Chào các bạn! Vì nhiều lý do từ nay Truyen2U chính thức đổi tên là Truyen247.Pro. Mong các bạn tiếp tục ủng hộ truy cập tên miền mới này nhé! Mãi yêu... ♥

𝟏𝟒. › TO BE GRATEFUL FOR

𝟎𝟏𝟒.                 PARA SER GRATO.

OUTONO⠀──⠀ NOV. 28, DOMINGO.
TORRE WAYNE, UPPER EAST SIDE.

A PELE DELA SE arrepia com o primeiro contato no chão de linóleo frio da cobertura durante a manhã, causando um arrependimento instantâneo por não ter calçado os chinelos antes de se levantar. Delilah não está acostumada com o frio característico daquele lugar, muito menos a acordar em um quarto que não é o seu, totalmente envolto pela penumbra. A Torre Wayne, incrivelmente silenciosa durante a madrugada, com seu clima gélido e com todas as luzes apagadas, equipara-se a um mausoléu.

As cortinas blackout nas janelas impediam qualquer entrada da luz do sol, fazendo-a entender por que Bruce opta por usar óculos escuros em casa. Acostumar-se com a claridade depois de tanto tempo na escuridão era algo desconfortável, e Delilah precisou de alguns minutos com os olhos fechados depois de abrir as cortinas para arejar o quarto de hóspedes. Pelo menos, ao abrir os olhos novamente, a vista compensou.

Ela poderia ver boa parte de Somerset. A torre era mais alta que a maioria dos prédios à sua volta, permitindo a visualização da ponte que ligava aquela área a Old Gotham. Há também as diferenças que se podem encontrar em Gotham pela manhã, quando uma luz diferente banha a cidade e suas nuances mais profundas são enfatizadas.

Em seu apartamento em Narrows, ela sempre podia escutar o som dos encanamentos e passagens de ar rangendo ou de algum carro de polícia passando pela rua, as luzes distantes refletindo em sua janela. Na torre, porém, as coisas eram diferentes. Não só porque a cobertura ficava no último andar, mas também porque o lugar onde estava localizado era tranquilo, calmo. As ruas em Narrows eram sempre úmidas, sujas e pútridas; o Upper East Side era o completo oposto. O lugar brilha pela manhã, floresce com uma iluminação diferente que transborda uma falsa tranquilidade.

A farsa é nítida e maleável. Fácil de ser destruída, o equivalente a soprar um castelo feito de cartas de baralho. Entretanto, Delilah pensa que poderia dissecar Gotham, usar seu próprio bisturi para abrir aquela cidade e expor tudo o que há dentro dela, e ainda assim não saberia do que ela é feita.

O que lhe resta é contentar-se com o que aquela manhã serve: silêncio. Algo que deveria ser bem-vindo, mas que abria espaço para seus pensamentos correrem soltos na floresta sombria que era sua mente. Não havia os sons urbanos habituais para embalá-la para dormir naquela noite, por isso Delilah passou um tempo acordada ── algo que ela não considerava um costume. Em muitas noites, ela caía no sono rápido; o problema era sempre fazê-lo durar mais do que apenas três horas.

Para ocupar sua mente, colocou os fones de ouvido e assistiu a alguns episódios de Bones no notebook antes dos remédios recomendados por Hunter fazerem efeito. Sentada na cama acolchoada e confortável do quarto de hóspedes da mansão, Delilah se recostou contra os muitos travesseiros com seu moletom cinza gasto e evitou pesquisar na internet qualquer coisa sobre a família Stirk, pois havia prometido a si mesma que não faria isso naquele fim de semana.

Ela não saiu do quarto mesmo quando escutou barulhos de passos no corredor, concentrada demais no que estava fazendo. Seus olhos ardiam e a luz refletia em seu rosto, fazendo-a piscar várias vezes para fazer as letras e os rostos entrarem em foco novamente.

Delilah caiu no sono alguns minutos depois, mal desligando o aparelho e o deixando de lado na cama king size, a pílula para a insônia fazendo seu efeito tardio junto ao acúmulo do cansaço da semana e ao álcool que bebeu na festa. Como era esperado, os pesadelos surgiram, acordando-a às dez horas e fazendo-a encarar o teto do quarto por longos minutos antes de se virar e levantar para encarar mais um dia.

Depois da higiene pessoal e de vestir uma roupa mais confortável para o dia, Delilah desceu as escadas, observando a arquitetura gótica da cobertura pela manhã. A luz do sol entrava através das grandes vidraças em frente à mesa hexagonal no centro, e o cheiro de bacon, café e vários outros temperos saborosos permeava o ambiente e o preenchia.

Seus pés a levaram até a cozinha, escutando a movimentação que vinha daquele cômodo. Delilah encontrou Alfred assim que entrou. O mordomo era o único presente; todos os outros empregados haviam sido dispensados durante o feriado para que pudessem passá-lo com suas famílias, incumbindo-lhe o dever de cuidar dos preparativos.

── Bom dia, senhorita Morgan ── Alfred a cumprimentou quando a notou. Simpático e gentil como sempre, porém sem retirar sua atenção de seu trabalho na cozinha, Pennyworth parecia feliz ao recebê-la. ── O café está na mesa, fique à vontade. Estou apenas preparando o jantar.

── Bom dia, Alfred. Obrigada. ── Delilah agradeceu. Enquanto se serve, pode escutar o som da faca cortando os legumes. ── Precisa de ajuda com algo?

── Não precisa se preocupar, senhorita, posso cuidar de tudo. Aproveite o seu café da manhã. ── respondeu Pennyworth. ── Teve uma boa noite de sono?

── Sim, fazia tempo que eu não dormia tão bem. ── ela respondeu, sorrindo minimamente para Alfred. ── Bruce planeja se juntar a nós?

── Não tão cedo, eu imagino. ── Pennyworth respondeu.

Delilah se ocupa em passar geleia em uma torrada, não deixando transparecer sua curiosidade em relação à falta de Bruce. Não passa despercebido por ela o olhar desgostoso nas feições de Alfred, enquanto o mordomo trabalha na cozinha.

Ela queria perguntar a ele se estava tudo bem, mas preferiu continuar seu café da manhã em silêncio. Alfred se sentou à mesa minutos depois, enchendo a xícara dos dois com café preto. Ela havia percebido que ele queria agir naturalmente, como se nada estivesse acontecendo, então assim o fez.

── As manhãs aqui costumam ser silenciosas desse jeito? ── Delilah perguntou, adicionando bacon e ovos ao seu prato.

── Gostaria de dizer que não, mas estaria mentindo se o fizesse. ── Alfred sorriu, usando uma colher para mexer a xícara após colocar três cubos de açúcar. ── A cobertura é grande, mas há poucos empregados.

── Imagino que você seja aquele com mais tempo de serviço aqui. ── Delilah comentou, ao que Alfred assentiu.

── Trabalho para os Wayne desde antes do nascimento do mestre Bruce. ── afirmou Pennyworth.

── Claramente você já não é mais apenas um mordomo. Está mais para parte da família a esse ponto. ── ela comentou, e saber que Alfred estava na vida de Bruce há tanto tempo a fez compreender o porquê de ele se importar tanto com a opinião do mordomo.

── Acho que pode se dizer que sim. ── Há um fantasma de um sorriso nos lábios do homem, enquanto ele leva a xícara até eles para beber um pouco. ── Após o falecimento do senhor e da senhora Wayne, assumi o papel de tutor legal de Bruce, com a ajuda da senhorita Leslie Thompkins.

── Leslie Thompkins? Quem é essa?

── Leslie era amiga próxima dos Wayne. Trabalhou no Elliott Memorial por muitos anos antes de sair e abrir sua própria clínica ao leste de Gotham, a Thomas Wayne Memorial. ── explicou ele. ── Uma clínica gratuita para ex-criminosos e viciados em drogas que buscam reabilitação.

── Não sabia que essa clínica havia sido fundada por ela. ── disse Delilah, surpresa. ── Escutei muitos comentários sobre, mas nunca cheguei a conhecer. Não costumo me aventurar por Crime Alley com frequência.

Ela havia ouvido falar do Thomas Wayne Memorial no Crime Alley, mas nunca havia se aprofundado no assunto porque Alistair havia comentado sobre a clínica uma vez, dizendo que era uma perda de tempo e uma suposta lavagem de dinheiro, pois a maioria dos pacientes ainda eram infratores reincidentes.

── Leslie sempre foi muito perseverante e determinada em seu trabalho naquele lugar. ── Alfred comentou. ── Encontrou sua própria forma de tentar fazer a diferença no mundo, mesmo que algumas pessoas ainda não vejam por esse lado.

Demonstrando compreender o que Alfred quis dizer, Delilah assentiu. Os dois continuaram o café da manhã em um silêncio agradável, escutando apenas a música que tocava no rádio em uma bancada na cozinha. Quando ambos terminaram, Alfred pediu desculpas pela ausência de seu patrão, alegando que ele não teve uma noite muito boa. Delilah o tranquilizou, dizendo que ele não precisava se preocupar, que ela entendia, mas não conseguiu evitar se sentir insegura.

Em alguns momentos, ela cogitou ir embora. Talvez Bruce estivesse arrependido do convite, percebeu que era um erro tê-la convidado para a Ação de Graças e agora Alfred não sabia como mandá-la embora sem parecer rude ou envergonhado. Ela pensou em ser uma pessoa madura e partir, mas percebeu que Alfred precisava de companhia. Seja lá o que tivesse recaído sobre Bruce, ele não parecia disposto a ver receber o próprio mordomo e o feriado parecia ser um dia importante para Pennyworth. Por isso, Delilah decidiu ficar. Pelo menos um pouco.

Delilah passou o restante da tarde ajudando Alfred na cozinha, os dois se dividindo entre os trabalhos. Às vezes, ela cortava alguns legumes, ajudava a preparar algumas sobremesas ou monitorava o frango no fogão. Durante cada minuto que passaram juntos, ela escutou Pennyworth contando suas histórias. O mordomo falava sobre sua juventude, sobre os Wayne e sobre Bruce. Confidenciou a ela algumas histórias constrangedoras sobre seu patrão, o que causava algumas risadas à mulher.

Ela também tomou a liberdade de colocar na sua estação de rádio favorita, mantendo o som em um volume baixo e cantando algumas das melodias que conhecia ao valsar pela cozinha, andando de um lado ao outro para garantir que nada queimasse ou passasse do ponto.

── Mestre Bruce comentou que você não costuma comemorar o feriado ── Alfred comentou. Delilah usa uma colher de madeira para experimentar um pouco do molho e, quando limpa os lábios, volta-se para o mordomo.

── Você sabe, não comemoramos o Dia de Ação de Graças na Inglaterra, então nunca fiz questão de comemorar quando me mudei para os Estados Unidos ── ela respondeu. ── Para mim sempre foi como qualquer outro dia que eu passo em casa comendo pizza e assistindo reprises de episódios das séries que gosto na TV. Apenas outro final de semana comum.

── Em qual lugar da Inglaterra você morou? ── Alfred a questiona.

── Alguns anos em Manchester, outros anos em Harrow e Londres, depois em Doncaster... ── disse ela. ── O trabalho do meu pai fazia com que mudássemos bastante, então até os meus 9 e 10 anos conheci muitas cidades.

── Vivi em Londres por longos anos, até ingressar no exército. ── disse o mordomo.

── Sente saudades do Reino Unido?

── Algumas vezes, sim. Mas só retornaria para uma visita, ainda tenho alguns parentes vivos que moram em Londres ── ele respondeu. ── Não me vejo morando lá novamente.

Alfred retira a torta de maçã do forno quando o cronômetro apita. Enquanto Delilah está na bancada de mármore, colocando uma pitada de sal no molho, ele passa por ela segurando a torta com duas luvas de cozinha azuis. Alfred levou a torta até uma mesa, deixando-a esfriando.

── Impossível não notar que você tem um certo apreço pela culinária ── Pennyworth comentou. Delilah sorriu enquanto cortava as batatas descascadas para preparar o purê, e o mordomo se encarregava de finalizar uma pasta.

── Cozinhar é uma das poucas coisas que eu gosto de fazer no meu tempo livre ── Delilah comentou, roubando um pedaço de queijo de uma tigela e levando-o à boca. ── Para uma pessoa que só vive de fast food, às vezes é bom fazer algo que não vai me entupir de colesterol. Alfred riu fracamente.

── Posso perguntar de onde veio esse hobby?

── Minha mãe. Ela adorava cozinhar. Trabalhou muitos anos em restaurantes ── ela comentou. ── Não teve muito tempo para me ensinar, mas eu lembro que amava vê-la na cozinha. Ela tinha uma paixão muito grande pelas receitas de família. Dizia que os Akhman's eram os melhores nesse quesito.

Era uma infelicidade que Rebekah nunca tivesse tido a oportunidade de ter seu próprio restaurante. Depois de vários anos se dedicando a ser apenas uma subordinada, ela merecia ter conseguido começar seu próprio negócio. Se as coisas não tivessem dado errado, se eles não tivessem partido tão cedo, talvez o sonho dela tivesse se concretizado.

Delilah pigarreou e se ocupou em levar a salada para a geladeira, desejando se afastar da melancolia. Ela não queria se afogar nos "e se" novamente, sabia que não valia a pena remoer o passado pensando em tudo que poderia ter sido diferente. Alfred cantarolou satisfeito uma meia resposta, notando as ações de Delilah porém não deixando transparecer.

── Se tiver algum prato em particular que deseje fazer ── sugeriu o mordomo ──, pode dizer. Ainda temos bastante tempo até o jantar.

Ele foi gentil ao olhar para ela, permitindo que a gentileza em sua fala fosse capaz de transparecer. Por um momento, Delilah se sentiu realmente acolhida.

── Obrigada, Alfred. Isso é muito gentil da sua parte ── Delilah sorriu para ele. ── Tenho algo em mente que deve combinar com os aperitivos do dia.

Além dos pratos típicos do Dia de Ação de Graças, como o peru assado recheado, purê de batatas com molho e batata-doce com couve de Bruxelas, Delilah se aventurou pela culinária de sua família, preparando dois pratos com a ajuda de Alfred. O primeiro foi o Falafel, bolinhos feitos de grão-de-bico processados com alho, hortelã e cenoura, e depois Kabsa, tipicamente feito com arroz basmati, carne, vegetais e uma mistura de temperos. Por fim, uma sobremesa: uma torta de damasco que era a favorita de sua mãe.

Eles terminaram próximo ao fim da tarde. Após limparem a cozinha e usarem a maioria dos ingredientes presentes nos armários e na geladeira, apenas o peru ainda estava no forno, terminando de assar, quando os dois se encaminharam para a sala. Alfred a convidou para uma partida de xadrez que Delilah prontamente aceitou. Eles haviam perdido o desfile de Ação de Graças mais cedo, algo que Delilah sempre tinha o costume de assistir quando estava em casa, mas dessa vez não fizera muita questão.

Como ela e sua tia não tinham o costume de comemorar aquele feriado como os outros, as duas assistiam ao desfile juntas antes de pedirem comida no restaurante favorito, fazendo disso uma tradição na vida de Delilah, junto de assistir ao episódio de Ação de Graças de Friends. Nadya não tinha muito dinheiro, então reservava os pedidos para dias especiais como os feriados que as duas passavam juntas e nenhuma delas queria cozinhar, ou os aniversários que Delilah nunca gostava de comemorar.

Por mais que Nadya não fosse totalmente presente na vida dela enquanto crescia ── sempre se desdobrando entre dois empregos para garantir que elas tivessem o que comer e onde morar, sobrava muito pouco tempo para ser uma figura materna ── e uma pessoa naturalmente difícil, Delilah sentia falta da tia em momentos como aquele. Elas não tinham muitas memórias juntas além daqueles pequenos momentos compartilhados.

O vazio e o arrependimento pela morte da irmã corroeram Nadya muito rápido, ao ponto de Delilah perdê-la poucos anos depois, ficando sozinha novamente.

Ela se acostumou, é claro. Anos antes, havia se acostumado. Aceitou que tudo que lhe restava de sua família sempre seria apenas memórias. Não havia mais ninguém lhe esperando em casa, ou alguém para quem ligar nos feriados. Sua vida se tornou notavelmente vazia, preenchida apenas pela nicotina, que acabaria a matando antes dos 30, e o trabalho, que a levaria à loucura antes dos 35. O pensamento por si só era mórbido, porém comicamente assertivo. Afinal de contas, sem o caso do Ceifador, quem era ela?

── Distraída? ── Alfred perguntou com uma sobrancelha erguida. Delilah piscou algumas vezes, afastando a névoa que rodeava sua mente e, encarando-o, percebeu que estava demorando para fazer sua jogada. Sua mão permaneceu estendida, pairando sobre um dos peões no tabuleiro.

── Desculpa, perdi o foco por um momento. ── ela respondeu. Ela desviou para o cavalo, fazendo uma jogada com ele e levando um peão de Alfred no processo.

── Algo em sua mente? ── Alfred perguntou, sem desviar o olhar das peças quando joga com seu próprio cavalo, levando três peças de Delilah. Ela comprime os lábios, concentrada.

── Nada importante. ── ela responde.

Pensativa, ela pondera suas opções antes de uma possibilidade lhe agradar. Uma última jogada com sua Torre coloca a Rainha de Alfred em xeque.

Ela havia ganhado pela segunda vez, e sorri amplamente quando o faz. Como um bom perdedor, Alfred pareceu surpreso e satisfeito, recostando-se em sua cadeira. Ele havia ganhado uma das partidas, mas Delilah levou a melhor nas outras duas.

── Foi um bom jogo ── ele constatou, Delilah assentiu. ── Você é uma ótima oponente, senhorita Morgan.

── Obrigada, são vários anos de prática ── respondeu, mal contendo o sorriso ladino em seus lábios que Alfred prontamente refletiu em seu próprio rosto com perspicácia, notando o humor cintilando nos olhos dela.

Delilah também relaxa em sua cadeira, permitindo que Alfred recolhesse as peças e as colocasse em seu lugar novamente. Enquanto o mordomo organizava o tabuleiro mais uma vez, Delilah permitiu que seu olhar vagasse pela sala até o retrato da família Wayne sobre a lareira. Uma pintura muito bem feita retratando Thomas, Martha e Bruce anos atrás.

A pintura era rica em detalhes, em muito se assemelhava a uma foto. Martha estava sentada em uma cadeira, enquanto Bruce estava em pé ao lado dela e Thomas se colocou atrás dos dois. Ninguém estava sorrindo amplamente, porém havia uma plenitude, um ar de sofisticação que não se fazia necessário sorrisos charmosos.

Delilah apreciou a pintura à distância, demorando-se sobre ela, sobre o rosto juvenil de Bruce, sobre as expressões tranquilas dos pais dele e a estonteante beleza de Martha. E ela se perguntou quantas vezes ele não fizera o mesmo depois que eles se foram, sentado naquele sofá e observando uma das últimas memórias que tinha dos seus pais internalizada em uma pintura.

── Como eles eram? ── Sem desviar seu olhar do quadro, Delilah perguntou a Alfred. Ele ergueu a cabeça e seguiu com os olhos para a mesma direção que ela, soltando um pequeno suspiro ao também admirar o quadro.

── Eles eram... ótimas pessoas. Os melhores patrões com quem tive o prazer de trabalhar ── respondeu o mordomo com seus olhos travados na pintura.

Quando ele fica em silêncio, parecendo pensativo e distante, Delilah pensa que ele encerrou o assunto, porém Alfred o continua segundos depois.

── Thomas Wayne era um bom homem. Um médico formidável, muito envolvido com a cidade e com seu trabalho. Ele sempre acreditou que Gotham poderia, um dia, se tornar um lugar melhor. Enquanto a senhora Martha era uma mulher muito dedicada, gentil e amorosa. Ela tinha uma visão semelhante à do marido. Os dois realmente se completavam.

── Deve ter sido muito difícil quando eles se foram. ── Delilah comentou, fitando o mordomo.

── Foi uma época sombria, sim. ── Pennyworth assentiu, desviando o olhar para o tabuleiro. ── Mas sobrevivemos a ela.

Delilah permitiu que o assunto se encerrasse, percebendo que, por mais que Alfred tivesse superado, ainda era algo delicado e que lhe trazia certo pesar. Concentrando-se mais uma vez no tabuleiro de xadrez, pegou duas peças pretas e as colocou em seu lugar. Eles estavam se encaminhando para a quarta partida, quando a porta da sala foi aberta e Bruce finalmente apareceu.

Ele parecia cansado, mesmo depois de dormir por tanto tempo. Piscou seus olhos algumas vezes para se acostumar com a claridade do local, levando as pontas dos dedos para esfregar as pálpebras fechadas. Bruce ainda estava vestindo sua roupa de dormir, que consistia em uma camiseta preta e uma calça de moletom da mesma cor. O cabelo estava um pouco bagunçado, outra evidência de que havia acordado há pouco.

── Boa tarde, patrão Bruce. Fico feliz em saber que finalmente decidiu se juntar a nós. ── Alfred o cumprimentou, ao que Bruce grunhiu. ── Um café bem forte, presumo, lhe cairia bem nesse momento.

Bruce lançou a Alfred um olhar cortante que em pouco abalou o mordomo, mas que causou um pouco de divertimento a Delilah.

── Boa tarde aos dois. E sim, eu... aceito o café. ── Wayne se encaminhou para o sofá de couro, sentando-se e massageando o ombro no processo.

Alfred se colocou de pé e, voltando-se para Delilah, pediu licença ao encerrar a partida dos dois antes mesmo que ela pudesse começar. Ele saiu pela porta principal, encaminhando-se para a cozinha e deixando Delilah e Bruce sozinhos quando o fez.

── Noite agitada? ── ela perguntou a Bruce, cruzando os braços. Ele direcionou seus olhos para ela pela primeira vez, mas por um breve momento, soltando um "tsk" desdenhoso.

── Você nem imagina ── Bruce debochou, massageando o pescoço, os músculos de seus braços tensionando no processo. Delilah desviou o olhar com relutância das veias marcadas em seu antebraço, tentando não deixar seus pensamentos vagarem demais, como ocorreu na noite passada.

Ela queria agir com naturalidade, ignorando tudo o que aconteceu na noite passada, mas estava se tornando difícil. Quando olhava para Bruce, Delilah se lembrava de tudo, pois não importava quantas taças de champanhe ela havia bebido, nada apagaria da memória dela a dança, os toques físicos fugazes ou o quase beijo.

Enquanto eles estivessem perto um do outro, Delilah continuaria revivendo cada momento em sua mente, tentando achar desculpas para tudo o que aconteceu. Ela quase sentia falta de quando ele estava trancafiado dentro de seu quarto; era mais fácil ficar na cobertura sem a presença de Bruce. Ao respirar profundamente, Delilah se convenceu de que precisava se ocupar de alguma forma.

── Quer jogar? ── Ela perguntou a Bruce, que estava preso em seus próprios pensamentos, olhando para algum ponto distante.

Quando sua expressão impassível se voltou para ela, Bruce olhou para o tabuleiro de xadrez com certo desinteresse. Delilah aproveitou aquele momento para observá-lo, notando o quão relaxado ele estava no sofá.

── Prefiro algo mais complexo ── Bruce respondeu. Ele se encaminhou a uma das gavetas de uma estante no canto da sala e retirou um tabuleiro de Go, apresentando-o para Delilah ao indagar. ── Sabe jogar?

Os olhos de Delilah o observam arrumar o tabuleiro e as peças sobre a mesa, pensando em como ele está agindo naturalmente. Ele a evitou quase o dia inteiro, fez com que Alfred a fizesse companhia como se quisesse evitá-la e agora agia como se nada estivesse acontecendo.

Delilah não sabia o que estava se passando na mente de Bruce, mas gostaria de poder descobrir. Gostaria de desvendar o que se passava por trás daqueles olhos azuis tão cansados.

── Delilah? ── O nome dela, de novo. Dito como se o universo tivesse feito aquela palavra só para ele. ── Eu perguntei se você sabe jogar.

Ele parecia estar se divertindo enquanto separava as pedras pretas das brancas que estavam todas misturadas em um saquinho. Delilah o odiava.

── Ah. Hmm, um pouco. ── Eufemismo. Go é um jogo perturbador e penosamente complexo, portanto era um de seus jogos favoritos. ── E você?

Bruce não responde. Em vez disso, acrescenta as suas pedras pretas ao tabuleiro e se senta, iniciando a partida.

── Você fica com as brancas, pode ser?

Ela queria dizer que não, mas assente, aceitando as pedras brancas quando ele as entrega e faz seus próprios movimentos pelo tabuleiro.

O jogo a distrai de seus pensamentos. A competitividade é algo do qual Delilah não se orgulha, mas não consegue evitar quando cruza as pernas em cima do banco e se concentra no jogo como se estivesse estudando o interior de um cadáver. Quase passa despercebido por ela a forma como Bruce a observa, sorrindo minimamente e de lado.

── O que foi? ── ela pergunta, se ocupando com suas pedras, brincando com elas entre os dedos.

── Nada ── ele responde, adicionando mais uma peça ao tabuleiro. Bruce tenta agir casualmente, mas Delilah não está disposta a ceder.

── Você estava olhando para mim e rindo, com certeza não é nada ── persistindo, ela retruca. Suas sobrancelhas se erguem e Bruce bufa baixinho.

── Você é muito persistente.

── Persistente, teimosa... Você sabe que sim. ── Delilah murmura. A testa dela franze, pensativa. Seus olhos analisam suas opções no tabuleiro antes de fazer mais uma jogada. Ela não está ganhando com a facilidade que esperava, ele é muito bom. Tão bom quanto ela.

── Adicione competitiva aos seus adjetivos. ── O comentário de Bruce a faz revirar os olhos, porém Delilah não nega.

── Tem poucas coisas que me cativam tanto quanto um jogo de tabuleiro bem elaborado ── disse ela. ── Por isso, não pense que vou facilitar para você só porque estou na sua casa. Também não quero que facilite para mim.

── Eu não estou.

── Bom. ── ela assente, evitando olhar para ele. Delilah não quer se desconcentrar, então desvia o assunto da conversa para outro caminho, um que ela pensa que pode controlar melhor. ── Certo, mas, de verdade, qual é o seu problema hoje? ── Delilah perguntou, sem conseguir se conter. ── Você dormiu a manhã toda. Pensei que não iria sair do quarto.

── Não estava me sentindo muito bem ── disse ele. ── Desculpe, não queria deixar você e o Alfred sozinhos.

── Você está melhor?

── Um pouco, sim ── ele assentiu, sério. ── Alfred me entregou alguns remédios mais cedo.

── Deveria ter ido ao hospital ── comentou Morgan. ── Também deveria ter me dito que não estava bem.

── Para você ir embora? ── Bruce a encara. Delilah meneia a cabeça.

── Bom, se eu soubesse que você estava passando mal, não teria ficado aqui até agora incomodando o Alfred quando ele deveria estar cuidando de você.

── Você não é um incômodo, Delilah ── disse Bruce com aquela seriedade que não dava brecha para dúvidas. ── E tudo que Alfred poderia fazer, ele fez. Estou melhor agora, não se preocupe.

Mordendo o lábio inferior, Delilah assentiu e desviou o olhar, deixando-o percorrer as peças de xadrez sobre a mesa enquanto o silêncio percorria a sala mais uma vez.

Eles continuam a partida por longos e acirrados minutos. Os dois estão em silêncio, porém Alfred ligou o rádio e uma música antiga está tocando. Barbra Streisand talvez, mas Delilah não saberia dizer.

Ela abre a boca de repente, quando nota que os dois se moveram para o mesmo quadrado. Seus dedos roçam os de Bruce e algo elétrico e não identificável percorre seu braço. Delilah espera que ele se afaste, mas ele não o faz. Mesmo sendo a vez dela. Pelo contrário, Bruce permanece parado, encarando-a. Delilah não tem muita escolha a não ser fazer o mesmo, pois não consegue desviar o olhar.

── Ora, ora, acho que temos um empate.

Delilah recua primeiro, fechando os lábios em uma linha fina. Alfred está ao lado dela, segurando uma xícara de café e olhando para o tabuleiro. Ela segue o olhar dele e quase engasga, porque... ele tem razão. Ambos venceram ── ou perderam, dependendo do ponto de vista.

Faz muito tempo desde a última vez que eu perdi uma partida, Delilah pensa. Ela ergue o olhar para Bruce ── ainda a encarando, ainda franzindo a testa, ainda a julgando silenciosamente. Como se Delilah fosse interessante, muito interessante. Ele chega ao ponto de ignorar a presença de Alfred.

Delilah abre a boca para perguntar o que está acontecendo, quando Alfred intervém mais uma vez.

── O jantar está quase pronto ── ele anuncia. Bruce engole em seco e finalmente desvia o olhar, encarando seu mordomo. ── Infelizmente, precisarei refazer uma das tortas.

── O que houve? ── Delilah o questionou.

── Não atingiu o ponto necessário, acho que errei algo na receita ── Alfred respondeu. Em seguida, Pennyworth se voltou para Bruce ── Enquanto eu refaço essa sobremesa, o que acha de apresentar a biblioteca da torre para a senhorita, patrão Bruce? Prometi que o faria mais cedo.

Bruce semicerrou os olhos para o mordomo, que o encara sorrindo amigavelmente. Delilah permanece em silêncio, apenas intercalando seu olhar entre os dois.

── Tudo bem ── Bruce concorda. Ele fica de pé e bebe um pouco do café, permitindo que Alfred recolhesse as pedras e o tabuleiro de Go. ── Me acompanhe.

Ao escutar o pedido de Bruce, Delilah se levanta e o segue pela cobertura. Os dois sobem para o segundo andar, onde param em frente a portas duplas de madeira. Bruce segura as duas maçanetas e abre as portas em conjunto, expondo o interior daquele cômodo para ela. E, instantaneamente, Delilah se surpreende. A biblioteca da cobertura era enorme. Todas as paredes eram preenchidas com estantes altas e fartas de livros. Milhares e milhares de exemplares ocupando cada mínimo espaço.

Delilah se encontrou fascinada pelo ambiente enquanto caminhava pelo cômodo, dando passos calmos sobre o piso de linóleo e observando atentamente os livros. Tocou em alguns com as pontas dos dedos, admirada pelas versões diferentes de algumas histórias. Bruce era um colecionador empenhado.

── Você leu todos esses livros? ── ela perguntou, olhando por cima do ombro para Wayne, que a seguia.

── Cada um deles. ── assentiu Bruce. ── Quando eu era mais novo, Alfred doou todos os livros. Meus pais haviam preenchido a biblioteca juntos, e Alfred quis que nós dois fizéssemos o mesmo. Então, com o passar dos anos, todo livro que li entrou aqui para reabastecer a biblioteca.

── Nossa... ── os dedos dela deslizam sobre os livros em uma estante, analisando cada nome na lateral.

Há muitos que Delilah não reconhece, edições antigas de várias peças clássicas, edições especiais, de aniversário... seus olhos se perdem em cada uma.

Bruce se afasta, permitindo a ela espaço. Ele caminha para o lado oposto, se ocupando com outros livros, colocando alguns que estão fora do lugar de volta à estante quando os encontra em cima de uma escrivaninha.

Delilah retira um dos livros da estante e o folheia enquanto caminha pela biblioteca. Seus dedos passando pelas páginas, tocando em cada uma delas enquanto lê alguns fragmentos. Ela acabou parando em frente a uma mesa de madeira escura, a escrivaninha antiga com estilo de um escritório. Delilah recosta-se sobre ela, parcialmente sentada sobre a mesa.

── Está lendo algo atualmente? ── ela questiona, observando Bruce balançar a cabeça de um lado ao outro, negando.

── Nada me interessou o suficiente ── ele responde, e Delilah cantarola uma afirmação, assentindo brevemente com a cabeça.

── Eu estou lendo "A Abadia de Northanger" ── Delilah comenta, folheando as páginas do exemplar de "A Metamorfose" de Franz Kafka. ── É um bom livro, mas estou sem tempo para ler.

Delilah fecha o livro de forma audível e o segura sobre o colo com as duas mãos, deixando seu olhar vagar pela biblioteca. O lugar ainda a impressionava, principalmente pelo tempo e cuidado que Alfred e Bruce investiram nela.

── Jane Austen? ── ele questiona.

── Sim ── ela respondeu. Bruce caminha pelas estantes, observando alguns livros, e Delilah o segue com o olhar. ── Já leu algum livro dela?

── Eu já li "Orgulho e Preconceito".

Delilah arqueia uma sobrancelha.

── Você leu "Orgulho e Preconceito"? ── ela indagou, surpresa. Bruce para de andar e a encara.

── Sim, por que a surpresa? ── questiona ele. ── Muitas pessoas falam bem, eu estava curioso para saber o porquê.

── Desculpe, mas você não parece o tipo de cara que lê livros de romance ── Delilah solta uma risada nervosa.

── Então, qual seria o meu tipo de livro na sua concepção? ── Bruce arqueia uma sobrancelha para ela, levando suas mãos aos bolsos da calça de moletom que está vestindo.

── Bom, esses livros filosóficos e difíceis que você precisa quebrar a cabeça para entender ── disse ela. ── Você tem muitos livros de diferentes técnicas de luta, de diferentes culturas, abordando vários assuntos complexos... Não vi nenhum livro de romance, então pensei que não fosse a sua praia.

Bruce não a responde, mas caminha até uma estante no canto direito da biblioteca. Ele demora alguns minutos até encontrar o que quer, mas logo retira um livro da prateleira e depois outros, até retornar para ela com cinco livros.

── Esses são apenas os que consegui encontrar ── diz ele, assim que entrega os livros para ela.

Delilah lê o nome de cada um: "O Morro dos Ventos Uivantes", "Orgulho e Preconceito", "Razão e Sensibilidade", "O Fantasma da Ópera" e "Romeu e Julieta". O último fez um sorriso ladino despontar nos lábios dela.

── Claro que você leu Shakespeare ── ela comentou, revirando os olhos. Delilah devolveu os livros para ele. ── Por causa de alguma peça da escola, eu imagino.

── Não, "Romeu e Julieta" não, mas "Hamlet" sim ── respondeu Bruce. ── Acho que ainda me lembro de algumas falas.

── Sério? ── perguntou ela, ao que Bruce assentiu.

Não podia evitar sua surpresa. Sabia que Bruce era uma pessoa sofisticada, mas não para esse lado. Havia certos aspectos, várias camadas dele que ela não conhecia, e era interessante poder vê-lo sob uma luz diferente.

── Duvides que as estrelas sejam fogo ── ele começou a recitar enquanto devolvia os livros para seus espaços na estante, atraindo o olhar dela para si mais uma vez. ── Duvides que o sol se mova. Duvides que a verdade seja mentira...

Mas não duvides do meu amor. Não disse em voz alta a última parte, porém seus movimentos param, a mão de Bruce permanece erguida enquanto ele está encaixando um livro de Jane Austen na prateleira mais alta, e seus olhos se encontram momentaneamente.

Nenhum dos dois diz nada. As palavras não ditas pairam, preenchendo a distância entre eles. Até que Bruce desvia o olhar primeiro, claramente desejando que Delilah não entenda errado o que ele quis dizer, retomando seu trabalho com os livros, enquanto Delilah finge interesse no livro de Kafka sobre a escrivaninha. As estranhezas daquele dia não pareciam ter fim, fazendo-a se questionar se não havia cometido um erro quando aceitou aquele convite. Sua cabeça estava dando voltas, era muito com o que lidar.

── Então... ── ela limpa a garganta. ── o que mais esconde, além do fato de ser um grande apreciador de romances?

── Eu não diria que...

── Qual sua cor favorita? ── Delilah o interrompe.

── Minha cor favorita?

── Sim.

Dava para ver uma ruga se formando entre os olhos dele, enquanto Delilah mordia o lábio para não rir, pois já sabia a resposta, entretanto era divertido ver a confusão no rosto de Bruce por não esperar uma pergunta como aquela.

── Por que você quer saber?

── Só estou tentando puxar assunto ── ela dá de ombros. ── Se somos amigos, eu deveria ao menos saber sua cor favorita.

── Está bem. ── ele respondeu, depois de analisa-la por longos minutos. ── É preto.

── Só podia ser. ── Delilah revirou os olhos, sorrindo.

── O que tem de errado com preto? ── perguntou ele, franzindo a testa.

── Não é nem uma cor. Tecnicamente é a ausência de cor. ── Delilah contorna a mesa para se sentar na cadeira. ── Mas tudo bem. Combina com a sua personalidade de herdeiro da trevas recluso e inacessível.

Bruce semicerrou os olhos para a petulância dela, cruzando os braços quando a viu colocar os pés cruzados em cima da escrivaninha.

── Essa mesa está na família há anos, é uma relíquia. Meu pai a recebeu depois que meu avô faleceu ── disse Bruce, sério. ── Infarto fulminante. Ele morreu em cima dela.

Delilah rapidamente abaixou os pés, pensando estar desrespeitando a memoria do avô de Bruce.

── Meu Deus, me desculpe, eu... ── Ela se calou quando percebeu que ele estava segurando o riso. ── Era mentira, não é?

── Alfred a comprou na semana passada ── disse ele, dando as costas para ela.

── Idiota. ── Delilah bufou, mas mordeu o lábio para não sorrir, enquanto balançava a cabeça de um lado ao outro.

O silêncio perdurou na biblioteca depois disso, ambos em cantos diferentes percorrendo os livros, folheando páginas e agindo como se nada estivesse acontecendo, como se não estivessem olhando um para o outro de soslaio de vez em quando. Quando chegou ao ponto do desconforto, Delilah pensou em conversar com Bruce sobre a investigação. Aquele parecia um bom momento para os dois conversarem sobre o que ela havia descoberto nos últimos dias, porém Alfred surgiu, chamando-os para a sala de estar.

Os dois o acompanharam, retornando para a sala, onde encontraram a mesa posta e com um pano branco cobrindo o tampo. Por mais que Delilah e Alfred tivessem passado horas na cozinha, não fizeram nada em grande quantidade, como seria apenas os três não havia sentido. Eles se sentaram à mesa, cada um em frente ao seu prato e o jantar passou a seguir seu curso.

Por um tempo, a tensão de antes havia sido deixada de lado. Delilah finalmente havia conseguido se livrar de suas preocupações quando engatou em mais uma conversa com Alfred sobre o antigo trabalho dele de ator, contando algumas histórias divertidas para ela. Bruce também se inteirava, compartilhando um pouco de sua opinião e prontamente elogiando ambos pela comida ── ela chegou a segurar uma risada quando notou Bruce comendo seu quinto falafel, agindo como se não tivesse notado.

── Então, senhorita Delilah, posso perguntar o porquê da medicina? ── perguntou Alfred quando a conversa sobre as tortas se encerrou. Ele utilizava a faca para cortar o frango, enquanto Delilah levava seu próprio pedaço à boca.

── O que me atraiu para a medicina? Bem, eu não sei... ── Delilah ponderou sobre sua resposta. ── Seria muito clichê da minha parte dizer que escolhi essa área porque sempre quis ajudar pessoas ── Alfred riu para si mesmo, e ela sorriu. ── Mas, de qualquer forma, não foi por isso. Não totalmente, na verdade. Passei muito tempo em um hospital nos últimos dias da minha tia, estive em contato com muitos médicos, passei a apreciar o trabalho deles, mas, durante a faculdade, percebi que queria atuar naquela área mais... fazer algo diferente.

Ela engoliu a comida, depois de levar mais uma garfada à boca e tentou focar em Alfred e não em Bruce, que mantinha seus olhos cravados nela, concentrado em cada palavra que Delilah dizia como se fosse algo muito importante.

── Pode parecer meio mórbido, mas eu sempre tive um fascínio em relação ao corpo humano. Nosso corpo é capaz de contar nossa história em vários aspectos, e ser capaz de solucionar crimes através das autópsias parecia seguir esse caminho ── disse ela. Em seguida, limpou a garganta ── Bem, no final, acho que eu sempre quis ajudar as pessoas mesmo, mas da minha forma. Essa acabou sendo a forma que eu encontrei de fazer a minha parte.

── É uma causa nobre. ── Assentiu o mordomo. ── E como tem sido trabalhar no Gotham Mercy?

── Tirando a parte da tentativa de assassinato, é ótimo ── Morgan respondeu com uma pequena risada fraca ao final da frase. ── Trabalhar com outras pessoas é sempre um pouco estressante, mas não há tantas pessoas trabalhando ativamente no necrotério, então eu tenho o meu próprio espaço quando preciso. Alfred assentiu, demonstrando compreensão.

── Eles melhoraram a segurança? ── Bruce perguntou, atraindo o olhar de ambos. ── Depois da invasão do Ceifador.

── Bom, o doutor Morrison falou sobre mudar os crachás e os sistemas foram atualizados, assim como as câmeras de segurança ── disse ela, incerta e ocultando a parte de que não viu nenhuma diferença desde que voltou a trabalhar. ── Não sei se temos verba, mas... acho que ele está trabalhando em reforçar a segurança.

── Realmente é algo que deveria ser uma prioridade ── Alfred comentou. ── Não apenas por causa da sua segurança, mas também pela segurança dos outros médicos.

── O prefeito deveria tratar isso como prioridade ── alegou Bruce, soando descontente.

── Seria o correto, ainda mais agora que ele está tentando limpar a própria imagem. Eu não me importaria se ele decidisse apoiar o Gotham Mercy, mesmo que por interesse ── Delilah disse, apoiando o queixo na mão, brincando com a comida em seu prato, recolhendo os resquícios do molho de damasco ── Às vezes, é necessário fazer algumas concessões para alcançar melhorias maiores. Mesmo que as intenções do prefeito não sejam as mais nobres, o resultado poderia beneficiar muitos. Por exemplo, precisamos melhorar a área pediátrica. O Gotham Mercy pode ser o maior hospital de Gotham, mas ainda estamos atrasados em várias melhorias.

Bruce se concentrou nas palavras dela, pensativo, desviando o olhar para as janelas por um instante.

── Uma festa de arrecadação de fundos poderia ajudar ── sugeriu Alfred, servindo-se mais suco. ── Seria viável e faria com que várias famílias de Gotham se envolvessem na causa.

── O complicado seria mobilizar algo assim em um momento tão incerto ── ela respondeu.

── Certamente seria no mínimo trabalhoso. ── afirmou Alfred. ── Mas há muitas pessoas dispostas a ajudar, mesmo que o prefeito não esteja.

Delilah cantarolou positivamente, levando uma última garfada de seu jantar à boca enquanto olhou para Bruce de relance enquanto o fazia, notando que ele olhava para ela antes de prontamente desviar o olhar e focar em cortar o frango em seu prato. Ele havia ficado em silêncio por um longo tempo novamente, absorto nos próprios pensamentos.

Pouco tempo depois da primeira sobremesa e mais conversa fiada, ela pediu licença e deixou a mesa para ir ao banheiro. A noite havia caído durante o tempo em que os três estavam jantando, porém Delilah nem ao menos notou o tempo passar. A conversa entre eles estava fluindo bem, apenas sentia um certo desconforto quando olhava para Bruce, mas quando estava rindo com Alfred ou fazendo algum comentário divertido, gostava de observar os olhos dele se iluminando.

Minutos depois, quando estava retornando pelo corredor, Delilah sentia-se mais leve, menos aflita. O peso que havia em suas costas sumiu ao longo daquele final de semana. Tudo voltaria ao normal na segunda, porém Delilah não estava pensando nisso. Ela não queria se preocupar com isso.

Estava prestes a abrir a porta da sala, quando escutou seu nome sendo dito por Alfred. No mesmo instante, Delilah parou.

── A senhorita Delilah tem sido uma ótima companhia ── comentou o mordomo. ── Ela se mostrou uma pessoa boa, muito inteligente e interessante. Uma médica extremamente profissional e dedicada. Me atrevo a dizer que seu pai adoraria conhecê-la...

── Alfred, eu sei onde você está querendo chegar e não, isso não vai acontecer ── disse Bruce em um tom de repreensão. ── Então, pare.

── Estou apenas fazendo um comentário, senhor ── retrucou Pennyworth.

── Eu conheço você, sei que não é apenas um comentário ── Bruce afirmou, seriamente. Ele parecia descontente com o mordomo.

── Então, o que exatamente acha que estou tentando fazer? ── era notório que Alfred mascarava suas verdadeiras intenções, fingindo ingenuidade.

Do seu lugar atrás da porta entreaberta, Delilah escutou Bruce suspirar profundamente. Ela poderia ver as costas de ambos de onde estava, observando apenas pela brecha.

── Nada vai acontecer entre eu e ela. Nem tente ver coisas que não existem, Alfred, eu não gosto da Delilah dessa maneira. ── as palavras de Bruce eram firmes, cortantes, haviam sido ditas enquanto ele olhava diretamente para Alfred elevando sua postura. ── Não me aproximei dela com esse intuito, eu o fiz apenas porque era necessário. Depois que essa investigação terminar, possivelmente nunca mais a veremos e vai ser melhor assim.

Delilah não negaria que havia imaginado que isso aconteceria, mas, ainda assim, algo dentro dela se contorceu quando escutou aquelas palavras saindo da boca de Bruce. Ela cogitou a possibilidade de se afastar, mas não conseguiu se mexer, ainda não estava pronta para sair do lugar.

Com a voz de ambos tão baixa agora, precisou se esforçar e se concentrar bastante para escutar o que eles estavam dizendo.

── Acha certo usá-la e descartá-la dessa maneira? ── Alfred indaga com uma voz carregada de desaprovação, porém murmurada para que apenas seu patrão pudesse ouvir.

── Ela não está sendo usada, nunca escondi minhas intenções ── retrucou Bruce no mesmo tom. ── Deixei claro desde o princípio o que era essa parceria. Deveríamos ajudar um ao outro, ponto.

── E a noite passada?

── O que tem a noite passada?

── Você a convidou para o jantar, mas não disse o real motivo ── disse o mordomo. ── Não contou para ela que só aceitou o convite por estar interessado em investigar o desvio de dinheiro da empresa. Não disse para ela que era tudo um álibi.

Houve silêncio, pois Bruce não lhe deu uma resposta, algo que fez Delilah se sentir ainda pior. Sua mão apertou a maçaneta, segurando a porta no lugar para que ela não abrisse e seus ombros ficaram tensos.

── Ao menos se importa com os sentimentos dela? ── indagou Alfred, por fim.

── Sentimentos? O que você está querendo dizer, Alfred? ── Bruce retrucou, olhando para o mordomo com o cenho franzido. ── Não é isso que está em questão aqui.

── Céus, às vezes me pergunto se você é realmente tão inteligente quanto diz ser ── murmurou Pennyworth, irritado.

Alfred deu aquela conversa por encerrada, retornando a se concentrar na comida que estava em seu prato. Mesmo se eles tivessem retomado a conversa, Delilah não estava mais escutando. Ela se afastou das portas e caminhou de volta ao banheiro para um momento sozinha dentro daquelas quatro paredes.

Quando fechou a porta e encarou a si mesma no espelho, não conseguiu manter o contato visual por muito tempo. Ligou a torneira e deixou a água correr por um momento, tentando limpar os próprios pensamentos antes de jogar um pouco de água no rosto.

Dentro de sua mente, ela dizia que não valia a pena ficar triste ou magoada pelo que escutou. Não deveria nem ao menos ficar surpresa. Bruce poderia ter mentido sobre seu intuito em relação à festa, mas não mentiu sobre o resto. Foi ela quem perdeu o foco, quem se deixou levar, quem leu os sinais errados e começou a fantasiar algo em sua mente que claramente não estava acontecendo.

A verdade era que seus sentimentos não importavam, nunca importavam. E, naquele momento, não era diferente. O que realmente importava era o caso e nada mais, isso era tudo o que ligava os dois. Ela não deveria culpá-lo por ter sido tola e não iria.

Delilah saiu do banheiro e subiu as escadas para o quarto de hóspedes, onde juntou todas as suas coisas e pediu um Uber que chegaria em 10 minutos. O trânsito deveria ser um caos naquele horário, porém não se importava em passar o restante do dia presa na ponte se isso significava estar longe da Torre e de Bruce. Ela precisava se afastar urgentemente, precisava de um tempo sozinha.

Depois de descer as escadas novamente e passar pela mesa redonda no hall, ela retornou para a sala onde encontrou Bruce ainda sentado à mesa e Alfred recolhendo os pratos. Ambos ergueram o olhar para ela, fitando-a.

── Eu estava indo pegar a torta de damasco agora na geladeira ── disse Alfred. ── Comentei com o mestre Bruce sobre ela e...

── Desculpe, Alfred, mas não vou poder ficar ── ela o interrompeu. ── Ocorreu um imprevisto.

── Está tudo bem? ── Bruce perguntou.

── Sim, tudo ótimo ── Delilah assentiu, aparentando naturalidade com as mãos escondidas dentro dos bolsos do casaco ── Apenas uma amiga que precisa da minha ajuda.

── Precisa de carona? ── Ele prontamente se colocou de pé com o intuito de se oferecer para levá-la, porém Delilah, distante, negou.

── Não, obrigada. Eu pedi um Uber ── ela respondeu, sem soar ríspida ou irritada, falando diretamente com os dois, mas sem olhar Bruce nos olhos. ── Obrigada pelo jantar. Foi ótimo. Alfred, obrigada pela companhia.

── Foi ótimo poder recebê-la, senhorita Morgan ── Alfred assentiu para ela, gentilmente. Seus olhos se encontraram por um momento, notando a forma como ele a analisava e ignorando isso quando deu as costas para os dois. ── Você é sempre bem-vinda para visitar a Torre quando precisar.

Delilah não disse nada, sem ter uma resposta em mente que não fosse uma mentira. Ela optou por ajustar a alça da mochila sobre o ombro e se encaminhar para a saída, escutando passos de outra pessoa pelo assoalho.

── Eu levo você até o elevador ── Bruce disse, fazendo-a fechar os olhos fortemente e suspirar sem que ele notasse. Delilah sabia que ele faria isso, mas não queria que ele fizesse. Preferia que não.

── Tudo bem.

Os dois caminharam juntos até a saída, acompanhados de um silêncio que era nada menos do que desconfortável. Bruce abriu a porta para ela, deixando-a passar. Delilah chamou o elevador, esperando poucos segundos até que as portas se abriram, revelando o interior metálico da caixa.

Quando estava dentro do elevador, Delilah se voltou para Bruce, encarando-o de dentro dele. Ela percebeu que ele chega a abrir os lábios para dizer algo e poderia jurar ter escutado seu nome, mas o interrompeu antes que Bruce pudesse ir mais longe, pois tinha medo de que, caso ele tomasse o controle da situação, acabaria convencendo sua mente a fazer o contrário.

── Descobri o endereço da casa em que Jeremiah morou com os pais na infância ── disse ela, cortando-o. Os lábios de Wayne se fecharam, formando uma linha fina. ── Não estava no nome dele, mas sim no da mãe. Ele nunca passou a residência para o seu nome, nem vendeu ou chegou a morar lá depois de tudo que aconteceu. A casa está fechada desde então.

── Como descobriu isso? ── Bruce perguntou.

── Fiz algumas pesquisas mais a fundo ── Delilah respondeu, dando de ombros. ── Planejo fazer uma visita à residência amanhã. Se quiser ir, podemos nos encontrar lá à tarde, assim que eu sair do trabalho.

Ele assentiu, desviando o olhar por um momento, observando um ponto no elevador antes de voltar para ela mais uma vez. Bruce a tratou da mesma forma.

── Me mande o endereço.

── Tá bom ── ela assentiu, sem olhar para ele, é claro. Era mais fácil falar qualquer coisa para Bruce Wayne sem olhá-lo nos olhos. Seus olhos que eram sempre tão tristes, mas tão bonitos, fariam ela repensar suas escolhas ── Vou fazer isso.

Delilah se inclinou para apertar o número do térreo, mas logo retornou ao seu lugar, colocando as mãos no bolso do moletom novamente. Enquanto as portas começavam a se fechar, o olhar deles se cruzou e nenhum ousou desviar quando aconteceu, mas também não disseram nada. Bruce permitiu que ela fosse embora, e Delilah não sentiu o alívio que esperava quando se recostou contra o metal frio do elevador.

Arrependimento preencheu seu interior. Pelo quê? Ela não saberia dizer. Por ter aceitado o convite de Bruce para a festa? Por ter escutado uma conversa que não dizia respeito a ela? Ou por ter tirado o foco da investigação, que era o que realmente importava? Não fazia diferença, ela não deveria se sentir arrependida. Cometeu um erro, apenas. Não o cometeria novamente.

Saindo da Torre, acendeu um cigarro e o colocou entre os lábios, engolindo o arrependimento toda vez que tragava. Aquele dia estava chegando ao fim e, como havia prometido antes, não permitiria mais nenhuma distração.

AUTHOR'S NOTE.

I. | Depois de travar no final desse capítulo umas 8 vezes, o que acabou atrasando a postagem, ele finalmente saiu! E ele ainda ficou ENORME, fugindo totalmente do que eu tinha planejado.

II. | Também queria avisar vocês que não sei quando o próximo capítulo deve sair, por isso não garanto atualizações frequentes mês que vem. Devo dar uma pequena pausa de ID para pré escrever mais capítulo, pois novamente fiquei com apenas um nos rascunhos.

Bạn đang đọc truyện trên: Truyen247.Pro