𝕮𝖆𝖕𝖎𝖙𝖚𝖑𝖔 2 - 𝕭𝖔𝖆𝖙𝖔𝖘
"Palavras. Vazia, se não tiverem ação. Poderosa, mesmo sem ter ação. Agentes do caos em cérebros seletivos que escolhem o que ouvir e o que não ouvir. Isso faz do ser humano uma espécie autodestrutiva que precisa de mil e uma provas para acreditar no amor e de apenas um "seu cabelo está um pouco ressecado" para se considerar o ser mais feio que já foi visto."
Lucy Vaughan
— O que você está fazendo aqui? — Pergunta ele, agitado, enquanto coloca seus óculos pretos.
— Sua mãe me pediu para trazer suas roupas. — Digo me ajeitando rapidamente e tentando não encará-lo. Tenho a sensação de que eu poderia ficar olhando para ele por horas, mas não estou a fim de parecer uma completa louca.
— Ah sim, pode deixar aí mesmo. — Ele volta a me dar as costas.
— Ok. — Estava prestes a sair, mas parou na porta e me viro para ele. — A propósito, qual é seu nome?
Silêncio. Essa é minha resposta. Logo após minha pergunta ele coloca fones de ouvidos e começa a arrumar seu quarto. Isso foi rude, mas prefiro pensar que ele não ouviu a pergunta.
Depois de duas horas subindo e descendo as escadas, nós finalmente terminamos a mudança. Volto para minha casa e vou direto para o banheiro tomar um banho bem demorado. Enquanto a água cai sobre meu corpo moído de cansaço, começo a minha sessão de memórias, boas e ruins, como se elas fossem essenciais para a minha vida.
Por que faço isso comigo mesma?
Para ser sincera, nem eu sei. É como se essa tortura psicológica fosse saudável ou tivesse uma parte prazerosa para mim. Logo vou para minha cama para descansar e continuar meu livro de fantasia, meu escape do mundo real. Guerras, soldados, reis, fadas e dragões. Tudo tão surreal e tão fascinante de se ler e mergulhar. Rio internamente ao pensar que eu e meus amigos não aguentaríamos um dia sequer nesses mundos. Eu até aguentaria um pouco melhor com relação à internet, mas o Jean surtaria se passasse um dia sem o celular. Pensando bem, isso já aconteceu uma vez esse ano. Meus pais me gritam dizendo que vão ao mercado, me deixando sozinha. Minutos depois a campainha toca e eu, preguiçosamente, atendo.
É a mãe do menino, se não me engano seu nome é Helen. Atrás dela, a menina, que eu acho que se chama Yasmim. Ambas estão com vestidos casuais floridos no estilo cottage, a diferença é que o vestido da mãe é verde-claro e o da filha é amarelo, cores que realçam seus olhos. Não é algo que eu usaria, mas nelas fica muito bonito.
— Posso ajudar? — Pergunto rezando, mentalmente, para que não tenha nada a ver com a mudança.
— Na verdade, pode. Se for ao almoço que eu vou propor para você e seus pais. Vocês nos ajudaram tanto hoje que pensei em fazer um almoço como forma do nosso agradecimento. — Diz ela com um sorriso amigável nos lábios.
Eu normalmente diria que não, que não precisa ou que tenho que perguntar para os meus pais, porém, dessa vez, eu simplesmente concordei e ainda disse que seria um prazer. Ela se alegra e combina comigo de ser em um sábado às 12:00 horas. Ela volta para sua casa e eu fecho a porta lentamente. Volto para o meu quarto e envio uma mensagem para os meus pais falando do almoço, assim, se eu levar bronca, vai ser no virtual.
No dia seguinte eu acordo atrasada para a escola e tenho que sair correndo de casa. Acordei molhada de suor e mais cansada que ontem, como se eu nem tivesse dormido. Meu terror noturno da vez foram dois olhos impressionantemente verdes e brilhante que me tiravam o ar e pareciam estar prestes a me atacar para me matar. Meu pânico era tanto que nem a aparição dos olhos coloridos daquele menino estranho conseguiram me acalmar. Eu sinto que já vi aqueles olhos esmeraldas em algum lugar, mas não faço ideia de onde. Para minha sorte de sexta-feira nós, do colegial, saímos mais cedo, o que quer dizer que eu vou voltar de carro e vou ter mais tempo para descansar.
Estou indo em direção à escola quando vejo meus dois amigos, Carla e Jean, sentados em um banco que fica na frente da escola, mas um pouco afastado. Eu ainda não tinha me aproximado de onde eles estavam quando o Jean percebeu minha presença e começou a andar na minha direção com as sobrancelhas franzidas e os olhos castanhos esverdeados fixos em mim, demonstrando uma preocupação genuína. Carla, que estava no celular e não me viu chegar, logo deu por falta do amigo que estava sentado ao seu lado e nos encontrou com seus olhos castanho-claro e os focou em mim, assim como nosso amigo.
— Tá tudo bem com você, Lucy? — Pergunta minha amiga com um tom de voz delicado e sutil, sua marca, que conheço bem.
— E, por que não estaria? Por que estão tão preocupados? — Falo sem entender nada.
— É que você está com muitas olheiras e... — Nesse momento ela se interrompe, como se estivesse prestes a contar algo que não devia.
— E?
— Nós estamos preocupados com você por conta de uns boatos. — Diz Jean como se não quisesse me explicar essa frase disparada que disse. Ele começa a estralar e mexer velozmente os dedos, em um nervosismo aparente.
— Que boatos? — Falo sem demonstrar preocupação, já que eu realmente não ligo para a opinião alheia. Nesse momento passando uns meninos gritando ''olha lá a amiga do demônio''. O que está acontecendo aqui? — Jean? — O encaro de forma séria e ele entende que quero explicações. Ele suspira, se dando por vencido e começa a falar.
— Ontem o pessoal viu um menino entrar aqui na escola com a mãe dele para fazer a matrícula. Ele era bem esquisito, usava óculos escuros dentro da escola e tudo mais. Quando os meninos viram ele de óculos começaram a tirar sarro dele e tiraram os óculos escuros dele, aí viram que ele tem um olho de cada cor. No início todo mundo disse que é só heterocromia, mas ninguém nunca viu alguém com um olho azul e o outro vermelho. E você sabe que pra eles tudo que é estranho é coisa do demônio. — Ele revira os olhos demonstrando o cansaço que essa ignorância causa nele.
— E o que isso tem a ver comigo? — Pergunto me fazendo ao máximo de desentendida, fingindo que não sei de nada.
— Bem... — Sua fala é hesitante. — um dos meninos foi lá na secretaria entregar uns papéis do professor e viu o endereço dele e lembrou que você disse que morava naquele bairro, então ele foi confirmar com a Melissa onde você mora e, como ela foi na sua casa fazer o último trabalho que geografia... ela sabia e contou tudo. — Contou Carla, que parecia estar com medo da minha reação, o que é compreensível já que eu estava claramente irritada com tudo isso. Não ligo que falem de mim, mas não gosto que me liguem com quem eu nem conheço.
— E a Melissa ainda disse que você ia ajudar seus novos vizinhos na mudança, e aí bastou para o pessoal da escola ligar os "pontos" e criar uma história muito louca sobre vocês dois. — Meu amigo concluiu.
— Que fanfic de merda que eles criaram, hein? — Respiro fundo e me vem uma pergunta na cabeça. — Eles descobriram o nome dele?
— Não, de acordo com o menino, tinha uns papéis em cima do nome. Por que a pergunta? — Ele me lança um olhar desconfiado e malicioso ao mesmo tempo.
— Nenhum motivo especial, só curiosidade. — Desvio o olhar para ele não perceber que eu estou mentindo. Nesse momento o sinal toca e nós vamos para a sala.
Quer dizer que ele vai estudar aqui... Pela primeira vez eu não sei se isso é bom ou ruim, mas uma coisa eu sei, pode ser uma experiência e tanto.
Entramos na escola e não demora muito até que notem a minha existência. Percebo que tem pessoas que passam por mim com um resquício de medo, enquanto outras passam olhando nos meus olhos, gritando o mais alto que podem "LÁ VEM A AMIGA DO DEMÔNIO". De canto de olho percebo os ombros de Jean se tencionam em forma de estresse. Suas sobrancelhas levemente franzidas e seu maxilar enrijecido, que deixa sua boca contraída, deixam sua raiva e nojo transparecer de uma forma inevitável.
— Eu odeio meninos. — Diz ele se virando para minha direção, como se estivesse à espera de uma resposta.
— Ah, não odeia não haha. — Falo de forma animada para suavizar o ar pesado que ficou. — Vem, vamos para a sala.
O dia passa mais devagar que o normal. Deve ser porque é muito cansativo ouvir a mesma frase toda hora, principalmente quando vem de gente tão chata. Alguns só falam para entrar na "brincadeira" outros realmente acreditam que o menino é um tipo de anticristo ou algo do tipo, sendo o principal deles o Saulo.
Saulo Bitterfor, o crush de muitas e a desgraça em pessoa para mim. Ele é aquele típico garoto popular de colegial, ou seja, não passa de um corpinho bonito que sustenta uma cabeça vazia que pertence a uma pessoa extremamente arrogante e preconceituosa. Com 1, 80 de altura, o filho da professora de artes puxou os cabelos castanhos bem claros e ondulados da mãe. Os olhos não ficam atrás no quesito beleza, são um verde-água admirável que quando encontram a luz do sol ganham uma coloração levemente amarela. Sua diversão diária? Ficar no meu pé o tempo todo, igual um cachorro sarnento, me pedindo repetidas vezes para ficar com ele. De acordo com ele, uma de suas vontades sempre foi tirar o BV de uma menina, "fato" que todos daqui tomaram como verdade absoluta por nunca terem me visto com ninguém nesses dois anos em que estou aqui. Falando no diabo já consigo ver ele vindo em minha direção com seu ar de superioridade vergonhoso.
— E aí, Lucy? Como vão às amizades? — Diz ele com um tom de puro deboche ácido.
Foco minha atenção no meu pão com queijo, que com certeza é mais interessante, e respondo:
— Por que não pergunta para eles? — Aponto para a Carla, Jean e Eric, namorado da Carla que também é nosso amigo.
— Não me referia a essas amizades. — Ele pronuncia as duas últimas palavras lentamente, como se desprezasse meus amigos. Um sorriso maldoso surge em seu rosto como se ele tivesse ganhado uma discussão. Minha vontade é de mandar ele para um lugar muito ruim, mas ao invés disso eu simplesmente digo;
— Então não sei a quem você está se referindo. — Antes mesmo que ele me responda algo eu me viro para meus amigos e sugiro saímos do refeitório e assim o fazemos. Sei que Saulo odeia ser ignorado, então sua raiva visível, para mim, tem um ótimo sabor.
...
Manhã de sábado. Olho para meu despertador e vejo que ainda são 8:00 horas da manhã. Eu definitivamente tive uma péssima noite de sono, só cochilava e acordava assustada. É, parece que eu realmente não vou dormir hoje. Que saco! Levanto e vou até o banheiro na ponta do pé para não fazer barulho. Meu banheiro é tão simples quanto meu apartamento, com azulejos amarelados com desenhos de flores estranhas e um piso frio branco. A pia até que tem um tamanho bom, consigo colocar todos os meus produtos de pele em cima dela. Paro em frente ao espelho e vejo o quão ruim minha cara está. E, ao que tudo indica, minhas olheiras nunca estiveram tão chamativas. Odeio pensar que isso é verdade. Ou estou realmente assustadora, ou é a luz matinal que está entrando pela janela que as estão me deixando com uma aparência tão aterrorizante. Começo meus cuidados matinais, como lavar o rosto, passar um esfoliante, massagem facial, etc.
Cuidados finalizados, eu vou até à cozinha para fazer o café-da-manhã. Comecei a preparar o café no novo fogão que minha mãe comprou, ela o queria faz tempo. Nós não temos bancadas, como aquelas bonitas de mármore que vemos em revistas de design de interiores, mas temos uma pia bem comprida que fica ao lado do fogão e é nela mesma que coloco os alimentos, é prático.
Refeição preparada, sento na mesa para comer meu adorável café da manhã e mexer no celular e vejo que tem uma mensagem no whatsapp e é de um número desconhecido.
"SUMA, AMIGA DO DEMÔNIO"
É só mais um idiota. As pessoas estão fazendo um baita drama comigo porque um tonto descobriu que eu e o menino moramos no mesmo prédio. Eu nem quero ver quando ele estiver na escola.
...
10:30. É hora de me arrumar para o almoço. Meus pais não gostaram de saber que aceitei o convite sem consultá-los. Entretanto, disseram que, pelo menos, não vão ter que comprar comida e nem preparar a refeição.
Decido vestir a primeira coisa que vejo; um short jeans preto bem básico e uma blusa florida, que fica linda quando coloco um cinto discreto marcando a cintura. Essa blusa me lembra um campo florido que visitei quando era criança. Tinha todo tipo de flor, grandes, pequenas, coloridas, de uma cor só. Eu queria tanto voltar lá. Fico distraída com essa lembrança, até que sou tirada do meu devaneio pela minha mãe que está me apressando. Coloco meu chinelo e prendo meu cabelo num rabo de cavalo alto deixando uma franja sutil no meu rosto, por sorte elas estão enroladas naturalmente, ficando muito mais bonitas. Depois de pronta, pego meu celular e vamos para esse tão esquisito almoço.
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