It doesn't matter
"Voltar a Daegu talvez tenha sido um erro" - pensou pela quinta vez naquele dia. Estava parado em frente à sua antiga casa, quando era apenas um garoto mala querendo dinheiro, quando percebeu que estava sendo seguido. Juntou irritação ao combo "ansiedade e melancolia" do dia. Queria um pouco de sossego para poder terminar uma música em específico e quase sempre visitar sua cidade ajudava, mas dessa vez não.
Dessa vez tinha sido seguido por algum jornalista iniciante que queria seu momento de glória cavando algum furo sobre o BTS. Passou o dia desviando do dito jornalista e da própria melancolia de não poder ir em paz a lugar nenhum na própria cidade. A paz chegou apenas tarde da noite, quando, cansado de ter apenas fotos iguais o dia todo, o jornalista desapareceu.
Desconfiou desse desaparecimento repentino, então começou a usar rotas que só um morador conhecia, reencontrando o jornalista - com roupa diferente - a dois quarteirões de distância de onde havia dobrado a esquina. Estava escondido atrás de uma placa grande anunciando soju, enquanto o rapaz passava reto por aquele beco e entrava mais fundo no bairro. Decidiu que até aquele cara sumir, teria que ficar ali.
Puxou a carteira para acender um cigarro - hábito que estava tentando evitar fazia algum tempo, mas que voltava de vez em quando - e percebeu que estava sem nenhum. Procurou um chiclete. Nenhum. Olhou o anúncio de soju e esboçou um sorriso ao ver um amigo Idol todo sorridente segurando a garrafinha verde. Soju não seria ruim a essa altura do dia bosta que tinha tido.
O sinal de neon à porta da lojinha indicava que estava aberta. De seu esconderijo, Yoongi sondou o interior da loja para ver se havia muitos clientes que pudessem reconhecê-lo e percebeu que havia apenas a menina do caixa. Ela dormia abertamente com o rosto apoiado na mão e um livro enorme aberto sobre o balcão. Com sorte ela estaria sonolenta demais para reconhecê-lo se entrasse para pegar uma bebida e um maço de cigarros. Na pior das hipóteses era uma pessoa só para pagar pelo silêncio. Tateou os bolsos da jaqueta e da calça e encontrou uma quantidade razoável de dinheiro.
Olhou para a moça novamente, estudando se valia a pena o risco ou não. A cabeça dela começou a pender para frente. Aquele livro deve ser bem ruim para ela estar dormindo assim, pensou fascinado com a cena. Não sabia dizer o que mais chamava atenção na moça, se era o cabelo laranja, os brincos enormes, o sono solto ou a etnia dela. Não era sempre que encontrava negros em Daegu. Em Seul, sim, turistas em sua maioria, mas ali era bem mais difícil. E ela com certeza não parecia turista ou não seria caixa daquele lugar.
A cabeça balançou perigosamente e ele se viu entrando de supetão na loja, fazendo barulho à porta para que ela acordasse antes que se machucasse.
- Bem-vindo! - a ouviu gritar enquanto ele ia direto para o fundo da loja, rindo da cara de susto e do grito. O bom-humor acabou quando a rádio da loja começou a tocar Cypher e ele ouviu a voz melódica e cheia de sotaque da moça cantando. Abaixou o boné o máximo que conseguia e voltou a tatear os bolsos a procura da sua máscara infalível, exceto que ela não estava ali mais. Bufou irritado, olhando à sua volta no chão para ver se tinha caído por perto, cogitando até sair da loja sem nada, mas lembrou-se do jornalista e ele seria pior do que uma fã.
Esticou o pescoço para ver o que a moça estava fazendo e a encontrou olhando num espelho pequeno ao lado do computador, cantando verso por verso a parte de RM. Para uma não-coreana, até que ela mandava bem no rap. Pegou duas das garrafas verdes e um fardo da primeira cerveja que reconheceu, indo para o caixa com a cabeça abaixada, tentando evitar as câmeras que havia ali. Deu de cara com a moça fazendo careta durante o refrão da música. Franziu a sobrancelha, confuso, colocando suas compras sobre o balcão, preparado para o momento de reconhecimento.
- Desculpe, eu às vezes me empolgo com a música. - falou a guisa de desculpas. Ele apenas puxou a gola da jaqueta para cima, tentando não dar muita importância ou aproveitar aquela abertura para elogiar o coreano dela, mesmo cantando rap. Abaixou o boné mais um pouco e resmungou qualquer coisa.
- Só isso?
- E um maço de cigarros. - respondeu disfarçando a voz e apontando o balcão atrás dela, com cigarros de muitas marcas e isqueiros de todos os tipos. Deveria pedir um também, mas não ia realmente fumar já que estava tentando parar. Ia apenas colocar na boca e matar aquela vontade psicológica sem que seu pulmão sofresse no processo. Desviou o olhar para fora, lembrando de repente do jornalista.
- Olha, se for me assaltar, tem como você não fingir que vai pagar por tudo isso e só pedir o dinheiro? Sério, eu não vou ligar para a polícia, só não me faz perder tempo, sabe. - ele soltou a gola da blusa e a olhou espantado, finalmente a encarando de frente.
- O que? Não, eu não vou te assaltar! Vou pagar! Quanto deu?
Mas ela não parecia muito confiante disso. Viu-se através do pequeno espelho ao lado dela e se deu conta de que parecia um maluco mesmo. Eram só os dois na loja, não precisava bancar o esquisito por medo de ela reconhecê-lo. Ela o olhava com atenção, franzindo a testa e os olhos e se esticando toda no balcão para tentar ver de mais perto. "Pronto, agora ela me reconheceu" - pensou.
- Eu tenho a impressão que te conheço...
- Não, não conhece. Quanto deu, moça? - cortou antes que ela concluísse o próprio raciocínio. Podia ouvir claramente as engrenagens da mente dela começando a funcionar naquela madrugada, totalmente desperta.
Ela estava disposta a se lembrar de onde conhecia aquele rosto e aquela voz. Tinha certeza que conhecia muito bem aquele timbre rouco. Bateu a mão no balcão com força, se lembrando e, consequentemente, assustando-o. Ele deu um pulo no mesmo lugar, soltando um suspiro. Ia precisar ir embora sem bebida, sem cigarro e, provavelmente, sem dinheiro.
- Você é o cara que canta rap lá no Porão, não é?
- Porão?
- É! Na esquina com a treze? - perguntou, distraída demais para ver o desespero dele de ir embora. - É sim! AUGUST, NÃO É?
- August? - perguntou confuso. Jurava que ela ia reconhecê-lo do BTS. Quem diabos era August? O nome do alter ego era Agust! E o que raios era Porão? - Moça, olha, só me dá logo o cigarro e pega o dinheiro, eu to meio com pressa. Não preciso nem levar a bebida.
- Ah, desculpa, desculpa. Eu deveria me comportar. Desculpa. É que eu me empolgo. Desculpa mesmo, eu achei que você era um desses malucos que aproveitam a madrugada para roubar qualquer lojinha de conveniência aberta. Não é todo dia que alguém do Porão vem aqui, sabe? É o mais perto que vou chegar de uma celebridade, entende? Mesmo que seja uma celebridade nível Porão. - explicou passando as bebidas e o cigarro no leitor do caixa.
- Eu não sei do que...
- Certo. Finge que eu não falei nada. Sábado a gente se vê no Porão. - falou sorrindo. - São $22. - concluiu.
- Só?
- Só. - respondeu com simplicidade. - Achou que eu ia te extorquir? Vou fingir que você não é o melhor rapper do Porão, fica tranquilo. - A cara de espanto e incredulidade que ele lhe deu em resposta arrancou um sorriso sincero. - Até sábado! - completou assim que ele saiu.
Quinze minutos depois ele ainda olhava a fachada da loja pelo lado de fora. Tinha voltado ao seu esconderijo atrás do anúncio de soju e observava a moça lá dentro... Ela parecia mais empolgada do que nunca, cantando mais um rap do grupo em alto e bom som. Tinha certeza absoluta de que ela o reconheceria como Suga, mas ao invés disso o chamara de August.
August? Desviou os olhos dela para ver o próprio reflexo na mesma vitrine por onde olhava. Não chegava nem perto de como ficava caracterizado quando cantava como Agust D, então não era o alter ego que ela havia mencionado. Olhou de novo para ela, sorrindo sozinha e se pegou sorrindo também. Havia alguém no mundo, corrigindo, alguém em Daegu, que não sabia quem ele era. Ou quem Agust D era. A não ser que aquele August fosse algum sósia usando seu nome e sua imagem sem que a empresa soubesse.
Abaixou-se imediatamente, assustado porque ela tinha acabado de olhar em sua direção enquanto cantava e dançava sozinha. Seu coração batia acelerado, provavelmente com medo de que ela achasse que ele era um stalker qualquer. Mas ela nem parecia tê-lo visto, estava falando ao telefone.
- Você não sabe quem eu acabei de atender na loja. - começou sorrindo para o nada. Yoongi sorriu junto com ela sem perceber. - Não! Depois você dorme, você é rica! FOCO KANG NA RI! O que? Tá... prometo. Tá! Mas só porque foi alguém de lá. - respondeu parando de costas para a porta da loja, distraída. - É, é alguém que você conhece. Adivinha? Ele canta rap, é bonito e fala mais rápido que nós duas juntas. - continuou.
- Não!! Não é o King. Aquele cara não canta nada! Tá, você é péssima. Atendi o August. - completou. Ficou quieta um tempo e depois jogou a cabeça para trás numa gargalhada que arrancou outro sorriso de seu espião. - Agora você acordou, né? Pois quem quer ir ao Porão agora, sou eu. Sábado. Leva aquela jaqueta preta estilosa? Tá. Beijo. Boa noite. - desligou.
Yoongi ficou ali mais um tempo, esperando ela se distrair de novo para poder sair de seu esconderijo. A moça voltou para o livro enorme que estava lendo no começo e torceu o nariz para ele antes de voltar a folheá-lo. Foi a oportunidade perfeita para ele sair dali. Por segurança pegou outro caminho para voltar ao apartamento que tinha na cidade, mas não viu sinal do tal jornalista. Vir a Daegu não tinha sido uma completa perda de tempo, pelo visto. Agora ele tinha um lugar para conhecer e se tivesse problemas era só dizer que tinha a ver com música, porque no fim das contas tinha mesmo.
***
Como sempre, chegou em casa depois das duas da manhã. Estava morrendo de sono, mas ainda tinha alguns mecanismos de reação para concluir antes de ir para a cama. Sentiu o cheiro de bacon dobrando a esquina do quarteirão onde o prédio pequeno em que morava ficava. Micha estava acordada, tinha certeza. Seu estômago respondeu assim que parou à porta e o cheiro de bacon ficou mais forte.
- Eu espero que a senhorita tenha uma explicação muito boa para estar fora da cama a essa hora. - falou assim que entrou e tirou os sapatos. - E outra para estar fritando bacon de madrugada. Quer que a senhora Kim nos expulse? - seguiu o cheiro de bacon pela pequena cozinha que também fazia as vezes de sala e deu de cara com a filha de costas, nas pontas dos pés, tirando uma omelete de uma frigideira gigante. O cabelo caía comprido abaixo da cintura, com cachos bem mais definidos do que Greta jamais sonharia em ter.
Micha desceu do tablado e se virou para a mãe segurando a frigideira ameaçadoramente. De onde ela havia puxado aquela marra?
- Eu espero que a senhora tenha terminado sua lista de exercícios. - respondeu usando o mesmo tom de Greta, desviando o olhar e servindo a omelete num prato grande já guarnecido com mais bacon e uma porção grande de arroz branco.
- Faltam só dois exercícios. Consigo terminar am..
- Se você disser "amanhã" eu vou jogar esse ovo no lixo. - respondeu ela. Greta fechou a boca e um zíper invisível com medo da própria filha.
- Ok.
- Você comeu?
- Não deu tempo. - respondeu tirando a jaqueta e se sentando à mesa para comer. - Hoje eu conheci uma pessoa famosa! - contou. Era quase como se estivesse esperando para contar aquilo. Micha revirou os olhos.
- Famoso? Em Daegu? Só se for o Suga.
- Quem é esse mesmo?
- Mãe! É um dos que cantam Cypher!! - respondeu indignada. Greta riu.
- Não é ele, mas me lembrou da música também, porque ele também faz rap. Ele canta lá no Porão.
- Onde a tia NaRi te leva para ver se arruma um namorado?
- É! - respondeu automaticamente, mas se corrigindo logo em seguida - EI! EU NÃO ESTOU A PROCURA DE NAMORADO!
- Tanto faz, mãe. Coma um pouco e termine seu exercício. Tem outro prato desses na geladeira, caso a fome seja maior do que você. - respondeu dando de ombros.
- Nossa, não vai nem perguntar se tirei foto com o cara...
- Você tirou?
- Não. Mas...
- Você nunca tira, mãe. Vive dizendo para respeitar a vida particular deles, por isso que eu não perguntei. Eu sabia que não tinha tirado. Nem se fossem todos os meninos do BTS, eles mesmos, você não tiraria a foto. Imagine um cara que canta no Porão. - falou em tom de cansaço. Greta fez um biquinho e comeu um pedaço minúsculo de bacon, deixando a filha com peso na consciência. - Ele é legal, pelo menos? - perguntou.
- Mais ou menos, estava com um pouco de pressa e ficou escondendo o rosto o tempo todo. Teve uma hora que eu achei até que ele ia roubar a loja, de tanto que ele evitava a câmera. Acho que a fama meio que já subiu, sabe?
- Isso porque ele só é famoso em Daegu. Ainda bem que não tirou, então.
Greta ficou encarando a filha de onze anos, impressionada. Passou a mão de leve no cabelo solto da filha e sorriu.
- Você é maravilhosa, sabia? - sentiu o coração aquecer com o sorriso que recebeu. - Eu sou muito sortuda de ter você como filha, não sou? Você não está cansada? Deveria estar dormindo, tem escola amanhã.
- A primeira aula é Ciências, ta tranquilo. - respondeu tirando o pesado livro de Orgânica da bolsa da mãe e abrindo-o para conferir se ela tinha mesmo resolvido os exercícios. - Esses dois que você deixou? - perguntou, apontando dois exercícios circulados a lápis. Greta concordou com a cabeça, a boca cheia de comida. - Não são da lista. Sua professora só pediu até esse... - apontou um exercício na página anterior. - Dele em diante não precisava fazer. Muito bem, dona Greta, já adiantando os estudos. Estou orgulhosa.
Greta sorriu, fingindo importância e encheu a boca de arroz, segurando a vontade de agarrar a filha e apertá-la num abraço sufocante. Desde que ela completara onze anos não deixava mais, dizendo que já não era criança, então ela se segurava. Em resposta, surpreendendo as duas, Micha se aproximou e abraçou a mãe pelo pescoço.
- Agora que você comeu e estudou, vou dormir. Te amo.
- Também te amo, pequena. Obrigada pela comida. Amanhã quero a mocinha dormindo quando eu chegar, ok?
- Ok. Boa noite. - concordou com a cabeça e beijou o rosto da mãe. Não conseguia evitar de querer esperá-la, quase como se precisasse daquele contato para considerar o dia completo.
Deitou-se na cama de casal que dividiam e suspirou. Queria ter o próprio quarto. Queria não ter que gastar o tempo destinado ao segundo período na igreja por não ser aceita em clube nenhum. Queria não ter que fazer as horas do segundo período lá, assim não precisaria esperar a mãe até as duas da manhã para vê-la e muito menos bancar a mãe dela por causa da faculdade. Queria poder viver a idade que tinha. Colocou fones de ouvido e deixou a mente ir embora ao som de Mikrokosmos. Tudo ia melhorar assim que a mãe se formasse, ela tinha certeza. Riu ao imaginar Greta surtando sem poder tirar foto com o pseudo-famoso que havia encontrado na lojinha e pegou no sono pouco antes de imaginá-la conhecendo o BTS.
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