estreita os olhos,é surpreendente como fica bonita em tal gesto.
– Você não está sendo sincera.
– E como pode saber?
– A senhora franze sutilmente o cenho quando diz palavras que não são próprias.
Estou prestes a fazê-lo de novo,mas contenho o gesto,a insistência afiada de Island me aborrece,contudo sinto o abalo de ter sido reparada. Logo eu,alvo de uma bruxa.
– Veja só,a senhorita também é uma mulher curiosa. – comento, irritada.
Island deixa uma respiração profunda escapar dos lábios antes de cruzar nossos olhos.
– A senhora não mudará seus preconceitos por mim – diz,sucinta – e eu tampouco vou ceder para a sua visão de mundo.
Desvio o rosto para a ponta do tapete,surpreendida por uma estranha agonia.
– Eu estava tentando compreende-la – revido – e o que faz com a minha cordialidade? É ingrata.
– Não senhora Fraser,sua cordialidade foi repleta de julgamento – Island pontua – enquanto minha sinceridade é farta de escárnio. Deveríamos abrir mão desta convivência sofrível.
Engulo a seco,asfixiada pelas paredes.
– Claro,é uma medida equilibrada,não continuarei vindo até aqui para me desculpar por discussões intermináveis que se transformam em outras discussões intermináveis... – suspiro – ..não se preocupe,não voltarei mais a sua casa,nunca mais vou importuná-la.
A raiva estampada no rosto de Island diminui e abre espaço para linhas tristes de expressão,Ivy continua mantendo o orgulho,mas percebo as brechas assim como ela percebe meu franzir de sobrancelhas.
– Certo...faz sentido.
Levanto os olhos para encara-la,fito as íris douradas por segundos que me prendem por uma curta eternidade,até que finalmente desperto do transe,dando-lhe as costas para abrir a porta e partir.
– Senhora Fraser espere!
Aperto a maçaneta contra os dedos,o corpo petrificado no instante da urgência.
– Sim?
Island está pensando,calculando as palavras a serem ditas,mas seus lábios ficam em linha reta e ela desvia o olhar determinado.
– Obrigada pela torta.
Assinto,fitando de soslaio a sua figura solitária antes de fechar a porta e ir embora.
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