Cap. 51: Você fica melhor quando sorri
Tão logo se sentiu seguro após empreender a fuga desesperada de Namino e seus comparsas, ele parou em um local onde ainda era possível ver o vilarejo ardendo em chamas na escuridão da noite sem lua nem estrelas. Os olhos rubros, num tom de vermelho quase vinho, ficavam marejados mais uma vez.
Estava sozinho. Sozinho no mundo.
Era um menino que chorava e soluçava assustado e triste. Mesmo com tão pouca idade, sabia que perdera tudo. Sabia que não tinha mais casa e não tinha mais pai nem mãe. Não tinha mais nada. Secando os olhos com as mãos, o menino solitário que fugira descalço e com a roupa do corpo começou a vagar a esmo no meio do nada, na escuridão total da noite.
Seguiu uma direção qualquer em linha reta e andou por várias horas, noite e madrugada adentro. Quando surgiram os primeiros raios de sol de um novo dia, o garoto de cabelos prateados se deparou com uma cena que, dali em diante, seria algo rotineiro em sua vida.
Um campo de batalha recém-abandonado, repleto de cadáveres e corvos.
Enquanto via aquela velha casa abandonada sendo consumida pelas chamas, Gintoki agora entendia claramente por que aquelas lembranças ficaram bloqueadas em sua memória durante duas décadas. Mesmo tendo decorrido esse tempo, eram momentos extremamente tristes, que ainda lhe infligiam muita dor.
Não que não se lembrasse de que perdera os pais cedo. Disso ele sempre se lembrava, mesmo que vagamente e a partir daí ele passara a viver parte de sua infância saqueando cadáveres nos campos de batalha para sua própria sobrevivência. E, depois disso, Shouyou-sensei o encontrara e lhe acolhera como um pai faria, dando-lhe alguma dignidade.
Lembrava-se disso muito bem, embora lhe reabrisse algumas feridas eventualmente. Mas sua memória tinha uma forma de selecionar que lembranças ele poderia reviver sem se ferir de uma forma que fosse insuportável. Ela se valia de alguns mecanismos como bloquear totalmente ou borrar alguns momentos de sua vida, para que ele se protegesse de si mesmo.
Aquele período lutando pela própria sobrevivência, tanto na infância quanto na adolescência e após lutar na guerra, era algo que ele revivia ocasionalmente, mesmo que lhe doesse. Mas de alguma maneira servia para que nunca se esquecesse de onde viera e pelo o que passara até chegar ao que era atualmente. Também servia para que ele tivesse certa maestria em manter determinados sentimentos somente para si, de tal modo que praticamente ninguém perceberia quando havia chorado sozinho, longe da vista de todos. Ninguém precisava saber. Seu passado era seu fardo. E esse fardo ele tinha que carregar sozinho...
... Assim como essa tristeza e essa dor que pesavam em seu coração, de lembranças tão vívidas, tão dolorosas que ele preferia que sua memória não as tivesse desbloqueado.
― Sabe – ouviu a voz de Tsukuyo ao seu lado. – Dizem que as melhores espadas levam mais marteladas enquanto são forjadas. Provavelmente isso também se aplica a pessoas.
Ele nada respondeu, mas sabia a que ela se referia. Ela o encarou, seus olhos violetas perscrutando os dele, buscando entendê-lo. Queria que seu olhar fosse acolhedor, um refúgio para o albino.
― A vida te forjou para ser uma pessoa incrível. Talvez isso tudo tenha ocorrido para nos moldar, para que em algum momento sejamos capazes de fazer a diferença na vida de alguém. Você fez a diferença na vida da gente – a kunoichi disse, referindo-se também a Shinpachi e Kagura, que se aproximavam. – Você nos ajudou a carregar nossos fardos. Nem tudo você precisa carregar sozinho e você sabe disso, não é?
― Nós também somos uma família, Gin-san. – Shinpachi se pronunciava. – Sempre que precisar, pode contar com a gente pra qualquer coisa.
― Gin-chan – era Kagura. – Você fica melhor quando sorri, sabia?
― Você fica melhor quando sorri, sabia?
― Não é engraçado cortar o dedo, mãe! – ele fez bico enquanto a mãe lhe fazia um curativo. – Doeu!
― Eu sei. Todo machucado dói... Mas a dor passa.
― Não dá pra sorrir antes da dor passar.
― Mas ela vai passar, não vai?
Ele assentiu concordando. Sim, aquela dor no dedo cortado por uma pedra iria passar. Assim como passou a dor do último hematoma, das últimas escoriações, dos últimos arranhões... Sim, aquela dor iria passar também.
E com essa certeza ele sorriu, o que fez com que sua mãe também sorrisse.
― Viu só, Gintoki? – ela disse. – Você fica melhor quando sorri. Mesmo quando parecer que nada vai te fazer feliz, sempre arranje um motivo para sorrir.
Encarou a mãe com um olhar confuso. Não tinha entendido.
― O que eu quero dizer é que você sorriu porque sabe que a dor do machucado vai passar. E se algo triste acontecer com você, acredite que algo bom também vai acontecer. E sorria acreditando nisso, está bem? Sempre arranje um motivo para sorrir. Você fica melhor quando sorri.
Tudo ao redor dele se escureceu e ele se viu sozinho. Sentiu-se sozinho no mundo, mas à sua frente surgiu uma garotinha loira com olhos violetas e o abraçou. Seus olhos rubros se arregalaram com aquele gesto, mas logo em seguida surgiu um garotinho de cabelos pretos e olhos castanhos, para também abraçá-lo. Por fim, uma garotinha ruiva e olhos azuis, vestindo capa de chuva, também fez o mesmo.
Ele sorriu, a princípio, timidamente. Mesmo tomado pela dor daquelas lembranças, sorria, pois voltava a ter certeza de que não estava mais sozinho. Ele havia perdido pessoas queridas no passado, mas no presente também tinha pessoas sem as quais não conseguia imaginar como seria sua vida.
O adulto Gintoki alargou ainda mais seu sorriso ao sentir o calor daquele abraço dado por Tsukuyo, Shinpachi e Kagura. Embora ainda sentisse o impacto e a dor daquelas lembranças que reabriam feridas há tanto tempo fechadas, aparentemente cicatrizadas, ele sabia que aquela dor ia passar. Já sofrera tantos golpes na vida, tantas dores decorrentes deles... E elas passaram. E esta dor também iria passar.
Lá no passado, sua mãe tinha razão. Hoje, no presente, Kagura também tinha razão.
Ele ficava melhor quando sorria.
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