Capítulo 1 - O Filho
Adril estava caído contra o chão. Sua cabeça, zonza, latejava de dor. O sangue rubro escorria de um corte na testa.
Com esforço, ele se apoiou, com as mãos, e ergueu seu tronco. Viu seu pai caído diante dele. Eles estavam há alguns passos da entrada das passarelas subterrâneas.
Toda a cidade estava desolada, coberta pela fuligem cinzenta e repleta de cadáveres.
Ele pensou em Igniv e sua mãe. Sentiu um profundo desespero com a possibilidade de eles terem se ferido.
Com dificuldade, se levantou. Suas costelas doeram com o movimento. Adril correu em direção a Corviv, o seu pai e mestre, ignorando a própria dor.
— Pai! — Ajoelhou-se ao lado do homem e passou o braço por debaixo das suas costas.
O pai do rapaz abriu os olhos cinzentos e encarou o filho de forma atordoada.
— Foi uma explosão... — O mais velho falou com a voz fraca. — ...Forte demais pra ter sido só pólvora.
— Alquimia. — Adril disse.
— Alguém traiu Anesamar.
— Vamos sair daqui. — Adril colocou força e usou o outro braço para levantar o pai que passou o braço ao redor dos ombros do filho. — E ir pra casa! A mãe e o Niv podem estar machucados!
— Não! Temos coisas mais importantes para fazer.
— Pai! — Abriu a boca para contestar, mas foi interrompido por Corviv.
— Se eles estivessem mortos, saberíamos.
Adril, no passado, teve esperanças de conseguir o afeto do pai ao se tornar seu pupilo. Ledo engano.
Obedecendo Corviv, Adril se levantou junto de seu pai, apoiando-o. Eles deram passos em direção à escadaria do túnel.
Os degraus eram engolidos pelas sombras das abóbadas brilhantes e paredes adornadas das galerias, com padrões de mosaicos vermelhos e palavras e runas douradas.
Sons de gritos e risadas atraíram a atenção deles, junto com os cascos de cavalos trotando no chão.
Eram soldados de Flumeridis passando ali, na estrada que ficava a alguns metros da entrada da galeria. Adril puxou o seu pai para trás e colocou-se na frente dele.
— Adril, quieto. — A voz ríspida de Corviv cortou o ar.
Adril olhou para o genitor, que não disse uma única palavra. Seus olhos cinzentos falavam por si só, tão frios quanto gelo.
Naquele momento, o calor se dissipou e os cavalos relincharam, assustados. A luz pálida do sol parecia não ser o suficiente para iluminar a estrada.
— Joga ela aí. — Uma voz grave ordenou, vinda de um dos soldados à cavalo.
Foi só nesse momento que Adril viu que um dos homens carregava o cadáver, de algum soldado de Anesamar, na garupa.
— O general mandou levar ela paras as muralhas. — O outro rebateu.
— Tem alguma coisa acontecendo aqui. Esse povo é amaldiçoado. De repente ficou frio, escuro...
Era o Corviv. Sua maestria, na Artes das Sombras, o fazia ser capaz de roubar o calor e a luz.
A escuridão e o frio se tornaram mais opressivos. O próprio Adril se sentiu sufocado por eles e desejou não ser um daqueles soldados.
Os cavalos perderam o controle, arregalaram os olhos e correram. O cadáver foi empurrado para o chão pelo soldado que o levava. Outro não se segurou em sua montaria e caiu, enquanto o seu equino galopava para longe.
Desnorteado e com medo, aquele homem caído soltou um grito de pavor, sem nem mesmo entender o que o assustava.
Quando a morte se espreitava, a vida reagia. O homem tentou ficar de pé e caiu mais uma vez.
— Deixe ele ir... — Adril pediu.
Corviv não era um homem sentimental ou caloroso, mas ouviu o seu caçula e a escuridão se dissipou, tal como o frio.
O homem, outrora assustado demais para se mexer, saiu correndo.
— Pegue o cadáver. — Corviv ordenou.
— Mas por quê?
— Pare de me questionar e obedeça!
— Consegue ficar de pé sozinho?
Corviv se limitou a assentir. Seu filho o soltou e andou, apressadamente, até a estrada em que jazia a mulher morta.
Adril sentiu pena ao vê-la. Era uma mulher jovem, devia ter a sua idade ou a idade do seu irmão, entre 18 a 20 anos. Ela usava uma cota de malha. Seu rosto estava mutilado, com ferimentos por toda a sua extensão. Eles acumulavam o sangue seco e escuro e a garganta dela estava aberta em um corte profundo. Os cabelos, tão negros quanto os do próprio Adril, se encontravam emaranhados.
O rapaz levou as mãos para debaixo das costas da mulher e a pegou nos braços. Estava pesada devido à cota de malha.
Em passos lentos, voltou até o seu pai. Eles desceram as escadas devagar. Corviv estava machucado e Adril carregava um corpo pesado, qualquer passo em falso os faria desmoronar pelos degraus.
No subsolo, foram guiados pelas lamparinas que nunca apagavam. Os túneis eram bem iluminados por ela e se ramificavam para várias câmaras. Era lá que o verdadeiro poder de Anesamar estava. Onde se guardava o conhecimento que os precedia, versado no proibido, no errático, no herege.
Corviv mancava, seu filho reparou nisso. O pai também parecia ofegante e, vez ou outra, tocava as costelas e grunhia discretamente.
— Ali. — O patriarca acenou para uma das câmaras.
Aquela que ninguém usava, pois ninguém sabia como o fazer.
Não era possível que seu pai ousaria tentar aquilo...
— Adril? — Ele o chamou e o rapaz o obedeceu.
As lamparinas se acenderam quando eles entraram, eram mantidas pelas mesmas artes que controlavam as sombras. Ninguém sabia exatamente quando foram colocadas ali, parecia que sempre existiram, tal como toda a galeria subterrânea de Anesamar.
O espaço tinha um pequeno altar no meio. Era alto e plano na superfície, talhado pelo mesmo padrão vermelho e dourado das paredes. Além das lamparinas no teto e as tochas nas paredes, não havia mais nada na câmara. Absolutamente nada.
— Coloque ela no altar. — Mais uma ordem seca que Adril obedeceu sem questionar.
Após colocar o corpo sobre a superfície, Adril ficou parado ao lado dela, fitando a face machucada, com os olhos abertos e sem vida.
— Quem é ela? — O acólito perguntou.
— Não a reconhece?
O jovem negou com a cabeça.
— Liviella, Comandante da Ala Leste do Exército de Anesamar.
— O nome não me é estranho.
— Heroína de guerra. Ela nunca deixou nenhum soldado de Flumeridis ultrapassar as muralhas. Mas parece que dessa vez, ela fracassou.
— Nós nunca fomos atacados assim e... — Adril tinha um desconforto em seu peito que guardava por temer contrariar o pai. — Eles invadiram a cidade.
O jovem pensou na mãe e no irmão e sentiu raiva do pai. Fitou-o com rancor. O patriarca era tão indiferente a eles que fazia uma amargura subir à garganta de Adril.
Porém, não ousou responder. Ele não era como Igniv, seu irmão de sangue quente.
— Pegue linha e agulha e me traga o grimório.
Adril foi até à uma câmara próxima daquela, com estantes cheias de livros, uma escrivaninha e uma maca de madeira ao meio. Era onde o seu pai costumava estudar.
Logo retornou e encontrou Corviv apoiado no altar com a respiração pesada.
— Tá tudo bem? — Indagou.
— Me dê. — O mais velho ignorou a pergunta. Adril o entregou o grimório e o saco com linha e agulha.
Corviv folheou o grimório, até o fim e parou em uma das últimas páginas. Com o canto dos olhos, seu filho percebeu outros praticantes das Artes das Sombras os olhando pela abertura da câmara, todos cobertos por suas túnicas negras.
Ninguém acreditava na ousadia de Corviv, nem mesmo seu próprio filho.
— Pai, vamos para casa. — Insistiu. Adril queria sair das galerias, subir as escadas e ir correndo para a sua família.
— Calado. — Essa foi a única resposta que recebeu.
O rapaz abaixou os olhos e encarou o cadáver. Liviella já ganhava tonalidades cinzentas em sua carne.
Corviv passou a linha pelo orifício da agulha. A ponta afiada entrou na carne de Liviella, na beirada do corte em seu pescoço, e então alcançou a outra borda da cavidade, atravessou-a e juntou, com a força da linha, o pedaço de carne partido.
Pouco a pouco, o homem costurou o pescoço dela, fazendo desaparecer a ruína de sangue seco e escuro que era o buraco em sua garganta.
— Me ajude. — Corviv falou com autoridade conforme retirava a cota de malha de Liviella.
Adril não gostou daquilo, sentia-se envergonhado em despir a mulher morta. Porém, não adiantava protestar.
Quando os dois ergueram os pequenos anéis metálicos, viram o tecido do gibão que que usava, presos nos pequenos anéis metálicos. A roupa rasgou, pois era impossível desprender a cota de malha.
O abdômen exposto revelou pequenos cortes redondos, no formato dos anéis na malha que deveria a proteger. Ao redor desses cortes, um enorme hematoma se estendia.
— Por Deus! — Um dos homens, que assistia de longe, falou impressionado.
— Coitada dessa mulher. — Adril disse com tristeza. Aquele ferimento indicava uma pancada forte.
Corviv tocou a pele machucada. Ele sacou a adaga de seu cinto e então fez um pequeno corte sobre a mancha roxa na barriga da comandante. O sangue denso e coagulado vazou, gelatinoso.
Ele costurou o corte que fizera e, junto do filho, terminou de tirar a cota da malha. Felizmente, com um último resquício de respeito, Corviv não a despiu de suas roupas, apenas tateou sobre elas, procurando algum outro ferimento.
Ao não encontrar nenhum, deixou a linha e a agulha de lado e fitou as páginas do grimório.
— É perigoso. — Adril apelou para sua última esperança. — E ninguém consegue fazer isso há mais de um século.
— Porque não precisamos há mais de cem anos. — Corviv se limitou a responder isso. Suas palavras eram afiadas.
— Ninguém saiu vivo, pai.
Corviv não respondeu ao filho. Ele pegou a adaga e começou a talhar algumas inscrições na pele cinzenta de Liviella, sobre a testa. A ponta da lâmina era precisa e afiada.
Adril reconheceu os símbolos. Eram caracteres que simbolizavam a vida, cada um mostrava um estágio: nascer, crescer e morrer.
Adril percebeu o calor da câmara ir embora. Sua pele se arrepiou por debaixo da túnica.
Inesperadamente, as luminárias da câmara se apagaram. Isso nunca havia acontecido antes. Os estudiosos e acólitos, que assistiam, esboçaram reações de surpresa.
As sombras dominavam o ambiente e não era possível enxergar o que estava acontecendo, Adril ficou cego pela escuridão.
O ar, de seus pulmões, saía em vapor e o seu corpo tremia de frio. Ele se encolheu e se envolveu com os próprios braços, buscando se aquecer.
E, por fim, a escuridão se foi. Corviv estava parado, ao lado do altar, com os olhos arregalados e sem brilho. Tal como as muralhas de Anesamar, ele desmoronou e caiu no chão.
O coração de Adril acelerou e sua garganta se comprimiu em desespero. O acólito correu até o seu pai e o pegou nos braços.
Corviv estava morto.
Adril não podia acreditar naquilo. O desespero se intensificou e uma dor acometeu o seu coração. Trêmulo, apertou a túnica do pai, numa súplica para que seu genitor, mestre e guardião voltasse.
— Pai! — Chamou, tão machucado por dentro que mal conseguia respirar. — Não! Por favor!
Nem mesmo era capaz de gritar, a garganta se comprimia.
— Volte, por favor. Volte... — Murmurou, cego pelas lágrimas. — Não, não, não...
A sala foi invadida pelos que observavam. Curiosos, alguns encaram o corpo de Liviella, sobre o altar e outros assistiam Adril, segurando o pai morto, sem acreditar que o mais talentoso artista das sombras estava morto.
Dominos, um dos mais velhos ali, se agachou do lado do jovem e tocou o seu ombro.
— Sinto muito. — Disse com pesar. Adril levantou os olhos chorosos até o homem, desnorteado. — É uma grande perda para todos nós.
— Impossível! — Alguém gritou, estupefato.
— Ele conseguiu? — Uma outra pessoa indagou.
Dominos levantou os olhos e encarou o altar. Adril viu um misto de desespero e fascínio no semblante do artista.
O acólito olhou, por cima dos ombros, na mesma direção. E seu estômago gelou. O coração, que já batia violentamente, quase explodiu em seu peito.
Liviella estava sentada no altar, com o olhar vivo e atento sobre o cadáver de Corviv.
— O que aconteceu? — A voz da comandante estava fraca e soava sofrida e rouca.
Adril desejou piedade para si e sua família, ao mesmo tempo em que seu coração ardeu em esperança.
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Adril
Corviv
Liviella
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