10 🍁 Maldição
MINHA inquietude finalmente se abranda assim que ponho os pés na entrada de casa.
Arrumo os cachos que escaparam da trança e tiro as botas,meus dedos estão gelados,é a friagem do vento,ponho as botas do lado de fora,vou limpá-las depois,estou exausta.
Astra me fita com curiosidade da cozinha,ela está sentada na mesa onde várias ferramentas e livros-instrução estão distribuídos, seus olhos redondos indicam que foi flagrada fazendo algo errado.
Bom,ela fez.
- O que é isso? - uno as sobrancelhas.
- É que..eu sei que não devia pegar os livros do papai,mas é que..
- Ast,olhe para mim quando estiver falando.
- Ah,tá bom,desculpa.
- Tudo bem querida,continue.
Minha filha bate a sola no chão e morde a parte inferior dos lábios,evitando a todo custo me encarar.
- Ast..
- Tá bom! Eu peguei os livros do papai e estou lendo eles e..olhando as..armas.
- Mas o que uma menina como você estaria fazendo com essas coisas brutas de ferreiro?
- Eu..gosto dessas coisas.
- C-como assim querida? Você quer que seu marido seja ferreiro feito seu pai,é isso?
Astra dá um tapa na própria testa e suspira.
- Não mamãe..não é isso..
- Desculpa filha,eu não entendo.
- Eu gosto das ferramentas do papai,gosto de estudar sobre elas,ver elas sendo formadas..eu..gosto disso.
- Mas por que você gostaria disso? É tão nova e uma..
- ..uma menina?
- Ast..
- A senhora ama desenhar..não é a mesma coisa?
- Filha.. eu não estou julgando,só que esse não é um tipo de coisa feita para meninas.
- E por que não?
- Porque é como as coisas funcionam.
- E por que precisam funcionar assim?
- O Grande Céu destinou isso a nós.
- Sabe o que eu li na minha escola ontem? Era um livro-instrução de provérbios curtos..ele dizia assim "um menino e uma menina,eis uma benção,um menino apenas,eis um milagre,se única for a menina,não passa de maldição".
Abaixo a cabeça,sem saber o que dizer.
- Por que eu sou uma maldição mamãe? E um garoto um milagre?
- Porque..porque os garotos vão para guerra quando crescem,servem como Abençoados na batalha,e as meninas só possuem a dádiva de engravidar. É por isso que quando uma mulher dá à luz a ambos,é uma felizarda,é uma benção.
- Então eu dependo de outro menino para ser considerada uma coisa boa?
- Ast,não é isso..
- Eu sou sua maldição não é mamãe? É por isso que as vizinhas tratam você diferente,é por isso que se esforça tanto para ser educada e gentil. É você que sempre se oferece para levar as tortas para o sermão, e ainda fica com as partes mais chatas...tipo lavar as janelas altas da igreja.
- Filha eu só quero ter uma boa relação com as pessoas ao meu redor, em Prudente todos precisam de todos para viver, precisamos estar em harmonia, como as escrituras dizem.
- Se é assim, não deveriam te tratar diferente por minha causa, pela minha maldição..
- Você não é uma maldição Ast.
- É o que está escrito nos provérbios.
- Os provérbios estão..
Cerro os dentes antes de dizer o impensável,o que estou fazendo? Não posso deixar meu amor por Astra me cegar para os ensinamentos do Grande Céu,nem a minha filha poderia me fazer cometer um sacrilégio.
- ..certos querida - completo - mas não devem ser levados tão literalmente.
O peito de Astra murcha ao ouvir minhas palavras,os olhos pesam até o chão.
- Desculpa mamãe,mas tudo o que eu vejo são as pessoas sendo literais nisso.
Suspiro,a dor de cabeça me atinge sem piedade,hoje não é um bom dia.
- As pessoas são assim filha, é como sempre vão ser e ponto final.
- E isso não incomoda a senhora?
- Se você não ficar pensando sobre isso, não vai incomodá-la tanto! Fim da conversa.
- Mas..
- Astra eu disse fim da conversa.
- Isso não faz sentido! Por que você tem que ser tratada diferente só porque não tem um filho homem?!
- Pelo amor dos céus! Você e qualquer menina nascida primeiro é uma maldição! Você mesma leu e não quer entender! Por sua causa, eu fui expulsa das reuniões de esposas e Novas Mães! Por sua causa o Grande Céu está me castigando! Agora você compreende ou quer que eu desenhe?!
Astra arregala os olhos,escuros e cheios d'água,depois ela franze o cenho,sela os lábios surpresos e me encara feito um sopro de nevasca,um pedaço de gelo gigante esmagando meu corpo. Estremeço,o arrependimento é uma coisa fria e cortante assim.
- Ast,e-eu..não quis...
- Não mamãe,eu estava errada...a senhora é como todo mundo.
- Querida não eu..
Eu quero gritar, dizer a ela que estou perdida e me sentindo vazia,que é uma sensação tão esmagadora que me apego a única certeza presente na vida: Prudente,o Grande Céu,as Madas e os Reverendos..é a única coisa sólida para se agarrar e mesmo assim..é a única coisa sólida que me aperta até os ossos.
Quero dizer a ela que a amo mais do que tudo, que esta mulher falando não sou eu e sim uma cópia barata das coisas que ela tem medo.
Mas minha filha não pode ouvir pensamentos enquanto sai do cômodo, ela fecha a porta do quarto com força, a batida me dá um susto, sinto que preciso chorar, mas as lágrimas estão secas no estômago.
Encaro as panelas limpas e abro um sorriso cansado,talvez um pouco insano.
Arrumei a cozinha inteira,varri o chão,sacudi os tapetes,ajeitei os potes de vidro e organizei a dispensa. Depois fiz tudo isso novamente,só para ter certeza.
Certeza sobre o quê? Nenhum esforço dobrado fará as mulheres me aceitarem logo,nem minha filha voltar a falar comigo sem uma carranca no rosto.
Estamos presas nesta tensão há mais de uma semana e acho que estou enlouquecendo.
Ast já foi para a escola,nem quis os biscoitos de leite,os favoritos dela..
Passo a tarde toda limpando o quintal,minhas botas e as de Astra também,pego ovos do galinheiro,varro as folhas que sujam a entrada da casa,deixo o jantar pronto, me deixo ficar exausta até não aguentar lavar um prato sequer.
Então apenas me jogo na cama só de camisola, com as madeixas emboladas e cheias, Daniel nunca gostou do volume do meu cabelo, as tranças eram o único jeito de amenizá-lo.
Solto uma risada amarga, imaginando sua adoração pelos fios lisos e brilhantes de Ivy Island, pura na sua arte de seduzir homens comprometidos.
Não acredito que ela faça de propósito, acho que os homens se deixam levar pela beleza com facilidade e ela por fim, não os impede, seduzida pela mesma luxúria.
Suspiro, o bolo se forma na garganta, me lembro de quando fui a sua casa, da conversa estranha sobre xícaras e estações, e o perdão, eu me lembro do perdão.
"Não adianta não é?"
"Eu sempre vou ser a mulher imoral que o seduziu".
"A bruxa adúltera."
Não a perdoei de verdade.
A verdade é que nunca foi sobre Daniel e sim sobre a natureza extravagante dela - comparada à escassez da minha.
São os sentimentos mais estranhos que já senti em vida, às vezes desejo ser como ela, às vezes ela parece abominável e estrangeira, outras vezes ela parece...a coisa mais fascinante do mundo.
Tudo o que Ivy Island diz ou faz fica grudado em mim feito coceira, lapsos agressivos dela me perseguem até que eu consiga dormir, semelhante a uma febre, uma doença.
Tenho raiva de tudo o que Island é, seu impacto inevitável, tenho raiva pois parece tão certo que Daniel a escolheria, tão certo que qualquer um a escolheria.
Como um homem volta para a esposa feita de tardes cinzentas depois que experimenta o brilho do sol? Quando teve mãos quentes e olhos dourados agarrando sua alma como se agarra um sonho inacreditável?
A imagem e a sensação dos lábios dela impedidos pelo meu indicador já foi o suficiente para entender, a cor dos olhos se movendo em agitação - castanhas, nozes frescas, pedrinhas de ouro minerado.
Suspiro e afundo o rosto no travesseiro.
Ivy Island é uma bruxa imoral e estranha, mas até bruxas imorais e estranhas merecem um perdão honesto e palavras sinceras.
Preciso endireitar as coisas.
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