𝕮𝖆𝖕𝖎𝖙𝖚𝖑𝖔 33 - 𝖀𝖎𝖛𝖔𝖘 𝖉𝖆 𝕽𝖆𝖎𝖓𝖍𝖆
"Minha luz decaiu, mas não posso perde-la. Estou no escuro. Pelo que mais eu lutaria? Pelo que viver? Minhas pernas se esforçam para não temerem diante desse quarto preto, sem visão. Um quarto de lamurias e lastimas. Estou girando no vazio; vívida, me recusando a cair. Já me foram embora várias partes que davam brilho à minha alma. Algo me fará brilhar de novo?
Alguém?"
Lucy Vaughan
Não consigo dormir. Apesar do dia terrível que tive, entre exercícios intenso e descobertas odiosas, minha mente parece não querer desligar e só me faz pensar em uma coisa. Meu governo. Ao longo dos dias, vim acumulando queixas das pessoas, queixas essas que pretendo mudar. Não é como se eu estivesse nervosa ou em uma crise de pânico, que eu creio ser a reação que qualquer um teria no meu lugar, é mais como uma insônia ansiosa. Me sento na cama devagar e esfrego meu olhos alertas. Suspiro em desistência e decido sair daqui, talvez aproveitar a paz noturna da cidade e andar pela vila, pelo menos assim não jogarão ovos e tomates em mim. Acendo uma vela e ando com ela pelo quarto para pegar tudo o que vou vestir silenciosamente e jogar na cama.
— Seria melhor se eu tivesse uma capa ou algo do tipo. — Começo a vasculhar o quarto até achar duas capas em baixo o amontoado de roupas que estão me trazendo. Uma é branca como a neve e com adornos prateados na barra que recebe o peso de uma tira grossa de pelinhos macios, provavelmente para dias de inverno rigorosos. A outra é exatamente o que eu precisava. Uma longa capa de caça preta como a noite, ótima para camuflagem, com um grande capuz que cobre todo o meu rosto. Me pergunto o porquê de isso estar aqui, apesar de algo me dizer que isso tem dedo do Rutts.
Visto-a rapidamente e quando estou para assopra a vela e sair, vejo o bracelete de Ivan na mesa de canto ao lado da minha cama. O observo por alguns segundos ao ritmo elevado que sua lembrança causou até me decidir. Ele será meu amuleto. Volto a me sentar na cama para amarra-lo no meu pulso direito, me recordando de Ivan fazendo isso e não conseguindo evitar um sorriso. As vezes ele se atrapalhava para coloca-la e começar a xingar a pulseira. Isso só cessava quando eu me oferecia para fecha-la enquanto seus olhos coloridos por trás das lentes de seu óculos de grau me observavam intensamente. Em breve estaremos juntos de novo.
— Por onde eu saio? — Definitivamente não conseguirei sair livre pela porta da frente sem ser parada e ter que dar explicações tortas. Quero sair sem empecilhos sociais. Vou até a sacada em busca de alguma ideia e vejo que há uma árvore ao lado, no entanto ela não está próxima o suficiente da sacada para que eu pule.
Mas está perto da janela do banheiro.
Vou até o banheiro e lá está a arvore, bem na minha frente, o problema é altura. O pé-direito alto desse lugar deixa a janela muito distante. Opto por voltar aos meus dias de criança baixinha e atentada que era e usar a poltrona de leitura do quarto na tentativa de ficar mais alta, o que funciona. Abro bem a janela e me impulsiono com os braços e o tronco para frente. A janela não é muito grande, - com certeza não foi feita para servir com rota de fuga - o que me faz pensar, por um momento, que fiquei entalada. Só depois de debater como um peixe fora d'água eu consigo passar o meu quadril e me segurar em um galho da árvore. Vou descendo agilmente pelos seus grossos galhos até cair agachada no chão perto de uma moita, onde eu logo me enfio para me esconder enquanto sinto a animação percorrer o meu corpo e fazer meus pelos do braço arrepiarem. É muito bom saber que essa adrenalina não deriva de um ataque surpresa ou de um treinamento intenso. É a adrenalina infantil de quando se faz algo que é errado ou contra as regras, como uma criança com medo de ser pega pelos pais enquanto faz seu lanchinho da madrugada na cozinha.
Aproveito esse momento e olho em volta para me certificar de que estou sozinha e achar uma forma de sair daqui, já que os portões obviamente não são uma opção. Quando viro meu rosto para a direita, visualizo três grandes caixotes de madeira jogados de qualquer jeito. Elas provavelmente traziam os enfeites para a abdicação de Renne e minha coroação, mas agora me ajudarão a fugir. Me agacho na frente delas e fico pensando em como usa-las, até que eu tenho a ideia mais estupidamente brilhante que existe. Eu as empilho e começo a arruma-las para terem o formato de uma escada, encostando a caixa do topo no muro para que ela não desabe no chão. O peculiar dessa escada são seus ''degraus'' extremamente estreitos com espaço apenas para a ponta dos pés, visto que essas caixas são mais altas do que largas.
Quais são as chances de isso dar errado e eu me arrebentar no chão? Eu diria 99,9%
Eu me importo com isso? Nem um pouco.
Subo quase engatinhando a minha escada improvisada com os braços para frente, para o caso de algo dar errado e eu ter que me pendurar no muro de chapisco que furaria meus braços por baixo da manga da blusa. E é claro que bastou eu pensar nisso para que as caixas desabassem, por motivos óbvios, - peso humano - e eu ter que grudar no muro como um carrapato. É em horas como essas que eu agradeço pelos exercícios de braço que o exército nos passava e que me fazia tomar um banho de suor. Dobro meus joelhos e deixo meus pés retos no muro, aproveitando sua textura áspera para trava-los e esticar as pernas sem quem minhas botas escorreguem tão rapidamente quando me impulsiono para cima.
Logo consigo pular o muro e agora é a vez da ocitocina me invadir e fazer um sorriso genuíno se expandir pelo meu rosto como há muito não ocorria. Mas ele não dura muito quando vejo o que há atrás do muro. A floresta dos Anjos Caídos. Tão densa quanto o que foi descrito nos livros, aqui está o aglomerado de altas árvores que separam o castelo Angales do campo de rosas vermelhas que compunham a paisagem que eu via da sacada do meu quarto. Permaneço imóvel buscando por algum som, qualquer um. Minha resposta? Silêncio. Nada além do assovio dos ventos frios cortante dessa madrugada que pulveriza a sensação de liberdade por todo meu corpo. Eis aí a minha deixa.
Iluminada apenas pela luz da lua cheia que cresce sobre o céu e nos observa de cima, começo a dar passos leve e vagarosos, permanecendo sempre com as mãos encostadas no muro do Castelo; não pretendo perder o rumo e acabar me embrenhando nessa mata. Meu trajeto só foi tranquilo por 10 segundos, já que ao fim desse tempo um som, não só desperta minha atenção, como também traz fraqueza às minhas pernas.
Uivos.
Não sei se o som vem de um ou vários, a única coisa que sei é que estou apenas com minha adaga branca e sozinha. Entretanto, apesar do medo e do terror, opto por prosseguir, afinal de contas, esses animais podem nem estar por perto.
Estou quase na ponta do muro até que começo escutar passos. É sério que a ronda dos guardas vai começar justo agora? A luz do fogo das velas fica mais forte e se aproximar de mim com rapidez. Posso escutar os detalhes metálicos da armadura dos soldados baterem sutilmente umas com as outras. Ele está se aproximando e está escuro demais para que identifique meu rosto.
Um segundo, um passo. Dois segundos, dois passos.
A luz está vindo até mim e não posso permitir que isso aconteça. Não quero ser forçada a ficar trancada em um quarto de novo! Não tenho escolha.
Saio de perto da parede e vou correndo o mais rápido que posso em direção à floresta, que deve ser uns 20 m de corrida. Ainda que os barulhos de meus passos apressados me denunciem, isso não me incomoda, visto que todos parecem ter medo dessas floresta e ninguém se atreveria a se aproximar daqui só para saber a origem de um som estranho. Me escondo atrás da terceira árvore que encontro e me curvo diante dela enquanto tento controlar minha respiração levemente alterada graças a essa corrida e permanecer em silêncio, mas mal consegui faze-la voltar totalmente ao normal quando escuto rosnados.
— Merda! — Sussurro e me viro lentamente, dando de cara com, não apenas um, mas cinco grandes lobos de pelo preto e cinza, me cercando e me encarando como se eu fosse sua principal refeição da semana. Línguas para fora, dentes a mostra, coluna curvada, joelhos dobrados posição de ataque. Correr não vai adiantar nada. Só me resta lutar, mas com o quê? Me encosto na árvore atrás de mim e sinto mais farpas furarem minhas mãos já antes machucadas por outras farpas. Esse pequena dor me traz uma lembrança óbvia. Minhas mãos são minhas armas.
Mordo meu dedão e passo o sangue em minha marca. O pânico está começando a fazer efeito em minhas pernas e mãos, ambas tremendo incontrolavelmente. Minha boca está seca e posso ouvir meu coração bater descompassadamente. Um erro e eu viro comida de lobo.
Mal tive tempo de mentalizar o que faria e já pude ouvir um dos lobos avançar em minha direção, a boca espumando com sede de sangue. Com sorte, consigo chuta-lo para longe e fazer minha ideia se concretizar. Me mantenho em pé e faço uma rede de raios vermelhos em volta do meu corpo, nenhum um dos lobos consegue se aproximar muito de mim sem ser ferido com um choque. O prejuízo disso é que os raios, por estarem próximos uns dos outros e muito brilhantes, me impedem de ver com clareza o que está acontecendo ao meu redor. Me encolho de medo a cada impacto dos animais com a rede e me pergunto por quanto tempo mais serei capaz de manter essa proteção.
Isso tudo deve ter levado segundos, que mais pareciam horas, e só aparenta terminar ao som de um uivo central, mais alto que todos os outros que eu havia escutado. Aperto meus olhos e, pelo pouco espaço que há entre um raio e outro, posso apenas ver cinco figura borradas à minha frente, todas sentadas e em silêncio. Ainda com muito medo, vou desfazendo a rede aos poucos e me deparando com um grupo de lodos quietos e pacíficos.
Essa seria a oportunidade para uma fuga, há um voz porém, que parece suplicar pela minha permanência. Algo carregado pelo vento junto as folhas e pétalas secas. A iluminação aqui é praticamente nula, devido às árvores, mas ainda sou capaz de ver os olhos negros e expressivos desses lobos me encararem veementemente. Ficamos assim até o maior deles, que parece ser um líder, se aproxima de mim e começa cheirar e lamber o sangue do dedo que mordi; não recuo. Ele me olha brevemente nos olhos e coloca sua cabeça de pelos pretos na palma de minha mão, iniciando um caminhada. Ele quer me levar à algum lugar.
Inconscientes e vagos, meus passos são hipnóticos e seguem o ritmo dos lobos que me cercam. Por alguma razão, meu medo sumiu e onde, antes, só havia temor e desespero, agora é uma calmaria desconhecida para mim. Não consigo enxergar nada que está à minha frente e não faço ideia de para onde estou sendo levada, mas é como se isso não me preocupasse. Sinto que confio mais nesses lobos que acabaram de tentar me matar do que nas pessoas daquele castelo.
E de frente para um lago, nosso trajeto termina. A água reflete a lua cheia de hoje, que só deve ter esse lugar em toda a floresta para mostrar seu esplendor, e se move vagarosamente de acordo com a brisa. Os carnívoros se curvam para beber água e eu me ajoelho ao lado do líder.
— Sabe que se você tiver me trazido até aqui só para me matar em um lugar bonito, eu ainda vou ficar muito chateada com você, não é? — Sorrio para ele, que só ergue seus olhos jabuticaba para mim e vai para trás das árvores, junto com os outros lobos. — Por favor me diga que não irá me dar um... — Sou impedida de continuar falando por um forte vento que quase me derruba e tudo o que posso fazer proteger meus olhos com meu braço. As águas do lago se misturam com a da chuva que começou a cair de repente e ficam revoltam, criam um rodamoinho que engoliria até o melhor dos nadadores. E como se não bastasse todo esse caos, a terra começa a tremer, me fazendo cair em definitivo, após três tentativas de me levantar.
Olho na direção dos lobos e percebo que eles estão em pé, apenas me observando, como se nada estivesse acontecendo. Como se apenas eu estivesse sentindo tudo isso. Tento me arrastar em meio a lama na direção deles, rezando para que nada que o vento traga me acerte em cheio, mas sou impedida por um raio que caiu bem na minha frente, a centímetros da minha mão, que estava esticada para segurar uma árvore. O raio é como um ponto de encerramento, fazendo com que toda a catástrofe natural que estava acontecendo acabe, e deixando apenas uma pequena fogueira acessa.
— O que caralhos acabou de acontecer aqui? — Me levanto com dificuldade enquanto tirou os cabelos grudados na minha testa pela chuva e pela lama. Tudo ao meu redor está seco, o lago está calmo e o vento voltou a ser uma brisa.
Como se nada tivesse acontecido.
De repente o fogo do raio, que era pequeno e singelo, cresceu em um grande fogaréu, me derrubando para trás com o susto.
— Será quem alguém ou alguma coisa, aparentemente, pode me explicar o que está acontecendo! — Esbravejo e logo a resposta aparece diante de mim, em um brilho azul vivo, forte e resplandecente, sendo melhor iluminado pela fogueira.
Um símbolo que se assemelha a uma rosa vista de cima pingando algo. Embaixo estão três círculos; os dois do canto estão com pequenas chamas e o do centro tem uma base grossa parecida com uma lua crescente. Escritas que eu desconheço se localizam mais abaixo.
— O que tudo isso significa? — Estou preses a tocar a ponta dos meus dedos na madeira misteriosa quando o lobo preto rosna alto, me assustando e chamando minha atenção. — O que foi? — Ele me encara e vem até mim, colocando novamente sua cabeça em minha mão e caminhando. Parece que é hora de ir embora.
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