capítulo 1: um lugar bem longe daqui
MANCHESTER, 23 de agosto de 2024
Nunca entendi a graça dos aeroportos. As pessoas vem e vão, entram e saem, os aviões são lançados nos ares e percorrem vários quilômetros até chegarem aos seus destinos. Admito que falando assim parece prático, mas não é. Estamos falando de física e gestão. Uma aeronave pesada e gigante é capaz de sustentar a si mesmo e centenas de pessoas, só com as forças que atuam sobre.
É inacreditável, mas funciona.
Nunca fui muito fã de viagens, sempre preferi terra firme, a segurança — não que não exista lá em cima, só acho que as porcentagens diminuem — que estar com os pés nos chão me transmitem. Acho que por isso nunca entendi a graça dos aeroportos. Não sinto a emoção que a maioria das pessoas sentem ao planejar uma viagem, passar horas esperando o embarque e ainda sorrir como se tivessem alcançado o maior objetivo da própria vida. E não é. Não para mim.
Olho ao redor e vejo várias pessoas esperando. Aqui é realmente o lugar onde se espera. Só não sei o que eu tô esperando.
O som de mais um avião decolando soa e me desvia a atenção. Consulto às horas no relógio e me xingo mentalmente por ter passado tanto tempo na mesma posição, perdida em pensamentos. Isso aqui não dará em nada. Nada de bom pode sair disso.
Me levanto e caminho em direção às saídas do aeroporto. Passos largos, desviando da maioria das pessoas que caminham em direção ao embarque.
É quando, por acidente, esbarro em um rapaz. Eu me desequilibro, quase tombando para trás, mas sou rápida e consigo me manter em pé. Tudo acontece muito rápido, mas consigo visualizar o sujeito se esgueirar para tentar me segurar. Ele não é tão ágil, mas percebo sua tentativa.
— Me desculpa! — O rapaz disse. Seu tom é de culpa. Analiso seu corpo rapidamente e ele está vestindo um uniforme de companhia aérea. Piloto, comissário, algo do tipo. Ele trabalha aqui.
Tento tranquilizá-lo:
— Tudo bem.
— Não, não, eu sou um desastre! Tem certeza de que está bem? — Ele insistiu, me olhando fixamente. Seus olhos são azuis, tão azuis que quase parecem transparentes.
— Estou bem — eu repeti, seca. O rapaz parece não acreditar muito na minha confissão, pois continua me observando, esperando alguma fração de mentira. Mas estou bem. A preocupação em seus olhos continua, o que me faz perceber que ele não está tranquilo, só por isso, reforço minha resposta: — Não foi nada. Foi um acidente. Estou bem.
Ele assente, respirando fundo e me lançando um sorriso singelo.
— Certo...
Balanço a cabeça em um aceno vergonhoso e tento uns passos em direção as portas gigantes de vidro, dando às costas ao tripulante e ao embaraço que essa situação se tornou. Um simples esbarrão, mas parecia que ele tinha me atropelado e fugido do local. Não ouso olhar para trás, porque instigar o que quer que defina isso está fora de cogitação.
Longe do aeroporto e a caminho de casa, repasso alguns itens que preciso comprar no mercado. Tia Aura me deu a lista há três dias, mas fui incapaz de relembrar seu pedido. Agora, mais calma e tranquila, a questão parece bem mais preocupante e imediata do que parecia na noite anterior. Ela me pediu isso há dias.
Checo meu celular, não há ligações, mas há umas duas ou três mensagens de tia Aura, muito provavelmente curiosa e preocupada com a minha localização. Saí sem dizer onde ia há mais de 3 horas. Na verdade, eu saio várias vezes na semana sem dizer para onde vou. Ninguém sabe das minhas incontáveis vinda até o aeroporto, ninguém nem suspeitaria disso, nem mesmo minha tia. Caso soubesse, só a deixaria mais preocupada com minha situação, e talvez até teria razões para questionar minha sanidade.
A ida até o marcado é rápida e o regresso para casa também.
Assim que estaciono na garagem, um movimento no interior da casa é visto. Pulo do carro, acomodando as compras em meus braços. Antes mesmo de subir os pequenos degraus da escada, tia Aura aparece. Sua face está em um misto de raiva, angústia e alívio. Não sei o que mais me assusta.
— Onde é que você estava? — A senhora de quase cinquenta gritou, mal se movendo.
Balanço a cabeça.
— Só fui dar uma volta.
— Uma volta!? — Ela berrou, exagerando. Passo por ela e caminho até a cozinha. Pouso as compras na bancada, esvaziando as sacolas. — Uma volta de quatro horas? Uma volta é daqui até a esquina, Olívia. Ao mercado. Onde é que você foi? Aliás, você tem ido em vários lugares e eu nem sequer sei onde você está ou onde procurar se alguma coisa acontecer.
— Bem que poderia acontecer alguma coisa — respondi rapidamente, sem pensar, mas no segundo seguinte me arrependo.
O olhar de tia Aura se entristeceu.
Droga.
Solto um longo suspiro, pensando no que dizer a seguir para tranquilizá-la.
— Desculpa, não quis dizer isso — me apressei em explicar. — Prometo não voltar a fazer isso, tudo bem?
Ela estala a língua, desconfiada.
— Qualquer dia desses você vai me matar de preocupação — ela admitiu. Seu tom é divertido, aliviado. Me aproximo e a puxo para um abraço. — Você fez meu mercado?
Balanço a cabeça.
— Finalmente.
Pois é. Finalmente.
— Vou tomar um banho, ok? Já te ajudo com o jantar — avisei, já subindo às escadas. A mais velha assente e começa a separar as panelas.
No andar de cima, separo uma roupa e pulo no banheiro. Demoro alguns minutos a mais do que deveria no banho, mas assim que termino, metade do peso que se acumulou nos meus ombros vai embora, como se nunca tivesse existido.
Visto umas roupas quentes e desço. Minha tia está lavando alguns legumes atentamente, e por mais que eu lute contra, o pensamento intrusivo me trás memórias que tanto tento esconder. No entanto, elas são rápidas. No segundo seguinte, no lugar da minha tia, está minha mãe, na mesma posição, lavando os legumes e conversando com meu pai, em pé, próximo ao armário com uma embalagem de pringles aberta. Minha mãe reclama, dizendo "o jantar está quase pronto e você está comendo batatas industrializadas?". Ela está brava, mas se derrete quando meu pai se aproxima, deixando um beijo em sua têmpora.
Logo depois, eu entro na cozinha e me junto ao meu pai, sorridente. Nós dois contra minha mãe. Roubo uma "batatinha industrializada". Não sei sobre o que conversávamos depois disso, mas sinto a sensação de falta me abater, de ausência, me sinto sozinha, esquecida. Sinto a ausência dos meus pais me consumir completamente.
Quero fugir. Quero gritar.
Volto a realidade com um nó na garganta, me sentindo impotente.
Minha tia está me olhando, e sei que ela sabe exatamente o que está acontecendo. Venho lutando para não demonstrar esses sentimentos, para me manter firme e tentar superar a morte dos meus pais. Já faz cinco mesmo. Quase cinco meses. Mas a dor parece que nunca vai embora. O sentimento ruim parece que nunca se dissipa.
— Olívia?
Pisco várias vezes.
— Você está bem?
Faço que sim, engolindo em seco.
— Estou sim, está tudo bem — garanti. — Quer ajuda com os legumes?
Tio Joel se juntou pouco tempo depois de começarmos a preparar o jantar, e não demorou muito Noah também, meu primo. O jantar acontece e está tudo muito saboroso. Tio Joel conta como foi seu dia, Noah reclama das aulas da universidade e do quão complicado está manter a frequência de estudo. Admiro a insistência de Noah, diria até que o invejo por tamanho foco.
Quando eu era mais jovem, no ápice da minha juventude, eu gostava de estudar, era uma aluna dedicada. Me formei no auge dos meus vinte e três e segui no ramo administrativo por seguinte a minha formatura. Eu gostava do que fazia, gostava de ser boa o bastante para superar qualquer um que tentasse ocupar meu lugar. Me sentia invencível.
— Não é, Olívia?
Pisco incontáveis vezes, sendo desligada dos pensamentos.
— O quê?
Meu primo retomou:
— Sua comida está uma delícia. Comentei que na sua primeira semana aqui quase tivemos problemas com intoxicação alimentar. Por sorte sobrevivemos.
— Pois não é para tanto!
Noah sorri, divertido.
— Sinto muito, minha filha, mas ele tem razão — Tio Joel rebateu.
O encaro, indignado.
Tia Aura ri, baixinho.
— Seus mentirosos! Então, quer dizer, que o elogio "sua comida está muito gostosa" era tudo enganação? — Faço uma pergunta retórica. Eles riem. — Estavam apenas fingindo! Nunca mais cozinho para vocês, seus falsos.
Meus tios e Noah continuam rindo. Eu me divirto também, tentando prologar o momento. Infelizmente, ele termina, mas é bom enquanto durou.
Pouco tempo depois, finalizamos o jantar e meus tios se recolheram. Noah me ajuda com a louça e organizamos a bagunça, deixando toda cozinha limpa e ajeitada para o café da manhã seguinte. Mantemos silêncio, mas ele não é desconfortável. Gosto do quão silencioso está o ambiente, me sinto flutuando.
— Boa noite, Olívia.
— Boa noite, Noah — retribuí.
Ele acena e se recolhe.
Faço o mesmo. Meu quarto está quente, a cama bagunçada e algumas roupas e objetos fora do lugar, mas isso não me incomoda. Ignoro e rapidamente me acomodo na cama, cobrindo metade do meu corpo. Aquecida, fecho os olhos e deixo a sonolência me percorrer por completo. Não demora muito, estou quase dormindo, sentindo a leveza do sono me transportar para algum lugar bem longe daqui.
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