Capítulo 2 - Ruas de Sangue
A comandante era forte mesmo depois de morta. Rapidamente, Liviella desceu do altar e buscou e olhou para todos com o par de olhos azuis ferozes.
— Alguém pode me explicar o que é isso? - A sua voz era rouca como de alguém muito doente e também baixa.
Adril a observou com atenção. As escrituras, que Corviv fizera, haviam sumido, a pele cicatrizou abruptamente. Porém, os outros ferimentos continuavam ali, vívidos. O corte costurado na garganta era o mais chamativo.
— Meu pai e mestre Corviv fez um ritual de ressurreição em você. — O rapaz precisou juntar todas as forças que tinha para falar aquilo.
— O quê? — Os olhos dela brilharam, incrédulos. Em seguida, franziu o cenho e olhou em uma direção qualquer, era nítido que estava pensando em algo.
— Soldados de Flumeridis estavam carregando o seu cadáver quando te achamos. O meu pai os assustou e trouxemos você para cá.
— Corviv foi o maior artista das sombras do último século. — Dominos se manifestou. — Não é fácil trazer um morto de volta.
Liviella não respondeu. Ela olhou para as próprias mãos e cerrou os olhos com tristeza no semblante.
— Eu não... — Ela hesitou antes de continuar. — Eles invadiram o reino... Usaram uma bomba...
— A cidade está devastada. — Mais uma vez, Adril precisou de toda a sua força para falar.
— Não posso ficar aqui! — A comandante se exaltou e caminhou, em passos apressados, rumo à saída da câmara.
Como sombras, os artistas se moveram com agilidade, colocando-se no caminho dela para impedir sua passagem.
— O que vocês estão fazendo? — Liviella perguntou.
— Se Corviv reviveu você, foi por alguma boa razão. Não podemos deixar você ir sem descobrir.
Adril fitou o corpo do pai. Ele havia fechado os olhos do genitor e, portanto, o homem parecia apenas dormir nos braços do filho.
O rapaz o deitou no chão liso, de mosaicos vermelhos, e colocou as mãos de Corviv sobre o peito.
— Até o outro lado. — Sussurrou enquanto sentia as lágrimas molharem suas bochechas.
Com esforço colossal, o acólito ficou de pé. Sua mão agarrou a própria túnica, tentando aliviar o pavor e a tristeza que sentia. Ele engoliu seco e limpou as lágrimas com as costas da outra mão.
— Corviv era meu pai antes de ser um artista das sombras e eu o ajudei no ritual. Eu tenho mais direito de decidir o futuro de Liviella do que vocês.
A própria Liviella o olhou surpresa com as palavras, havia um brilho de ofensa em seu semblante também.
Os outros o encararam com espanto e ressentimento. Exceto Dominos, que assentiu com um sorriso nos lábios.
— Ela é uma mulher livre. Ninguém aqui têm o direito de a impedir de sair. Meu pai não morreria para reviver uma prisioneira.
Um silêncio sepulcral se instaurou enquanto as pessoas ali, aos poucos, se afastavam da porta e deixavam a passagem livre.
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Pouco depois, Corviv foi levado para a câmara fúnebre, onde se velava o corpo dos artista das sombras. Adril, por sua vez, tinha a amarga tarefa de contar o que aconteceu à família e também de lidar com a comandante ressuscitada.
O jovem tirou a própria capa e a deu para Liviella, de modo que o capuz cobrisse o seu rosto e não chamasse atenção.
Os dois subiram as escadas e saíram da galeria. A dor no coração do rapaz era lancinante. Ele não conseguiu conter as lágrimas, apenas secá-las antes que outras pessoas reparassem.
A visão da cidade estava ainda mais devastadora do que quando Adril viu. Aves carniceiras a rodeavam com suas asas escuras. Por todos os lados, via-se mortos e feridos, que agonizavam.
— Merda... - Liviella praguejou. — Olhe o que eles fizeram...
— Preciso achar minha família! — Adril falou apressadamente e disparou a correr. A mulher o acompanhou.
Eles correram pelas ruas estreitas e íngremes de Anesamar. Por todos os lados, jaziam mortos. Homens, mulheres e até crianças.
Os olhos dela então percorreram, com pesar, pelo rastro de morte. Adril a viu se voltar para o cadáver, de um soldado de Flumeridis, e arrancar a espada de sua mão morta. Os dedos cinzentos da comandante agarraram a empunhadura da arma com familiaridade.
Eles continuaram a correr até alcançarem a esquina da rua em que a família de Corviv vivia, em uma ampla casa feita de pedras cinzentas, portas e janelas de madeira vermelha e telhas alaranjadas no telhado inclinado.
A construção emergia perante uma rua devastada. Fuligem, cinzas e mortos era tudo o que se via.
Gritos desesperados dos sobreviventes enchiam aquele lugar triste, junto do zunido de moscas e o som das asas dos abutres.
Os olhos negros, do acólito das Artes das Sombras, enxergaram algo que o quebrou em mil pedaços.
Viu seu irmão, Igniv, sobre um cadáver, enquanto gritava em fúria. Seu rosto estava machucado com hematomas e cortes e suas roupas estavam sujas.
O pior foi reconhecer o corpo morto: era Flora, a mãe dos rapazes.
Adril sequer sentiu seus pés correrem. Quando deu por si, já estava ao lado do irmão. A dor o eviscerava de tal modo que não conseguia chorar, calado pelo desespero.
— Eles mataram ela! — Igniv gritou quando o rapaz ajoelhou-se ao seu lado. Ele se parecia muito com Corviv, com cabelos cor de areia e olhos cinzentos. Mas onde o pai deles fora gelo, Igniv ardia em fogo.
Flora, a mãe deles, estava em seus braços. Adril, por sua vez, se parecia com ela, com os cabelos densos e negros e olhos escuros.
Havia uma perfuração no peito de Flora e sua mão gélida e rígida segurava uma adaga. O jovem preferiu estar no lugar da mãe a sentir o sofrimento que o consumia.
— Eles atacaram sem motivo! Eu tentei... Tentei defender... — Niv se sufocava com as palavras, ofegante.
Adril abraçou o mais velho. Sentiu os soluços do irmão altos e as lágrimas banhando sua túnica negra.
E ele também chorou. Permitiu-se chorar a ponto do abdômen doer pelos soluços. Igniv e Adril perderam o pai e a mãe naquela invasão cruel e sanguinária.
Um som alto e repentino, de lâminas se chocando, os afastou.
Eles viram Liviella lutando contra um soldado de Flumeridis que havia subido pelacrua. O movimento brusco, da comandante, fez o capuz deslizar para trás, revelando o seu rosto cinzento e mutilado.
— Que merda é essa? — Igniv indagou, agarrando o braço do irmão em meio ao susto.
O soldado também se assustou e paralisado de horror, não pôde se defender da espada que atravessou seu pescoço e fez jorrar sangue ao ser tirada de lá. Ele caiu de joelho e desmoronou para frente. Estava morto.
Adril não soube como explicar para Igniv o que havia acontecido, as palavras lhe fugiram.
Liviella, por sua vez, foi correndo até eles. A lâmina, de sua espada, estava banhada de sangue.
— Aqui não é seguro. — Sua voz fraca avisou.
— O que você é? — Igniv perguntou com horror.
— Niv... — Foi difícil para Adril soltar aquelas palavras. — Eu posso explicar.
— Isso é coisa do pai, não é? — Indagou revoltado, sem coragem de soltar a mãe caída em seus braços. — O que ele fez?!
— Corviv me trouxe de volta da morte. — Liviella foi firme e direta na resposta.
— Quem ele acha que é para fazer isso?
— Niv, o pai morreu ressuscitando ela. — Adril também preferiu ser direto.
E o que ele viu foi um par de olhos, cinzentos, ardendo em fúria. Igniv cerrou a mandíbula e franziu o cenho com raiva. Suas mãos tremiam sobre Flora.
— Ele mereceu. — As palavras saíram secas e ríspidas.
— Como você pode falar isso? — Adril indagou em um grito. As palavras do irmão o perfuraram como uma faca.
— O pai nunca se importou com a gente! E, ao invés de vir nos ajudar, ele tirou essa pobre mulher do descanso dela! Se aquele desgraçado estivesse aqui, a mãe não teria morrido!
— Não! Não tem como saber...
— Ele se importou em vir atrás da gente quando Flumeridis invadiu? Eu duvido.
Adril perdeu as palavras. Ele próprio insistiu para irem atrás de Flora e Igniv e Corviv se recusou.
— Eu sabia! — Igniv se manifestou. — Ele mereceu!
— Eu também não gosto do que aconteceu. Acham que estou feliz em ser um cadáver ambulante? — Liviella, por fim, quebrou seu silêncio. — Mas não é hora para chorar, precisamos sair daqui.
Os olhos de ambos foram a ela.
— Vamos. — A comandante insistiu. — Ou vão esperar para morrerem também?
Adril olhou para o corpo da mãe e suas lágrimas o cegaram. Com a visão enevoada, o rapaz viu Igniv afastar o corpo de Flora, o colocar sobre o chão e se levantar.
— Vem, Adril. — O loiro o chamou. — A mulher tem razão.
— Até o outro lado. — Despediu-se da mãe com as mesmas palavras que usou com o pai.
Atordoado, Adril ficou de pé. Ele não sabia como seguir em frente, mas sabia que precisava. Com o corpo da mãe deixado para trás, os olhos úmidos e a alma despedaçada, ele seguiu Igniv e Liviella - uma comandante morta-viva - adentrando a neblina de destruição que consumia Anesamar. O futuro era um território desconhecido e assustador.
Igniv
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