As I told you (ou epílogo)
As mãos dele suavam segurando a caneta que ele nem precisava mais usar. Mas era um jornalista à moda antiga. Gostava dessas peculiaridades de quando ainda era criança. Usava o gravador, sim, mas ainda preferia o bom e velho kit caneta e bloquinho, fazia com que se sentisse num desses filmes antigos de investigação policial. Mesmo que fosse apenas entrevistar mais uma idol.
Por segurança checou novamente a bateria do gravador novo e repetiu o gesto com o celular, para conferir a hora. Os boatos de que ela sempre se atrasava não o assustavam, mesmo assim não conseguiu evitar a ansiedade. Repassou mentalmente as perguntas que já tinha definido para a entrevista, tentando se limitar somente a elas, mas foi inevitável não ficar nervoso quando a gritaria do lado de fora do prédio anunciou sua chegada. Estava apenas dois minutos atrasada. Os boatos eram injustos.
Por hábito, conferiu o próprio hálito, mas abaixou a mão imediatamente porque a porta abriu no mesmo instante para que Micha entrasse. Estava bem mais alta do que ele se lembrava. E linda. Muito linda. O cabelo vinha bem mais curto do que quando era uma pirralha intrometida em Daegu, mas continuava bem cacheado e volumoso, sua marca registrada. Usava brincos grandes e óculos de grau redondos e quase nenhuma maquiagem. A roupa era bem mais simples do que ele esperava para uma rapper com o sucesso dela, mas, ainda assim, a tornava única. JiYoung ficou sem ar quando ela sorriu por tê-lo reconhecido.
— Kim JiYoung!? Meu Deus, é você mesmo!! — exclamou. Quebrando todo o protocolo e ignorando a presença dos fotógrafos, a moça simplesmente jogou os braços ao redor dele e o abraçou com carinho. — Oppa, agora você é jornalista! — exclamou surpresa.
— Sim... — respondeu timidamente. — Oi, Micha-ssi. Não precisa me chamar de oppa.
Micha riu porque ele não tinha mudado nada. As orelhas agora eram proporcionais ao resto do rosto e o corpo era bem mais atlético do que ela se lembrava, mas os olhos eram os mesmos, gentis e curiosos. A profissão de jornalista era simplesmente perfeita para ele porque ela não conhecia ninguém mais curioso – e fofoqueiro – que JiYoung.
— Fofo. — falou ainda sorrindo e se acomodando do outro lado da mesa do café fechado exclusivamente para aquela entrevista.
JiYoung sentou-se nervoso e pigarreou um pouco, tentando não olhar tempo demais para a mulher linda que sua amiga de infância tinha se transformado. A todo custo tinha evitado que soubessem que se conheciam, mas conforme a carreira dela chamava atenção e seu sucesso aumentava, o passado também o fez e então descobriram que eles iam ao mesmo grupo da igreja quando mais novos. Bastou isso para que ele fosse escolhido.
— Do que se trata essa entrevista, oppa?
— Por favor, me chame de jornalista Kim. — pediu. Sentiu as orelhas arderem e desejou que fosse inverno, assim poderia usar um gorro para escondê-las.
— Oh, desculpa. Jornalista Kim. — falou com uma risadinha. — O que quer saber?
— Acho que podemos começar do começo. Tudo bem se eu fizer perguntas relacionadas ao passado?
— Eu vou precisar responder todas?
— Se não quiser, não. Fica a seu critério. — falou com honestidade. Aos poucos começava a ficar confortável de novo, como se não tivessem passado os últimos onze anos longe um do outro.
— Ok, então. Acho que algumas coisas podem ser respondidas depois de tantos anos... — concordou ela se recostando na cadeira e cruzando as pernas.
— Certo. — JiYoung pigarreou e fez força para não olhar na direção delas, focando em seu bloquinho de anotações. — Você veio morar em Seul aos onze anos, com sua mãe e sua tia. Hoje é uma rapper premiada e ainda não saiu do ano de debut. O que você pode dizer sobre isso? Acha que essas coisas estão ligadas entre si?
— Com certeza. Vir para Seul foi o ponto chave de tudo isso. — respondeu com um sorriso orgulhoso.
— Pode detalhar?
— Bem, se eu não tivesse vindo para Seul naquele ano, provavelmente estaria no Brasil para fugir da pressão dos fãs e da imprensa.
— Você se refere ao escândalo envolvendo um membro do seu antigo grupo favorito?
— Antigo, não. Ainda é meu grupo favorito. Uma vez army, sempre army. — respondeu arqueando a sobrancelha. — Acho que os acontecimentos envolvendo o Suga foram o ponto de virada da minha vida, por assim dizer. — Como JiYoung não dizia nada, ela sorriu.
— Veja bem, provavelmente se nada daquilo tivesse acontecido, eu ainda estaria em Daegu, minha mãe teria se formado na faculdade e a vida seguido seu rumo. Mas aconteceu, então viemos a Seul e eu fui adotada pelo Yoongi como filha dele.
— A sua adoção foi um dos assuntos mais comentados naquela época. Acha que sua fama começou com essa situação?
— Espero sinceramente que não. Foram muitas sessões de terapia para não me sentir culpada e simplesmente curtir minha nova família.
— Culpada por que?
— Bem, depois disso eles foram para o exército, começaram carreiras solos, casaram, tiveram filhos... enfim, seguiram suas vidas separadamente, como sabe. E a imprensa sempre trazia a tona minha adoção, como se isso tivesse sido o principal motivo. Mas não foi. Cada um escolheu o próprio caminho e me adotar foi a escolha do Suga, provavelmente para nos proteger. Ganhei um pai e seis tios que me amam e me mimam até hoje. Mas fui usada como desvio de atenção muitas vezes. Muitas mais do que podemos considerar saudável, se posso dizer. — respondeu deixando o olhar se perder em algum ponto atrás da cabeça do jornalista.
— Quando era mais nova lembro de um evento onde você dizia ter visto seu bias entrando na lojinha onde sua mãe trabalhava. Passou pela sua cabeça que um dia o chamaria de "pai"? — recomeçou, limitando-se às perguntas que tinha planejado antes da chegada dela para tentar recuperar a leveza do momento e deixá-la confortável.
— Nunca! Veja bem, quando eu vim para Seul, a perspectiva era que minha mãe e tia Nari trabalhassem juntas, eu continuasse meus estudos aqui e todo mundo esquecesse as tais fotos envolvendo o BTS. Nunca imaginei que ela fosse procurar por ele por vontade própria. Na verdade, eu fui pedir ajuda a ele num fanmeeting e só depois descobri que foi sem necessidade.
— Você acha que se não tivesse ido e tentado, as coisas ainda teriam acontecido como aconteceram?
— Por que não? Acho que algumas coisas estão destinadas a acontecer, sabe?
— Por exemplo?
— Por exemplo você ser o jornalista hoje. Acha que foi coincidência?
JiYoung sabia que não. Tinha sido escolhido justamente porque seus superiores tinham ligado os pontos e descoberto que ele e Micha tinham crescido na mesma comunidade católica em Daegu. Não queria admitir isso em voz alta, no entanto. Parecia bem mais animador acreditar que tivesse sido o destino o responsável pelo reencontro deles.
— Se foi coincidência ou não, não sei te dizer. — começou. Fingiu anotar alguma coisa no bloquinho, apenas para não ter que encarar o olhar intimidador dela. — O que você pode me dizer sobre esse onze anos tendo alguém como o Suga em sua vida? Acha que isso influenciou na hora de produzir música?
— Acho que ajudou muito. Mas minha influência não vem apenas do BTS.
— Como assim?
— Minha mãe sempre amou rap. Cresci ouvindo Lauryn Hill, Eminem, Racionais MC, Kendrick Lamar, Mc Carol, Jay Park além do BTS, Agust D e todos os rapazes do grupo. A música sempre fez parte da minha vida porque sempre fez parte da vida da minha mãe, entende? Principalmente o rap. — fez uma pausa. — Acho que a influência que tive foi no aprendizado. Depois que fui adotada eu finalmente pude ter a idade que tinha. Isso ajudou muito. Eu até comentei numa das faixas do álbum. Chegou a ouvir?
— Sim. Eu diria que o rap não influenciou apenas a sua infância. — respondeu com um sorriso. — Digamos que me influenciou muito, Micha-ssi.
Ficaram se encarando em silêncio, absorvendo as mensagens implícitas daquela resposta dele. Então ele era seu fã? A moça sorriu e pegou uma das garrafinhas de água dispostas sobre a mesa para ela, ganhando tempo.
— Então sabe que tem uma música que fala de você também, não sabe? — desviou os olhos e levou a garrafinha aos lábios, satisfeita com o resultado. JiYoung podia ser um jornalista experiente agora, mas não conseguiria jamais esconder as orelhas vermelhas sempre que era provocado.
— O que teria acontecido caso sua mãe tivesse optado por realmente ir para o Brasil? — tentou mudar de assunto, ainda sem olhar nos olhos dela.
— Não estaríamos tendo essa entrevista, com certeza. — respondeu ela com simplicidade.
— Acha que estaria envolvida com a música?
— Não sei. Provavelmente não. No máximo teria muitas coisas de fã e escolhido outra coisa para fazer na vida adulta. As coisas são diferentes no Brasil.
— Acha que o BTS ainda existiria?
— Vai ter que perguntar a eles. — respondeu começando a se incomodar com a frequência com que o grupo entrava em pauta. — Sentiu minha falta? — perguntou de repente, quase o chamando de oppa de novo, mas se controlando.
— Você diz que a música e o rap sempre fizeram parte da sua vida, acha que tem relação com seu pai biológico? — continuou ele como se não tivesse sido interrompido. A melhor defesa era o ataque.
Micha ficou séria pela primeira vez, voltando a se recostar na própria cadeira e cruzando os braços protetoramente.
— Não quero falar sobre ele.
— Se seu pai fosse presente e não tivesse deixado sua mãe com você ainda pequena, acha que teria tido uma vida diferente? O que ele diz sobre você agora ser famosa no país dele?
— Não quero falar sobre Daniel, JiYang-ssi. — respondeu usando com ele um tom formal pela primeira vez na vida.
— Certo. — o rapaz ficou sem jeito, folheando as próprias anotações e se perdendo nas perguntas. Nunca tinha sido tratado com tamanha frieza e isso, de repente, o deixou com medo das consequências da entrevista. Pigarreou.
— Minha vez de perguntar. — começou Micha, desviando o olhar e focando na porta, talvez querendo já que aquela entrevista acabasse logo. — Se eu tivesse ficado em Daegu, teria se declarado de novo? — o pescoço dele estralando quando levantou a cabeça para encará-la fez com que ela sorrisse ironicamente, ainda sem olhar direto em seus olhos. O sorriso se ampliou quando ele bebeu meia garrafinha de água tentando recuperar a compostura antes de responder ou seguir para a próxima pergunta.
— Seu sucesso na música foi praticamente imediato. Estamos falando de vários prêmios ainda no seu ano de debut. O que pode falar sobre isso? É você mesma que compõe os raps que canta?
— Por que você não pergunta logo tudo o que quer perguntar sobre o Suga?
— Desculpe, eu não quis...
— Não. É sério. — ela agora o encarava abertamente, irritada com tudo. Não deveria ter se empolgado ao reconhecer quem era o jornalista, no fundo ele era mais um usando-a como desculpa para falar do BTS. — Ficou bem claro que você foi mandado porque sabe muito sobre como meu relacionamento com ele começou. O que quer saber? Seu chefe também acha que a minha adoção foi o ponto culminante do fim deles? Que minha mãe deu um golpe para poder sair da vida dura que levava por conta de... — ia dizer racismo, mas a palavra morreu em sua garganta. Suspirou cansada. — Nunca precisamos de homem nenhum para nos sustentar, como você mesmo sabe. Se Yoongi não tivesse sido meu padrinho na música, será que eu teria tantos prêmios? Bom, eu compus, como também sabe, praticamente todas as músicas do álbum. Claro que ele ter virado meu pai adotivo ajudou muito, porque de criança carente que usava as roupas usadas das filhas das mulheres da igreja, eu passei a agregada do BTS.
— Eu não...
— Vamos colocar todos os pontos nos is agora. Você me fez sair da minha casa, cancelar um jantar em família por curiosidade sobre a vida pessoal dos meus pais. Talvez porque teria levado um belo de um processo se tivesse perguntado direto ao Suga, já que minha mãe não é uma celebridade. Se perguntassem a ela, teriam... deixa para lá. — suspirou frustrada. — A minha adoção não deveria ser pauta mais. Já se passaram onze anos e ainda assim vocês se importam mais com isso do que com a música que eu levo daqui para o mundo.
— Isso não é verdade, Micha.
— Não? Até agora você não perguntou nenhuma vez o que me inspirou nesse álbum. Ou se eu sinto falta dos amigos que tinha em Daegu. Ou se a cidade tem alguma influência no que eu faço, já que além do Suga ela também foi berço de muitos outros artistas. Percebe agora?
Ficaram em silêncio se encarando. Só então ela percebeu que estava de pé, com as mãos apoiadas na mesa, falando tão rápido quando o rap do qual tanto tinha orgulho de fazer.
— Acabamos aqui. Foi um prazer revê-lo, Thomas. Ainda usa esse nome? — perguntou sem realmente querer a resposta. Segurou a bolsa minúscula, que carregava apenas para ter onde colocar o celular e o batom, e se afastou em direção a porta.
— Espere! — JiYoung a alcançou em dois passos. — Uma última pergunta.
— Você tem trinta segundos.
— Se não fosse essa entrevista você...
— Dez segundos.
— Aceita sair comigo? — ela arqueou a sobrancelha por um tempo e depois de um tempo sorriu. JiYoung não tinha mudado nada mesmo.
F I M.
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Nota da autora: gente, eu esqueci que não tinha atualizado aqui. Jurava que já tinha encerrado. Perdoa a burra aqui. Tem mais um cap, mas de agradecimentos. Obrigada por lerem até aqui.
ps: stream em Dynamite!
beijos <3
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