Capítulo 4 - Sussurros
Adril estava na cozinha do Castelo de Armas, catando pães mofados à pedido de seu irmão.
Embora não soubesse, ao certo, o motivo, o mais jovem confiava nas capacidades de Igniv.
Ele encontrou muitas coisas mofadas na cozinha e as levou para Igniv, que o aguardava no quarto.
Adril percebia que seu irmão estava pálido e suado, o que o preocupou. Seu ferimento estava repleto de sangue seco e a carne, ao redor, encontrava-se avermelhada.
O loiro tracejava, com dificuldade, um círculo no chão, usando um pedaço de pedra que soltava um pigmento claro.
Igniv fez um círculo menor, no centro. Ele improvisou um pedaço de ombreira, colocando de ponta cabeça, a fim de formar uma cavidade em forma de concha, pois não encontrou taças ou tigelas.
— Coloque os que têm bolor esverdeado na ombreira. — Pediu com uma voz vacilante.
Adril o obedeceu. Quase todos os pães tinham o bolor em tons de verde. O alquimista, então, começou a escrever ao redor do círculo menor.
— Adril, pode trazer algumas velas? — Igniv murmurou a perguntar, no que o irmão obedeceu com pressa.
Saiu do quarto e procurou por todo o castelo. Em dado momento, ele viu velas sobre a mesa que Amaro usava. O comandante estava debruçado sobre ela, olhando um mapa, o que intimidou o rapaz.
Porém, estava fazendo aquilo por seu irmão. Adril se lembrou do corpo de sua falecida mãe, do olhar vazio do pai antes de cair morto e da sensação de cortar a garganta do soldado de Flumeridis.
E as lágrimas inundaram os olhos. Seu peito apertou e o sufocou. Foi difícil respirar, como se a dor esmagasse seus pulmões.
Quando deu por si, percebeu a névoa escapando de sua boca. Também ouviu sussurros, não os entendia, mas percebia serem de várias pessoas diferentes.
Eram os mortos.
— O que está fazendo? — A voz grave de Amaro o despertou. Ele segurou a empunhadura da espada e ficou de pé, com olhos atentos sobre o rapaz de cabelos negros.
Em um susto, Adril aspirou toda a névoa, o que o fez sentir um ardor gélido no tórax. Os sussurros se calaram e o coração bateu com força.
— Desculpe, eu ainda não controlo muito bem.
— Pois trate de aprender ou alguém pode te matar.
— Perdão.
— Não me peça perdão, estou te avisando para a sua própria segurança. Você me assustou e eu estava pronto para te matar.
Um arrepio percorreu Adril. Ele sentiu medo e quase hesitou, mas se lembrou do irmão.
— Preciso de velas.
Amaro olhou, de relance, para as velas e tornou a encarar o jovem.
— Você não irá brincar com mortos aqui.
Por mais que Corviv os ajudasse, o exército não confiava nele. E, consequentemente, não confiava em seus filhos.
Era difícil, para Adril, lidar com as atitudes do pai. Ele tentava entender o genitor, mas ainda assim, se decepcionava.
— Não é para mim. Meu irmão é alquimista, ele precisa das velas. — Adril não podia desviar os olhos, por mais difícil que fosse. — Por causa do braço.
Sem tirar os olhos do rapaz, Amaro ergueu a mão, catou algumas velas e as entregou para o moreno.
"Ele não teme a Alquimia." — Adril pensou.
Sempre soubera que as Artes das Sombras não eram bem vistas por todos os moradores de Anesamar, porém estivera disposto a pagar o preço da desconfiança para tentar ficar próximo do pai.
Do que adiantou?
Adril apressou-se para retornar até o irmão. Quando lhe entregou as velas, Igniv usou quatro delas, formando linhas invisíveis de um quadrado perfeito.
O rapaz chocou duas pequenas pedras sobre algumas palhas que retirou do colchão e logo as faíscas deram lugar ao fogo. Os olhos cinzentos, do alquimista, pareciam brilhar ao fitar as chamas.
Ele acendeu as velas usando o fogo da palha. Adril observou as chamas se arderem no pavio. Elas cresceram mais do que o normal e formaram pequenos redemoinhos flamejantes. Em seguida, em uma velocidade absurda, consumiram todo o pavio e a cera derreteu.
Os olhos do caçula foram até Igniv, impressionados. Nunca havia o visto transmutar, apenas ouvia o que o loiro o contava.
Adril olhou para dentro da cavidade da ombreira onde colocou os pães embolorados e, para sua surpresa, viu um líquido cristalino e oleoso.
O mais velho afundou os dedos no recipiente e o passou sobre o ferimento. Soltou um grunhido de dor, mas logo se recompôs.
Em seguida, pegou o pedaço de tecido, que Adri lhe deu.
— Esse está encharcado de sangue. — O moreno observou. Ele retirou a adaga da bainha e viu o sangue do homem que matou.
As mãos do rapaz tremeram e sussurros invadiram os seus ouvidos.
"Você é um demônio de Anesamar." — Adril ouviu nitidamente e teve certeza que foi o espírito do soldado que ele matou.
— Adril? — A voz de Igniv o trouxe de volta.
— Ah, perdão... — E, voltando a si, os sussurros se calaram. Adril cortou um outro pedaço da túnica e o entregou para Igniv.
— Se continuar assim, vai ficar pelado. — Provocou, embora os olhos estivessem abatidos.
— São só tiras. Você deve melhorar antes de eu usar toda a túnica...
O alquimista apenas sorriu tristemente para o irmão, como quem encontra luz na escuridão.
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Igniv ajudou Adril com seu corte na testa, passando um pouco do líquido oleoso no ferimento. A dor sumiu dentro de instantes.
Não tardou muito para que o mais velho recuperasse a cor nos lábios e ficasse mais disposto. Os irmãos descansavam nos colchões, cada um em silêncio, com suas próprias dores.
Porém, a tranquilidade não durou muito. Sons altos foram ouvidos no pátio do castelo. Choros, gritos e passos altos.
Adril sentiu um arrepio e os sussurros voltaram, ainda mais intensos.
— Morte... — Balbuciou, o que fez Igniv o olhar assustado.
— Vamos fugir daqu! — O loiro se levantou da cama, mas foi surpreendido por Liviella, que entrou bruscamente no quarto.
— Igniv! — Ela o chamou, olhando nos olhos. — Você é alquimista, certo?
— Sim...
— Precisamos de você! Trouxemos os feridos para o castelo!
O rapaz assentiu e olhou, por cima do ombro, para o irmão, que se levantou e o seguiu.
Os três saíram do quarto e os irmãos se depararam com uma cena infernal: dezenas de pessoas machucadas. Alguns sentados, outros caídos no chão. Gotas e manchas de sangue banhavam o chão cinzento. Algumas das pessoas estavam mais mortas do que vivas e outras estavam mutiladas.
— É muita gente... — Igniv observou.
— Claro! Estamos em guerra! — Liviella rebateu. — Consegue fazer algo por elas?
Adril viu o irmão engolir seco e assentir.
— Falhar não é uma opção. Mas eu preciso de mais materiais.
— Do quê precisa? — A comandante indagou.
— Pães e queijos embolorados, caldeirões e muitas velas. Preciso de um pouco de cobre também. E algumas ervas.
— É muita coisa. Posso tentar encontrar aqui, mas duvido que haja cobre e ervas e que os queijos e pães sejam o suficiente.
— Igniv, vocês têm essas coisas na Academia Central? — Adril indagou.
— Sim.
— Eu posso buscá-las.
Os olhos cinzentos do alquimista se arregalaram e ele franziu o cenho.
— Você está maluco? Lá fora está cheio de soldados de Flumeridis!
— Eu sei! Mas eu preciso do meu grimório e essas pessoas precisam de você!
— Não, Adril! — Igniv disse com firmeza.
— Eu acompanho ele. — Liviella se prontificou.
Os olhos negros de Adril foram até a comandante. Seu ombro ainda estava fora do lugar, dando-lhe um aspecto retorcido. E seus olhos carregavam coragem. Uma alma viva em um corpo morto.
A hesitação veio nos olhos de Igniv, que encarou os dois ali.
— Certo... — Disse com resignação. Sua voz saiu firme e baixa.
— Coloque meu ombro no lugar. Ele está atrapalhando os meus movimentos. — Liviella pediu.
Igniv o fez, segurando o braço dela e empurrando sua clavícula. O estalo alto foi ouvido, e sua postura voltou ao normal. Nenhum resquício de dor atingiu o corpo morto de Liviella. Os feridos, que ainda estavam , assistiram a cena com horror nos olhos.
— Vamos, Adril. — Liviella falou ao se afastar do mais velho. Ela cobriu a cabeça com o capuz da capa que Adril lhe dera.
Antes do jovem a seguir, ele sentiu Igniv segurar seu braço.
— Não morra. — Pediu o alquimista.
— Não vou. — E se esforçou para sorrir antes de partir com Liviella.
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Os dois vagaram pelas ruas de sangue. Abutres e moscas tinham forte presença em Anesamar. O cheiro fétido de putrefação invadia suas narinas. Tudo o que se via era a morte.
Não foi difícil chegar até a Academia Central. Tratava-se de uma construção quadrangular, sem torres e construída por pedras esbranquiçadas. Os portões se encontravam escancarados.
Adril e Liviella entraram na academia e encontraram tudo revirado e quebrado. Um nítido sinal de saque.
O espaço era grande, repleto de salas e salões. Eles não faziam ideia de por onde começar.
— Merda, vai demorar muito! — A voz rouca da comandante ressoou.
— Não temos muita escolha a não ser procurar.
Ela assentiu.
— Podemos nos separar, você procura do lado esquerdo e eu do direito. — Adril sugeriu.
— Não! — Foi categórica. — Falei para seu irmão que te acompanharia.
— E você está me acompanhando.
— Igniv disse muito em poucas palavras, assim como eu. Acho que você não entendeu.
O rapaz ficou confuso com o que Liviella disse, sem saber exatamente o significado das palavras dela.
— Vamos! — Ela interrompeu o fluxo de pensamentos dele.
Os dois foram de sala em sala, correndo e procurando o cobre, as ervas e pães ou queijos embolorados.
Em dado momento, entraram em um cômodo com mesas de madeira e bandejas de metal. Pequenas pedras alaranjadas brilhavam entre várias outras.
Liviella cortou um pedaço da capa, que Adril lhe dera, e fez uma trouxa. A comandante jogou as pedras dentro dela e a fechou com um nó.
E saíram da sala. Os passos acelerados seguiram pelos corredores em busca dos outros ingredientes.
Vagaram, exaustivamente, por todos os compattimentos e não encontraram os alimentos embolorados e as ervas em lugar nenhum.
A desperança consumia Adril, o suor em sua face fazia os cabelos negros grudarem na pele. Aquelas pessoas feridas e moribundas não saíam de sua cabeça, lembrava-se dos sussurros que a acompanhavam.
Eram as almas se desprendendo, chegou à conclusão.
Com a cabeça afundada nos pensamentos, sentiu os pés tocaram algo oco. Ele olhou para baixo e percebeu estar sobre uma porta de madeira que parecia ser a entrada de um alçapão.
— Liviella! Aqui! — Sussurrou e atraiu a atenção da comandante.
— Eu vou na frente. — Ela se prontificou a agachar e puxar a maçaneta, revelando um porão escuro. Sem pensar duas vezes, Liviella pulou na escuridão.
Adril ouviu o som de seu corpo pousando e uma nuvem de poeira se levantou.
— É baixo, pode pular. — A voz rouca ecoou e assim Adril o fez.
Ele aterrissou facilmente. O teto do porão não era muito alto, sendo apenas alguns palmos maior que a altura de Adril.
— Me siga. — Liviella falou. — Merda, é muito escuro.
Por alguma razão, a escuridão não atrapalhava o rapaz. Ele não enxergava nada, mas sentia paz ali.
Os sussurros vieram mais uma vez. Um grunhido incômodo escapou dos seus lábios.
— O que foi? — A mulher indagou.
— O som das almas se desprendendo... — Uma das mãos foi até à cabeça, como se tentasse fazê-las ficar quietas. — Eu posso ouvi-las.
Adril identificou um sussurro mais alto que os demais.
Estava perto. Muito perto.
Ele deu um passo à frente e percebeu que o ruído aumentou. E então, o rapaz seguiu os ouvidos. O tintilar dos anéis metálicos denunciavam Liviella o seguindo.
— Para onde você está indo? — Ela indagou.
O pé de Adril tocou em algo. O sussurro havia se transformado em um grito alto. Sua cabeça estava zonza e atordoada.
Abaixo de si, uma alma abandonava um corpo, era de lá que vinha o som. O jovem se agachou e tateou o escuro. Suas mãos alcançaram o tórax de alguém. Parecia um homem, estava usando uma túnica úmida de sangue.
— Se acalme. — Adril murmurou.
"Eu quero viver..." — Conseguiu, por fim, entender o que o grito dizia.
— Sinto muito, mas é hora de você partir. — Respondeu com um nó na garganta.
"Me ajude."
— Só posso te ajudar a ir embora em paz. — Ele falou em sussurros. As mãos tremiam e tudo que Adril queria era fugir de lá. Mas sabia que não era justo. Ele iniciou nas Artes das Trevas por vontade própria e aceitou aquele calvário.
"Eu tenho família."
— Eles vão ficar bem.
"Não! Eu não quero ir!"
— O seu medo vai passar e você vai sentir paz. Feche os olhos e solte a vida que segura. — Um arrepio percorreu o artista acólito.
"Não..."
— Estou aqui com você. Feche os olhos, eu não te deixarei sozinho até você ter partido.
"Promete?"
— Prometo.
A temperatura caiu ainda mais. O jovem começou a tremer, os lábios e dedos ficaram dormentes e a pele ardeu pelo frio.
— Vá em paz. — Ele próprio fechou os olhos, como se encarasse a própria morte.
E, por fim, sentiu paz. A voz se calou e o calor retomou ao lugar, para o alívio de Adril.
— Foram palavras bonitas. — A voz de Liviella quebrou o silêncio.
— Ele estava com medo.
— Assim como todos que morrem.
— Não consigo ignorar os sussurros. Os outros artistas os escutam, mas eles sabem viver com isso.
— Espero que você nunca aprenda.
Ele se assustou com as palavras dela. Adril sabia que, se não se acostumasse com o som das almas, enlouqueceria. Uma vez iniciado, já não era possível voltar atrás.
— Vou perder o juízo se não aprender. — Rebateu com firmeza.
— Seu pai era um homem frio. Ele e todos os outros artistas das sombras que conheci. Imagino que aprenderam a viver com o som da morte.
— Sim.
— E você não. Não vejo frieza em você, Adril. Me parece que é um homem gentil. Todos merecem ouvir palavras como as suas enquanto morrem. — Ela hesitou por uns instantes. — Eu fui morta em combate, a última coisa que vi foram os olhos de Aurel. Daria tudo para ter partido com suas palavras me acalentando. Então, não mate o homem que é para se tornar uma pedra de gelo. O mundo precisa de pessoas como você.
O nó na garganta de Adril voltou. Ele quase pôde sentir as lágrimas nos olhos, mas não era momento para chorar.
— Obrigado. — Disse, sem saber exatamente quais palavras usar. Ele sentiu uma tranquilidade imensa no peito e teve forças para ficar de pé.
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A comandante subiu pela entrada do porão e trouxe tochas para iluminar o local.
Eles encontraram várias mesas repletas de cogumelos, pães e queijos embolorados e colocaram o máximo possível na trouxa improvisada.
Puderam visualizar o homem morto. Ele havia sido ferido no abdômen, provavelmente por uma espada a julgar pelo corte. Sua feição estava tranquila, como quem dormia.
A dupla saiu do porão e coletou o máximo de velas possíveis. Infelizmente, não encontraram as ervas que Igniv pediu. O alquimista teria que se virar com o que tinha.
Os passos apressados fizeram o caminho por onde vieram, atravessando pelos corredores.
Através das portas escancaradas, do castelo, já eram capazes de enxergar o lado de fora.
Se não fossem os três soldados inimigos que a atravessaram. Um deles carregava uma besta que disparou e acertou a garganta de Liviella, pois ela entrou na frente de Adril.
Não seria fácil sair de lá.
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