Capítulo Único
Por teres aceite o papel de minha beta reader. Pelas tuas sugestões cruciais e certeiras. Por teres vibrado com estes dois muito antes de qualquer um. O meu muito obrigada 💚
Olho sobre as páginas abertas à minha frente pela milésima vez, encarando a porta envidraçada do café de esquina. O passeio está cheio de transeuntes, mas ninguém faz menção de entrar no diminuto estabelecimento há vários minutos.
Maldita a hora em que aceitei sair de casa. Deixaram-me pendurado.
Inalo o aroma da minha edição de Lore Olympus para me ajudar a relaxar, apreciando a dádiva de ter nas mãos a versão física da webtoon que me apaixonou por este género de leitura. Depois, mais calmo, devolvo o marcador ao local de onde o tinha retirado, quatro páginas antes daquela que os meus olhos fitaram sem grande foco por quase meia hora. Não é o facto de ir na minha sexta leitura que me tem tão distraído. Se é para estar aqui assim, só a olhar para a porta, não vale a pena ficar no café a criar raízes.
Guardo o livro no tote bag e apanho o casaco das costas da cadeira. A empregada atrás do balcão segue-me com o olhar enquanto atravesso o espaço que mal chega a ter dez mesas. Quando paro à sua frente e me inclino sobre o expositor que nos separa, avaliando as minhas opções, o seu sorriso profissional torna-se genuíno, afastando a sombra do tédio.
Pesco a carteira distraidamente, matutando. A minha companhia nunca chegou para podermos fazer o pedido em conjunto, mas sinto-me mal em sair daqui sem consumir nada depois de tanto tempo a simplesmente existir no estabelecimento comercial.
Talvez algo recheado de açúcar me dê energia suficiente para enfrentar o Evereste de tarefas com que a faculdade me brindou este semestre.
— Rodrigo?
A dona da voz de contralto parada à minha esquerda abre um sorriso constrangido para a minha confusão. Não só ela não estava ali há instantes, como nunca a tinha visto antes na vida.
— Sou a Sandra, a amiga da Laura.
A empregada atrás do balcão afasta-se com um murmúrio ao ser chamada pelo casal de idosos acompanhado dos netos na outra ponta do estabelecimento. As minhas mãos apertam a carteira com mais força, numa tentativa de autocontrolo.
Não levei uma tampa. Ela só chegou atrasada. Muito atrasada.
— És o Rodrigo, certo? — pergunta, os olhos terrosos a espiar o nosso entorno com súbito receio de ter interpelado a pessoa errada.
Forço um sorriso, mas sou incapaz de afastar a secura da voz quando lhe confirmo que sim, sou o Rodrigo.
O Rodrigo com quem ela se deveria ter encontrado há mais de 45 minutos. O Rodrigo que ela claramente rejeitou depois de avaliar a aparência. Ao menos teve a decência de me vir notificar em pessoa, mesmo que tardiamente.
— Desculpa a demora — continua, remexendo na mochila cinzenta que até então tinha estado em simbiose com o tecido do casaco que lhe cobre as costas. — Para além do autocarro ter ficado uma eternidade no trânsito, ainda estive ali à porta, a decidir se deveria entrar ou não...
As suas mãos imobilizam-se e os dentes de cima vêm agarrar por instantes a bolinha metálica do piercing que lhe adorna os lábios pintados de azul. Eu observo-a em silêncio, curioso com a forma como me vai entregar a notícia.
— A verdade é que só vim aqui para fazer a vontade à Laura... Acabei de sair de uma relação e não estou pronta para outra, apesar dela insistir que tenho de sair e conhecer outras pessoas para superar o meu ex. Mas nunca é um mau momento para fazer um amigo — remata, retirando da mochila a sua própria edição de Lore Olympus.
Deixo os braços, antes em tensão, descaírem suavemente.
— Perdoas-me se eu pagar o lanche?
Abro a boca em falso, com hesitação incontida. A minha voz interior grita-me que me afaste, que estou prestes a ser alvo de escárnio. Mas o livro e o desconcerto dela contribuem para que a memória da espera se esfume, como se nunca tivesse existido. Ainda que não tenha a certeza, o seu tom pareceu-me sincero.
Por isso arrisco.
— Claro. Mas só porque és tu a pagar.
Tenho de agradecer à Laura.
Sim, eu e a Sandra fomos vítimas das suas tendências casamenteiras. Contudo, mesmo que nenhum de nós sinta que este encontro tenha dado frutos em termos românticos — pelo menos a curto prazo —, a verdade é que a conexão entre nós foi quase instantânea.
Estivemos no café durante horas, a conversar sobre tudo e sobre nada. Descobrimos que temos os mesmos gostos literários mas que somos incompatíveis em termos cinematográficos. As nossas viagens de sonho são para lados opostos do globo, mas ouvimos os planos de cada um atentamente e fizemos as nossas próprias adições a todos os roteiros turísticos discutidos. O seu interesse por desporto é maior que o meu, mas em conhecimentos de bandas, álbuns e singles eu triunfo.
Foi uma tarde tão bem passada que quando finalmente decidimos sair do café, quis convidá-la para passear pelas ruas da cidade. E se a Sandra não se tivesse adiantado à minha iniciativa, assassinando o meu cavalheirismo, tê-lo-ia conseguido. Contudo, o resultado foi o mesmo.
Prolongar o nosso encontro permitiu-me descobrir o quão delicioso é desfrutar do momento com alguém desconhecido, deixando as coisas tomar o seu próprio rumo, num improviso vagaroso. O quão gratificante é sentir uma afinidade abismal com outro ser humano.
Como eu gostava de o ter descoberto mais cedo.
Sandra caminha ao meu lado, com a sua altura a rivalizar a minha à custa do salto das botas que traz calçadas. As grandes argolas que tem nas orelhas balançam com cada passada, atraindo a atenção dos que a olham para a sua face de feições elegantes. As suas mãos dançam à sua frente enquanto me explica o tema da dissertação de doutoramento em que está a trabalhar, hipnotizando-me com o movimento que dá aos padrões que tem tatuados no antebraço esquerdo e com o retinir das escravas que enfeitam o seu pulso direito.
Quis perguntar-lhe se aqueles traços têm algum significado mal os vi pela primeira vez, mas sei bem que algumas perguntas não devem ser colocadas. Há histórias que nos chegam aos ouvidos nos momentos certos, se formos as pessoas indicadas para as escutar.
No meu caso, só a divina providência poderá ajudar a satisfazer a minha curiosidade.
Os pingos que julguei sentir enquanto subíamos a rua ficam subitamente mais grossos, assinalando a sua presença com pompa e circunstância.
Subo as mãos ao peito sem pensar, impulsionado pela crença de que as minhas roupas ficarão transparentes e delineadoras pela água, apesar de serem oversized. Depois, ao sentir o formigueiro das cicatrizes recentes, deixo de escudar do mundo as curvas com que nunca me identifiquei, agora ausentes.
Ainda não tenho o corpo com que devia ter nascido, mas estou cada vez mais perto de o alcançar. A batalha é dura e, mais vezes do que deveria, repetitiva e infrutífera. Mas, felizmente, sou abençoado com o apoio da minha família mais próxima e de alguns amigos, o que torna o fardo um pouco mais leve. A sua força traz-me esperança de um dia, num futuro não tão distante, conseguir cumprir o meu maior sonho: ter um corpo sem vestígios do erro no par de cromossomas 23.
As lentes dos óculos depressa denunciam que isto não é uma simples "chuva molha tolos" e, lembrando-me do livro no tote bag, escondo o meu saco debaixo do casaco ao mesmo tempo que amaldiçoo a meteorologia e as nuvens enganosamente claras. Se isto são 19% de hipóteses de chover, então se calhar o melhor que tenho a fazer é ir jogar no Euromilhões. Com sorte ainda levo prémio.
E pensar que ainda ontem quase podia andar de roupa interior na rua pelo calor. Rico Março me saiu este. Mais bipolar parece-me impossível.
— Onde é que vais, Rodrigo? — pergunta Sandra de repente, envolvendo o meu pulso magro com os seus dedos compridos.
Quero continuar a minha fuga para debaixo de um toldo ou varanda que me abrigue do choro dos Deuses, mas cometo o erro de olhar para trás e encará-la.
— Anda, vamos lá! Eu sempre quis dançar à chuva com alguém! — exclama, os olhos brilhantes como os de uma criança entusiasmada.
Sinto quando deixo de ter o controlo. Os meus músculos retesam e, qual pedra maciça, sirvo de âncora à Sandra, impedindo-a de me arrastar para o local que acha mais adequado para dançar.
— Rodrigo? O que é que se passa?
Tenho a sensação de cair depois de um desequilíbrio cambaleante, mas não sinto dor. A única coisa que ecoa pelo meu corpo é o bater cada vez mais desenfreado do meu coração, em parte estimulado pela constrição no peito que não me ajuda a respirar. Quero chamar pela Sandra, tentar explicar-lhe o que sei que se está a passar comigo, que o controlo que as garras do medo primitivo de algo tão singelo como dançar não é caso para alarme e aparato médico, mas não consigo. O ar que tento a todo o custo puxar para os pulmões colide naquele que me escapa sem permissão através da boca estranhamente seca, suprimindo as palavras que penso dizer.
A minha visão está afunilada, concentrada apenas na cicatriz que desponta do centro do decote em V da sua camisola negra, para lá das gotas cravadas nas minhas lentes. Porém, de certeza que veria preocupação nos seus olhos terrosos, um enrugar entre as suas sobrancelhas assimétricas e um franzir dos seus lábios azulados se conseguisse ver mais do que os poucos milímetros de diâmetro no meio da escuridão indistinta.
Não a conheço há muitas horas, mas parece-me uma reação que ela teria.
— ... andar?
Um puxão tenta içar-me, mas o meu corpo é irredutível. Por muito que me queira mexer, as pernas não me obedecem. E a origem daquele movimento depressa o entende, quanto mais não seja pelo safanão que lhe dei para me libertar.
— ...udo bem.... tás seg... não me v.... stou aqui...
O meu corpo arrepia-se com o peso de um dedilhar sobre o meu casaco de ganga, completamente à mercê das intempéries depois de me ter dobrado sobre mim próprio para controlar as tonturas. Em resposta, o toque desaparece, mas torna a regressar pouco depois, desenhando padrões nas minhas costas.
Quero agarrar-me à sensação, mas embrulho-me na obscuridade que se alastra pela minha mente e suplanta os sons e as sensações exteriores. Imagens de corpos a abanarem-se misturam-se com sabores amargos. Sinto gritaria e gargalhadas na pele como se fossem estalos de mão pesada. A pergunta fatal repete-se num loop distorcido, ganhando formas e texturas que se agarram ao meu corpo e me submergem no cheiro quase metálico do meu próprio terror.
Não há música. Não há deixa para iniciar aquele estranho comportamento, praticamente ritualístico. Nem sequer há público. Foi só uma simples e inocente sugestão. Mas foi o suficiente para ser arrastado para este estado, engolido por fragmentos dilacerantes daquilo que mais tento evitar na vida, acometido por tremores exacerbados pela falta de ar. O suficiente para me perder dentro de mim próprio, acotovelado por sombras dançantes, que troçam de mim na sua alegre agitação.
— ...pira.... Conta até... Insp.... até 5 ....
Uma voz afável alcança-me em vagas, como se estivesse alternadamente mais distante e mais próxima. Sempre que tento escutá-la, os significados fogem-me e as palavras evaporam-se. Há demasiado barulho a sobrepor-se, demasiada interferência. Mesmo nos instantes de incrível clareza, o meu cérebro não consegue manter o foco nos meus ouvidos, perturbado por todos os estímulos que o acometem.
No meio da confusão que sobrecarrega o meu sistema nervoso, reparo no toque de cadência irregular entre o polegar e o indicador do meu punho fechado sobre o peito. As minhas mãos, que retorciam o tecido da minha camisola e a manchavam de suor frio, perdem o propósito de minimizar a instabilidade do meu corpo e as dores no peito. Qual predador a desferir o golpe final na sua presa, a minha mão captura aquela que a tinha tocado, agarrando-a com força.
Agarrando o fio que me mantém uma réstia de sanidade intacta e me conecta à realidade.
— Isso mesm... ir muito b... Respira comig... — continua a voz, num constante ir e vir.
As areias de uma ampulheta que ninguém virou cedem à gravidade.
Lentamente, tomo consciência de que estou ensopado. Que os padrões traçados sobre o meu casaco continuam a acordar os meus músculos dormentes. Que os toques fora de ritmo nas costas da minha mão, que não pararam desde o momento em que os senti pela primeira vez, são a desculpa perfeita para me fixar no presente.
As tonturas que tinha são agora apenas uma memória difusa. O meu coração decide que o melhor lugar para si é no conforto e familiaridade do meu peito, aninhado junto a um pulmão que, em conjunto com o seu irmão gémeo, recuperam a destreza necessária à tarefa de respirar. As palavras começadas por "d" que me atormentaram fogem da ponta da minha língua e do turbilhão de sombras nos meus pensamentos, deixando uma sensação de leveza na minha alma que contrasta com a pesada rigidez do meu corpo.
Quando o nevoeiro que me envolve se dissipa, compreendo que as mãos que me tocam e me distraem pertencem à Sandra. A chuva começou a cair com mais intensidade no tempo em que perdi noção do meu entorno, mas não foi o som da água a derramar-se sobre a calçada que me chegou primeiro aos ouvidos.
Foram as palavras dela.
— Inspira. Sente a chuva. Expira — repetimos várias vezes, pausadamente, o meu fio de voz a fazer coro com o timbre dela.
Sandra cai no silêncio, ainda em contacto com o meu corpo, enquanto eu me agarrado àquela frase, reiterando-a como um mantra. Não sei quanto tempo fico assim ou sequer há quantos minutos estamos ali, parados no meio de uma rua deserta. Porém, pelo peso que a água imprime nas minhas roupas e pelo cansaço acumulado nos meus músculos, posso afirmar que já lá vão uns valentes instantes.
Só espero que o meu Lore Olympus sobreviva.
— Devia ter-te convidado para saltar nas poças de água — lamenta.
Plenamente recentrado, estudo Sandra, que se tinha ajoelhado no chão ao meu lado. Na minha desorientação, a sua presença foi o meu farol. Os seus gestos trouxeram-me à realidade, as suas palavras deram o ritmo correto à minha respiração e o seu silêncio apesar da curiosidade que arde descaradamente nas suas íris terrosas acalmou a minha mente.
Por muito que sinta vontade, não faz comentários, não faz perguntas. E experimento um singular desconforto no peito por isso.
As suas mãos apanham os óculos caídos entre nós e estendem-mos. No meio de tudo, não dei conta da armação redonda ter deslizado do meu rosto para a poça de água para a qual as minhas lágrimas de aflição contribuíram tanto quanto a chuva. Ainda atarantado, recupero o objeto.
— Felizmente isto não vai arruinar o meu cabelo — diz, passando a mão sobre a cabeça. O gesto atira água em todas as direções quando a pele da sua palma dobra as raízes espevitadas e milimétricas dos fios castanhos recentemente aparados. — Mas o mesmo não se pode dizer dos livros. Talvez devêssemos sair da chuva.
O meu coração tropeça no seu próprio batimento, de novo, quando vejo aquele sorriso constrangido. Ela já me tinha brindado com aquela visão algumas vezes ao longo da tarde mas, em cada uma delas, o meu corpo reagiu como se fosse a primeira. Não parece haver um número de exposições suficientes que anestesiem o meu coração para os efeitos desta visão.
Abro o casaco sem ter cuidado com a chuva e atiro os óculos para o interior do tote aninhado contra a minha barriga, plenamente consciente que é inútil colocá-los na cara neste momento. Depois, correspondo ao seu sorriso, ainda que apenas intimamente. Estou demasiado esgotado para que os meus lábios exteriorizem aquilo que me vai na alma.
Nenhum de nós está pronto para iniciar uma relação amorosa. Ela acabou de se libertar de um ex que a deixou com cicatrizes emocionais bem visíveis pela postura corporal e tom de voz, apesar da radiância do seu sorriso. Eu estou a atravessar uma fase emocionalmente desgastante e sinto que não tenho sentimentos positivos suficientes ou o estado de espírito adequado para me dedicar a outra pessoa da forma que ela mereça. Especialmente se for alguém tão genuíno, brilhante e alegre como a Sandra.
Mas quem sabe um dia.
— Acho que me deves, no mínimo, outro lanche. — Digo, erguendo-me de local onde, no meu pânico, me sentei. — No mínimo.
O chão ameaça fugir debaixo dos meus pés, mas fecho os olhos com força, ignorando a leveza de cabeça e a fraqueza do corpo. Ao pestanejar um par de vezes, nada mais afeta a minha visão do que o astigmatismo que os óculos normalmente corrigem.
Olho de cima para a Sandra, ainda sentada no chão. Os seus olhos analisam a minha linguagem corporal, em busca de sinais de que estou a forçar o meu corpo para algo que ainda não está preparado, fazendo-me de forte. Enternecido com a sua preocupação, estendo uma mão na sua direção, que ela encara com estranheza. Depois, finalmente convencida, aceita-a, içando-se até que os nossos olhares voltem a ficar ao mesmo nível, as nossas roupas encharcadas a roçar com a proximidade.
— Combinado! — sorriu. —Diz-me quando e onde, que eu tento não chegar atrasada desta vez!
2911 palavras
Se gostaram do tema de encontros na chuva, convido-vos a ler um texto mais antigo da minha antologia Simplesmente, no capítulo "Num dia de chuva".
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