Amaldiçoada
Romênia – 1456
Abandonada no meio de uma floresta, não muito distante da estrada de terra em que muitos viajantes aventuravam-se rumo ao desconhecido, encontrava-se uma antiga capela cuja fora exilada logo após a caça às bruxas, onde as mesmas foram apedrejadas por membros da antiga Ordem do Dragão e por alguns religiosos que julgavam simples moças por feitiçaria. Doía saber que todas as que morreram eram inocentes... As verdadeiras nunca deixariam ser encontradas tão facilmente.
Ainda de olhos fechados, Jennifer percebeu que algo incomum apoderava de si. Sua audição permitia que ouvisse corujas chirriando nas árvores, os morcegos voltando para a capela a fim de esconder-se do amanhecer que chegaria a qualquer momento. O que mais a intrigava era que, além de escutar o som da poeira se levantando conforme os cavalos trotavam, sentia o aroma da presença humana dentro da carruagem na estrada de terra há duzentos metros daquela ermida.
Impossível! – pensou. – Como seria viável captar todos os movimentos de alguém ou de sentir cada molécula que possuía no ar?
A brisa frígida tocava em sua pele pálida, mas aquilo não a incomodava. Finalmente, abriu seu belo par de olhos verdes e levantou-se, observando o cenário aterrorizante a sua volta. O local, que há anos era sagrado, encontrava-se um breu total. Seus vitrais impecavelmente feitos com a imagem do salvador estavam completamente estilhaçados, as estátuas possuíam crucifixos pendurados em seus pescoços e pareciam condenar a loira ali. Correntes e objetos de tortura postos em cima de uma mesa provisória e uma poça de sangue no chão. No entanto, pelo odor que o vento trazia, o liquido estava ali há horas, tornando-o inconsumível.
O medo consumia seu interior como um incêndio florestal aniquilando tudo a sua volta. Permaneceu-se estática enquanto analisava suas vestes rasgadas e ensanguentadas, perguntando-se o que acontecera com ela; perguntando-se se aquele sangue no chão era realmente dela. Seu estômago revirava e seu coração doía de uma forma que jamais sentira antes. Algo estava errado e, até aquele momento, não sabia dizer o que era. Sentiu seus órgãos, suas veias e cada molécula de vida composto em seu corpo queimarem como se estivesse morrendo por dentro, logo regurgitou sangue.
– Eu preciso sair daqui... – balbuciou, sentindo o gosto da morte escorrendo em seus lábios; sentindo seu interior gelar.
Retirou-se daquela capela e reconheceu o local a sua volta, no entanto, estava um pouco longe de sua casa. Estava ciente de que não aguentaria chegar a tempo, mesmo assim Jennifer pôs-se a correr o mais rápido que conseguia até que não aguentou mais as próprias pernas, caindo de joelhos no chão de terra.
Seus olhos ameaçavam fechar-se, sua cabeça latejava ouvindo o trotar de cavalos que deveriam chegar à estrada há alguns minutos. Tudo o que precisava ali eram forças para levantar-se e pedir por ajuda, e, quando pensou em desistir, uma figura de cabelos médios e escuros, trajando longas vestes brancas que arrastavam no chão, sujando toda a sua orla, e carregando um lindo sorriso em seu rosto apareceu na penumbra, dando-lhe forças ao perceber quem era a pessoa materializada ali.
Era Lana, trazendo consigo o que sabia fazer de melhor: proporcionar-lhe a paz.
– Lana... – arrastava-se a fim de se aproximar de sua esposa. Os orbes verdes estupefaziam a beleza resplandecente de sua esposa e admiravam seu belo sorriso contagiante. E quando finalmente conseguiu chegar perto de sua amada, pôs-se a pronunciar. – O que estás fazendo aqui? – mantiveram-se em silêncio, até que Lana deu alguns passos à frente e ajoelhou-se em frente à Jennifer. – Como sabia que iria me encontrar antes que eu morresse?
– Eu não estou mais aqui, meu amor... – aquelas palavras feriam como espadas, mas mesmo assim ela não tirava o sorriso de seu rosto. – Tudo foi tirado de nós... Mas espero que seja forte para o que está por vir. – Suas palavras soavam como incógnitas, pois, naquele momento, não faziam sentido. – Agora me siga. – levantou-se, ajudando a loira a encontrar o caminho para a estrada.
Em momento algum Lana se afastava completamente de Jen. Dava passos tão leves sobre o chão, parecendo flutuar como um pássaro ou como um anjo que se põe a sobrevoar sobre as brancas nuvens de algodão. O profundo olhar cor de amêndoa não tirava a atenção de sua companheira logo atrás, arrastando-se cada vez mais depressa, rasgando ainda mais suas vestes nos galhos secos na tentativa de alcança-la.
A pele extremamente branca começou a demostrar sensibilidade quando alguns feixes da luz solar começaram a aparecer, junto com a pontinha do sol querendo desabrochar por de trás da montanha. Sentiu, pela primeira vez naquela confusa noite, seu coração bater ao conseguir tocar na orla do vestido de Lana. Podia morrer ali, sentindo o aroma de sua esposa, a paz que ela emanava e ouvindo seus risos.
– Jen... – tocou-lhe no caricaturado e febril rosto da loira, analisando sua expressão cansada, seus cabelos totalmente desgrenhados e, principalmente, seus olhos que começaram a brilhar ao encontrar as órbitas castanhas. Lana continuou ali, ao seu lado, até o último segundo, sabendo que Jennifer morrera há horas atrás. – Eu te amo, meu amor. – beijou-lhe seus lábios ensanguentados e, em seguida, sumiu na penumbra.
Quando percebeu, encontrava-se na beira da estrada de terra. Sorriu ao perceber que seu grande amor havia a salvado como um anjo da guarda. Enxergou ao longe o cavalo e o viajante se aproximando, no entanto, seu corpo amoleceu ainda mais. A última coisa que seus belos olhos capturaram foi o sol mostrando-se por completo, exaltando toda a sua magnitude.
Os olhos se fecharam, livrando-a temporariamente das trevas que agora habitavam dentro de si, assim como no nascer do sol que chega livrando-se de toda a escuridão e demônios noturnos. O que não sabia é que as trevas a consumiriam cada dia mais, sem deixar quaisquer resquícios da antiga mulher bondosa e amável que um dia já fora. Horas depois, abriu seus olhos em seu quarto.
O doce cheiro do sangue tornou-se forte naquele âmbito. Sua pele estava ressecada, suando frio e apresentando sintomas de febre. Todos a olhavam com preocupação. Não tinha como ficar assustado ao deparar-se com o estado daquela mulher. A pele estava pálida e gelada, seus pulsos estavam enfraquecidos e sua garganta gritava por sangue.
–Jennifer, querida, consegue nos dizer o que aconteceste? – Esforçava-se para recuperar sua memória, mas tudo o que lembrava era de sua esposa dando-lhe um beijo calmo no canto de sua boca.
– Eu... Fiquei indisposta por quanto tempo? – balbuciou e pôs a mão entre o rosto, protegendo-se da luz do sol que adentrava pelas janelas da alcova. – Tranquem as janelas! – seu pai imediatamente fez o que pediu.
– Você sumiu por uns três dias... Pensávamos que estava morta! – David respondeu, não conseguindo esconder seu sorriso aliviado ao saber que sua menina estava salva. – Um viajante a encontrou na estrada, felizmente lhe reconheceu na hora.
– Onde está ela? – gritou ao lembrar-se do episódio após sair da capela. – Lana estava lá comigo! – embora seu corpo humano estivesse morrendo, seus sentimentos já estavam amplificados por conta de sua transição para a vida de treva eterna, o que piorava a situação de aceitação para a notícia que estava por vir. – Antes de eu ser encontrada ela estava lá. – explicou-se.
– Lembras-te de nada? – Mary, sua mãe, encarou David com um péssimo olhar e encostou-se aos ombros de Jen. As órbitas esmeraldas hipnotizaram-se com o som melodioso das veias pulsantes de sua mãe. Seus caninos doíam ao mesmo tempo em que sentia água na boca, parecendo que toda a sua sede seria saciada quando bebesse até a última gota de sangue.
– Só de acordar e Lana me ajudar. – após lutar para não rasgar a garganta de sua genitora, conseguiu tirar sua atenção das veias sanguíneas e empurrou-a para longe. Sentia que mais um segundo próximo a alguém, iria mata-los sem hesitar.
– Filha, você terá que ser forte... – David segurou a mão fraca de sua filha, olhando-a em seus olhos. – Há alguns dias, recebemos a noticia de toda a revolta da Ordem contra vocês duas, mas chegamos tarde demais... – disse entre choro, com sua voz totalmente embargada. – Lana estava morta, e você estava desaparecida. – retirou de seu bolso, um colar que pertencera à mulher de sua filha e pendurou-o no pescoço na mesma. – Consegui pegar apenas esse colar.
– Estamos tão felizes por você estar viva! – Mary disse, também chorando.
– Minha Lana está... Morta? – perguntou pausadamente, sentindo como se sua metade estivesse se esvaído junto. Pedia mentalmente para que seus pais dissessem que era algum tipo de brincadeira de mau gosto, no entanto, os dois gesticularam a cabeça positivamente. – Não! – abraçou seus joelhos e pôs-se a chorar compulsivamente. – O que vai ser de mim sem ela? – repetiu a mesma pergunta diversas vezes, assustando ainda mais seus pais por sua situação. – Eu não consigo viver sem ela!
Romênia – 1891
Uma década se passou desde a noite em que Whale despertou o demônio da noite. Longos dez torturantes anos escondendo-se do sol, arquitetando possíveis formas para se vingar de todos os novos ocupantes daquela maldita ordem, criando raízes e inventando uma vida nova. O nome Emma Swan lhe caiu muito bem, principalmente com o ótimo disfarce de ser dona de uma das maiores empresas de vinho.
Nunca apreciou o vinho em sua humanidade, mas, em sua nova vida, percebeu que o líquido escuro seria bastante útil. Poderia compara-lo com o tão apreciado e indispensável sangue humano. A tonalidade é bastante semelhante, assim como o doce sabor da uva pode, talvez um dia, chegar ao nível do sabor do sangue.
– Consegui uma mansão para habitarmos. – Ruby tirou sua mestra de seus devaneios. Desde a noite em que se conheceram, a moça mostrou-se uma boa companhia, apresentando-lhe o mundo atual, ajudando-lhe a se adaptar e criar uma nova vida. – Creio que não é grande coisa comparada ao palacete em que costumava viver.
– Eu sou muito grata por tudo, mas ainda almejo conseguir minha antiga moradia junto com minha vingança. – disse convicta, observando a mata ao lado de fora da carruagem. Ambas viveram durante a última década em Londres, até que Jennifer tivesse totalmente adaptada. Agora que se tornou uma grande empresária de vinhos e aprendeu a camuflar-se na população, decidiram voltar para Romênia.
– Conseguirei a compra de seu castelo, Em. – respondeu com afeto. Ruby havia se tornado a única amiga em todos esses séculos de tormento. O coração solitário da loira estava parcialmente controlado, mas nunca estaria totalmente curado. – Tens certeza de que realmente quer se vingar? Você é uma pessoa tão boa.
– Não Ruby! Eu não sou uma pessoa boa! – exclamou. – Eu... Sou... Um... Monstro. – respondeu pausadamente, controlando todo aquele sentimento negativo sobre o ser que havia se tornado.
– Emma Swan, ou melhor, Jennifer Morrison, monstros não amam e nem tem sentimentos. – aproximou-se de sua companheira sem temor algum. – Você me mostrou que todas as lendas de Drácula eram falsas! Citam Drácula como um conde que matava inúmeras pessoas sem algum ressentimento, fazendo-me questionar o porquê inventaram tantas calúnias com seu nome... Depois que você me contou sua história, eu entendi tudo. E digo com todo o ar de meus pulmões que você, sem sombra de dúvidas, não é um monstro. – tocou no colar antigo que a vampira carregava em seu pescoço. – Você a amou com todas as suas forças; você a ama até hoje e eu posso sentir isso, então não diga que és um monstro.
– Algumas pessoas acabam com a mais pura das almas, Ruby. – respondeu agora séria. – Lana habita sim em minha vida até hoje, mas eu não sou a mesma pessoa que ela amou há séculos atrás. Agora meu coração almeja por voltar ao meu antigo lar... Algo me atrai fortemente para a Romênia. – olhou novamente para fora da carruagem e deparou-se com um cenário que nunca saíra de sua mente: o lugar onde iniciou sua transição para as trevas; o lugar onde viu a materialização de sua amada; o lugar onde contemplou pela ultima vez o nascer do sol. – Agora eu preciso me vingar de tudo o que tiraram de nós.
Aquela estrada não havia mudado nenhum pouco. A trilha em que se arrastara atrás da figura angelical de Lana, há quatrocentos e trinta e cinco anos atrás, ainda estava ali, intacta, na beirada de uma parte da estrada. O som das palavras de Lana dizendo que a amava ecoava em sua mente, trazendo boas e más lembranças. Trazendo ainda mais amor e saudade por sua finada esposa, assim como também trazia ainda mais ódio da humanidade.
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