𝟏𝟏. › WORKING ON TRUST
𝟎𝟏𝟏. TRABALHANDO A CONFIANÇA
ANTES / OUTONO⠀──⠀ OUT. 15, SEXTA.
BURNLEY, CONSULTÓRIO DO DR. HUNTER.
A DEFINIÇÃO DE CEIFADOR, segundo o dicionário, é aquela figura que "destroi ou retira a vida de outra pessoa." Na Bíblia, o Ceifador é frequentemente associado à morte e ao juízo divino. Em várias culturas ao redor do mundo, ele carrega o mesmo significado e propósito: o fim de uma vida, a passagem para o além.
Bruce tinha lido o suficiente para conhecer todas as variações do Ceifador que existiam. E isso não era, de forma alguma, um eufemismo. Ele possuía um vasto conhecimento acumulado em sua mente, conhecimento que muitas vezes lhe servia como uma arma durante a calada da noite. Em outros casos, como este, era apenas um conhecimento de um tempo ocioso.
Ele tinha lido sobre o Ceifador em muitas formas: da figura encapuzada e esquelética que empunha uma foice à representação mais abstrata de um ente implacável que silencia corações. Cada lenda, cada mito, uma faceta do mesmo inevitável desfecho. Porém, para Bruce, essas histórias eram mais do que apenas contos; eram uma metáfora de sua própria existência e agora também se chocavam com a realidade.
A mídia deu a esse serial killer o nome de Ceifador anos atrás. E, assim como vários outros assassinos e homicidas conhecidos e desconhecidos, ele retirava a vida de pessoas inocentes. E o que o fazia se diferenciar dos outros? O fato de que ele se julgava incompleto. Como uma máquina que tinha suas peças faltando e não funcionava de maneira correta.
Para ele, os atos hediondos que cometia não eram meros assassinatos; eram rituais, uma busca desesperada para encontrar a peça que faltava em seu ser fragmentado. Cada vida que ele ceifava era uma tentativa de preencher o vazio, de corrigir o desequilíbrio que sentia dentro de si. Algo que não é justificado, mas também não era muito diferente do que outras pessoas faziam, sempre buscando formas de preencher os espaços obscuros criados dentro de si mesmos a muito tempo.
Todos os pecados são tentativas de preencher vazios, disseram uma vez. E Bruce não poderia negar a verdade que havia nessa frase, pois ele, melhor do que ninguém, a compreendia. Ele sabia bem o que era buscar alternativas danosas para preencher vazios.
── É inescapável, não é? ── indagou o doutor Hunter, sentado em sua poltrona e atraindo a atenção de Bruce para si mais uma vez. ── A tristeza. ── ele mesmo respondeu ── Mas a questão é, Bruce... o que você vai fazer com ela? O que você costuma fazer para lidar com ela?
Por um momento, ele havia se esquecido de onde estava. Havia permanecido em silêncio por tanto tempo, apenas esperando a hora passar e seus pensamentos vagarem, que pouco fez para processar as palavras anteriores do doutor.
Bruce encarava o psiquiatra e terapeuta, as palavras do homem flutuando no ar entre eles como um eco distante. Ele não se importava em dar explicações sobre seu estado de espírito. Na verdade, muitas vezes ele próprio não tinha certeza do que sentia. Tudo o que sabia era que a tristeza havia se transformado em algo mais sombrio, mais profundo. Algo que não poderia ser facilmente nomeado ou compreendido.
Aquelas perguntas permanecem no ar, pois Bruce não planeja respondê-lo. Se Hunter desejava obter alguma reação imediata da parte dele, não a alcançaria. Não ainda. Por isso ele continua falando.
── Perder seus pais em uma idade tão precoce, ter que lidar com tanta solidão, tanta violência. ── prosseguiu o Doutor, com tanta certeza em suas palavras ── Fazem apenas o que, cinco semanas desde que a senhora Dunlop encaminhou você para mim? E mesmo assim você ainda está sentado em silêncio, envolto nessa tristeza, deixando-a envolve...
── Não ── Bruce o cortou, cansado de ouvi-lo tirar suas próprias conclusões.
── Não? ── questionou Hunter, arqueando uma sobrancelha.
── Não estou triste, doutor. Parei de ficar triste anos atrás.
── Entendo... É algo diferente agora, não é? Algo que não vai embora, nem se dissipa. ── respondeu Hunter, rabiscando palavras em seu caderno. Em seguida, o olhar dele desceu ── Me diga, Bruce... como você machucou suas mãos?
Bruce olhou para as próprias mãos que repousavam em seus joelhos, analisando as pequenas cicatrizes antigas e os cortes mais recentes. Não era surpresa pra ele, por isso não houve nenhuma reação quando piscou seus olhos para suas juntas avermelhadas. Ele sabia que, cedo ou tarde, Christopher Hunter perguntaria sobre aqueles machucados.
Quando a pergunta foi feita, Bruce pensou na noite passada. Ele pensou em como seus punhos encontraram fortemente o rosto de um dos ladrões durante a madrugada. Três homens roubando um carro. O dono do veículo sofreu tantas socos e chutes daqueles bandidos que seu rosto ficou irreconhecível quando chegou ao hospital acompanhado da filha de 15 anos. Batman devolveu aos ladrões na mesma moeda.
Ele sabia que havia passado do limite. As marcas recentes estavam expondo isso. Porém tudo o que ele fez a si mesmo foi uma anotação mental para começar a enfaixar os punhos antes de colocar as luvas. Talvez fazer algumas adaptações aos dois pares, deixá-las mais acolchoadas já que eram bastante apertadas, como uma segunda pele. Ele buscava soluções para as consequências, como sempre.
── Acho que sei como você machucou as mãos. ── Hunter fez questão de quebrar o silêncio por Bruce, quando percebeu que ele não responderia. Os olhos azuis do Wayne o encaram, inquisitivos, observando o reflexo da luz daquela manhã sobre os óculos redondos do homem. ── Você claramente é um homem inteligente, mas ser inteligente não a reprime, não é?
A pergunta era retórica, porém Bruce compreendia bem onde Christopher queria chegar.
── Você está certo, não é tristeza. ── Prosseguiu o doutor ── É raiva. A mais pura e deliberada raiva. E você a está deixando sair da jaula para correr na floresta sombria, não é? Você veio até mim porque queria conter a raiva, conter a-
── Não, eu quero conter... os pesadelos ── Bruce umedece os lábios, seus olhos encontrando as estantes atrás de Hunter. Todos os espaços cheios de livros. Depois, suas orbes entraram em foco novamente, direcionadas ao homem sentado na poltrona marrom.
── Mas para fazer isso... ── Hunter escreve algo em seu caderno, depois olha para Bruce por cima dos óculos que estão na ponta de seu nariz ── Precisamos focar nessa raiva. Na fonte dos seus pesadelos. Você é um homem inteligente, senhor Wayne, mas talvez sobre as coisas erradas. Algumas vezes progresso e crescimento pessoal podem ser prejudicados pela suposta inteligência.
── O que quer dizer? ── Indagou ele.
── Com toda a sua esperteza, com toda a sua inteligência... você não pode parar os pesadelos sozinho. ── disse o doutor, ajeitando os óculos sobre o rosto com dois dedos ── Mas você é o homem mais rico da cidade de Gotham e mesmo na sua juventude... você sabia o que significava estar sozinho. Em quem você pode confiar quando todos querem o que você tem?
── Existem pessoas.
── Sim, seu mordomo. E a sra Dunlop, eu acredito. Mas até mesmo ela, você afastou anos atrás, então não sei dizer se há confiança nessa relação agora ── comentou Hunter. ── Isso não te perturba?
── Deveria?
Bruce conhecia Dana Dunlop há muito tempo. Durante sua época na academia de Gotham, eles namoraram por 3 anos e ela realmente significou algo para ele. Ele confiou nela, mas não o suficiente para expor o que se passava em sua mente. Os conflitos, o medo.
Talvez porque Dana nunca entenderia. Ela ainda tinha seus pais ao lado dela, teria uma carreira promissora, uma boa vida que ela merecia ter e manter. E Bruce ainda estava lidando com os mesmos demônios. Dana merecia mais, por isso ele terminou com ela. Agora quando a via, feliz e casada com alguém que realmente a amava, tinha certeza que fez o certo.
Não significava, é claro, que ele havia deixado de vê-la como uma boa amiga. Ela era a única pessoa naquela época que não se aproximou dele por interesse. Hoje em dia, nada havia mudado. Dana ainda era doce e prestativa ao ponto de ter recomendado Christopher Hunter para ele depois de algumas conversas trocadas em um encontro ao acaso.
── Duas pessoas. É tudo o que você consegue pensar.
── É o suficiente ── Bruce afirma.
── É claro, para algumas pessoas sim. Pessoas que não são como você... ── respondeu o doutor. ── Só estou destacando o quão anormal sua situação é. Mas você está aqui. Então me deixe te ajudar.
Christopher se voltou para o aquário com os peixes, ligando as luzes do aparelho de hipnoterapia pela segunda vez durante uma sessão deles e Bruce sentiu-se um pouco desconfortável. Porém, ele não tentou impedir Hunter.
Bruce havia se perguntado quanto tempo demoraria até Hunter fazer isso novamente. Na primeira sessão deles, quando Bruce ficou em silêncio durante cada segundo daquela 1 hora, Hunter percebeu que ele não seria tão fácil de lidar e deixou o aparelho desligado nas sessões seguintes, até encontrar uma brecha.
Bruce havia dado a ele a brecha que precisava quando decidiu falar naquele dia.
── Dana confia em mim, você confia na Dana. ── disse o Christopher, abrindo um sorriso amigável. ── Então vamos trabalhar juntos, o que acha?
AGORA / OUTONO⠀──⠀ NOV. 25, QUINTA.
NARROWS, COMPLEXO DE APARTAMENTOS.
Do lugar onde está em pé no telhado, Batman observa o complexo de apartamentos à sua frente, analisando cada pedaço daquele lugar.
É uma estrutura antiga, ainda em tijolos, sem qualquer pintura. Paredes pichadas na lateral, uma caçamba de lixo grande e vazia no beco ao lado, agora que um caminhão se afasta após recolhê-lo. Ele presume que a única segurança que aquele lugar apresenta é a viatura de polícia que agora permanece ali durante todo o dia desde a invasão.
Não há câmeras de segurança nem na entrada e nem nos corredores. O zelador é um homem de meia idade que já deveria estar aposentado a essa altura. A segurança naquele lugar é baixíssima, algo que explicava a Bruce como o Ceifador havia conseguido entrar no apartamento dela dias atrás.
Ele observa ela abrir a janela e se afastar. As cortinas balançam do lado de fora. Todas as luzes da sala estão acesas. É tarde. Meia-noite e meia, e Delilah ainda permanece acordada. Era a deixa que o Batman precisava para ir até ela.
Na noite passada, quando ela lhe pediu ajuda, Bruce pensou muito sobre as possibilidades. Ele não mentiria, havia pensado em confrontá-la como Batman mais uma vez. Preocupado com a possibilidade dela lhe esconder informações por não confiar totalmente nele como Bruce Wayne, sentia que devia intervir como Batman. Ele teria mais autoridade e motivos para exigir a verdade do que Bruce. Porém, ela o surpreendeu fazendo isso antes que ele decidisse agir.
Depois do confronto no beco, depois que ela o encarou de uma forma que nenhuma pessoa que salvou antes havia olhado, ele se sentiu estranho. Havia se sentido visto. Realmente visto e não temido. Como se não houvesse violência no mundo que a assustasse mais. E, Bruce sabia o quanto isso era danoso. Isso o fez repensar várias vezes se deveria ou não entregar o que descobriu a ela. Se deveria ou não entregar mais munição nas mãos de uma patologista brilhante, mas também intrigante. A mulher que não saia de sua mente a semanas pois ele ainda não conseguia definir o que ela realmente era, quais eram suas verdadeiras ambições.
Quando pesquisou sobre ela no banco de dados da polícia e no Google, todas as informações eram vagas e nada parecia fora do comum. Tudo condizia com o que ela contava: pais mortos, órfão aos 10 anos, criada pela tia, formada na escola de medicina. Nenhuma foto na internet, nada para se recordar. Ela era menos ativa nas redes sociais que ele, e vivia tão simplesmente que fazia Bruce questionar se havia algum motivo oculto para isso.
Mesmo com suas dúvidas, ele estava decidido a confiar nela naquele momento. Gotham era uma cidade que não parava nunca. Os crimes organizados continuavam acontecendo, mesmo com um serial killer à solta e ele era apenas um homem. Uma gangue estava lhe dando dor de cabeça a semanas, roubando lojas e conseguindo driblar os alarmes de segurança. Tudo o levava a crer que eles eram de East End, um região notória que abrangia toda a Crime Alley. Mas, se quisesse ter certeza disso, precisaria de tempo para investigar, tempo para buscar as informações e conseguir mais pistas.
Não havia mais ninguém para Bruce confiar o caso do Ceifador. Era claro que ele ainda tinha Gordon, porém o tenente não estava em uma situação melhor do que a dele. Por isso, se Delilah desejava mesmo prosseguir investigando aquele caso, principalmente por estar tão ligada a ele, o vigilante veria até onde ela conseguiria ir.
Ao entrar no apartamento pela janela, ele não faz nenhum barulho. Seus passos são silenciosos, nem mesmo o alerta de sua chegada. Em sua mão, Bruce segura uma pasta de papel pardo. Pasta contendo todas as informações que Delilah havia pedido, incluindo o nome do suposto suspeito de 20 anos atrás. Poucas horas atrás, Batman havia confrontado Gordon sobre isso. Aquela informação havia sido escondida dele e Bruce queria respostas.
── Você não me contou que tinham um suspeito ── ele disse, assim que se aproximou de Gordon naquele prédio que ainda estava sendo construído. Jim olhou para trás, fitando-o.
── O que? ── o tenente perguntou, confuso. ── Como assim suspeito? Do que você está falando?
── Durante a primeira onda de assassinatos do Ceifador, 20 anos atrás, vocês tinham um suspeito ── Batman respondeu. ── Por que não me contou?
Jim pareceu relaxar, suspirando. Ele balança a cabeça de um lado ao outro.
── Não escondi essa informação de você. Ela só não é útil ── explicou Jim, parecendo mais cansado do que o normal. O sol estava se pondo no horizonte e era claro que ele não devia dormir desde o pôr do sol do dia anterior. Gordon era quem mais estava se desdobrando por causa daquela investigação.
── Por que não?
── Porque... ── ele arfou e resmungou para si mesmo, colocando as mãos na cintura. ── Quer saber, acho melhor você ver por si mesmo, morcego. Vou na delegacia pegar a pasta desse caso e você vai entender.
Quando Gordon faz menção de se afastar, Batman intervém.
── Preciso de todas as informações que vocês tiverem sobre Jeremiah Stirk.
── Também acha que ele está envolvido nesse caso? ── indagou Jim, voltando-se na direção dele.
── Estou seguindo um palpite.
── O da doutora Morgan, eu imagino. Vocês dois andam se falando? Depois daquele dia no estacionamento, pensei que ela nunca mais fosse falar com você.
── Eu analisei a autópsia dela, sei que há semelhanças com as outras vítimas. Jeremiah pode ser a chave para descobrirmos quem é o Ceifador ── ou Ceifadores, Bruce pensou, levando em conta que agora Delilah havia confirmado para ele que haviam dois assassinos.
Jim pareceu analisá-lo por alguns minutos, semicerrando os olhos quase imperceptivelmente. Bruce não compreendeu aonde ele queria chegar com isso e não teve a chance de perguntar.
── Pelo o que li sobre o Stirk, não há muito sobre ele que possa nos levar a algum lugar ── Gordon comentou, se direcionando ao elevador. ── Mas talvez você e a doutora Morgan tenham mais sorte do que a gente.
Depois que Gordon saiu, Bruce ainda pensava no que ele havia dito, na desconfiança implícita em suas palavras. Para um homem que não havia gostado de saber que Delilah estava investigando aquele caso sozinha, Jim não havia contestado a suposta parceria dela com o Batman e isso fez Bruce pensar sobre o que se passava na mente dele. Talvez Jim estivesse realmente desesperado. Cansado demais de ver aquele caso se estender.
Ele estava ficando sem opções e talvez confiar nos dois fosse tudo o que ele tinha, pois Savage era ignorante demais para ver o óbvio e o prefeito estava muito preocupado em recuperar a sua imagem para se importar. No final, era tudo uma grande tentativa de contenção de danos. A vida das pessoas não importava de verdade, e isso dava ao Batman o direito de agir por eles.
Bruce teve mais certeza disso quando leu os arquivos que Jim lhe entregou. Tirando as informações sobre Jeremiah, os papeis sobre o suspeito acabaram o surpreendendo e ele realmente entendeu o porquê de Gordon ter descartado aquela informação. Ela realmente não era útil. Mesmo assim, ele estava disposto a entregá-la a Delilah para que ela ao menos tivesse uma resposta concreta, assim como ele.
O ar da noite entrou no apartamento enquanto ela estava de costas. Delilah estava na cozinha, retirando uma chaleira do fogão. Com o cabelo solto, veste um cardigã branco com ondas azuis e vermelhas no meio. A roupa é longa, quase chega até as coxas dela que estão cobertas por uma legging preta.
Sobre a mesa de jantar havia um notebook cinza e dois cadernos. Um parecia ser de anotações e o outro continha desenhos. Réplicas perfeitas de um crânio humano e de um coração. Um lápis repousava sobre ele, porém escorregou para a mesa assim que o vento o atingiu deixando preso entre a garrafa de smirnoff e o gravador preto que eles encontraram no transporte mortuário. Das vezes que eles se encontraram, Bruce havia esquecido de perguntar a ela o que havia feito com o aparelho. Delilah também não o mencionou em nenhum momento, como se estivesse ignorando a existência do mesmo.
Durante algum tempo, ela permanece onde está, enchendo uma caneca com água quente e servindo-se com o chá. Bruce espera pacientemente que ela se vire, sem ter qualquer intenção de anunciar sua presença. Entretanto, quando mais uma rajada de vento frio entra pela janela, balançando as plantas artificiais nas prateleiras, ele nota que ela fica tensa. Aquela é a única evidência que ele tem de que sua presença foi reconhecida.
Em seguida, ela repousa a chaleira lentamente sobre o fogão. Segurando a caneca pela alça, Delilah volta-se para ele sem expressar qualquer reação. Ela não parece surpresa com a presença dele. Inicialmente, poderia ter tido medo de encontrar algum inimigo, mas manteve a calma durante cada segundo. Ela era muito boa nisso.
── Tenho certeza que entrar na casa de alguém sem ser convidado configura invasão de propriedade. ── Aquilo é tudo o que ela diz ao vê-lo, sendo tão petulante como sempre. Bruce também não se surpreende com isso.
Ele anda em passos largos, ergue a pasta de tom pardo em sua mão direita e deposita em cima da bancada de mármore que divide a sala da cozinha próximo e deixando-a proxima a um gato preto feito de porcelana que era a única decoração daquele espaço.
── Você roubou isso? ── Delilah pergunta.
── Eles não vão sentir falta.
Delilah esticou a mão, pegando a pasta sobre o mármore frio. Ela parecia um pouco hesitante ao fazer isso, desconfiada. Bruce deu a ela seu próprio tempo para abrir o arquivo e folhear as páginas com cuidado, lendo o que estava escrito em cada uma com atenção.
Não havia muito para se ler. Ele mesmo havia retirado um tempo minúsculo para absorver aquelas informações. Muito do que tinha ali não era relevante, segundo a concepção dele. Mas talvez para ela fosse útil.
── Nesses arquivos tem tudo o que a polícia conseguiu sobre Jeremiah Stirk até o momento ── ele comentou enquanto ela lia. ── Também tem as informações sobre o suposto suspeito.
Ele a observa começar a ler cada linha, analisando também algumas imagens, fotos retiradas das cenas de crimes. Enquanto ela faz isso, sem nem ao menos piscar e se incomodar, Bruce olha para a porta do quarto que está totalmente aberta. Algo no fundo dele chama a atenção. Seus olhos observam o quadro na parede.
── Você tem andado ocupada ── comenta o vigilante. Delilah ergue o olhar da pasta e segue o olhar dele. Quando entende onde ele quer chegar, o canto esquerdo de seu lábio desponta para cima.
── Preciso ocupar meu tempo com algo ── Ela responde, voltando suas orbes esverdeadas para os arquivos mais uma vez, sem se surpreender pelo Batman ter visto seu quadro investigativo. ── Essa é a melhor forma de fazer isso.
── Deveria deixar coberto.
── Eu deixo, não se preocupe ── disse Delilah, mantendo sua atenção nas folhas.
Ele não disse mais nada depois disso, deixou que a mulher se concentrasse no que fazia.
Delilah virou mais algumas páginas, procurando aquela última informação em específico e que deveria ter lhe deixando mais inquieta, pensativa. Bruce viu o momento em que ela encontrou. Seus olhos estavam lendo cada palavra na ficha, o dedo indicador com o esmalte preto lascado acompanhando as frases.
── O DNA de Brian Hayes foi encontrado na vitima. Uma testemunha viu um homem que se assemelhava a Brian saindo da cena do crime ── Ela leu, porém manteve o tom de voz baixo para não atrair a atenção de seus vizinhos. Então a testa dela se franziu, da mesma forma que a dele naquele estacionamento. ── Morto 5 anos antes do primeiro crime?
Delilah piscou os olhos algumas vezes e depois olhou na direção dele. Os lábios entreabertos enquanto formulava a sua pergunta.
── Como isso é possível? Como o sangue de alguém que morreu 5 anos antes da primeira vítima aparecer foi encontrado na cena do crime? ── Ela indagou, fechando a pasta e cruzando os braços.
── O Ceifador deve ter feito isso para enganar a polícia ── disse Bruce com sua voz grave de Batman encobrindo o seu verdadeiro tom. ── Gordon disse que foi encontrado DNA de outros dois homens falecidos nas cenas de crime seguintes. Todos falecidos por volta de 5 a 4 anos antes das vítimas do Ceifador surgirem.
── Por isso a polícia não divulgou o primeiro suspeito ── ela murmurou, pensativa. Delilah mordeu o lábio inferior, olhando para algum ponto no chão da cozinha. ── Se teve uma testemunha que viu um suposto Brian Hayes fugindo da cena do crime, significa que o Ceifador se vestiu como ele para tentar dar mais veracidade a essa mentira. Ou ele comprou alguém para isso, mas não acho essa opção muito viável.
── Por que não?
── Porque isso colocaria ele em risco ── Delilah respondeu, olhando para ela em seguida. Em nenhum momento, o olhar de Batman se desviou dela ── Ele era a pessoa mais procurada daquela época. Não podia confiar em qualquer um. A pessoa poderia delatá-lo, mesmo se não soubesse quem ele era. E, segundo o que eu li aqui, ── ela ergueu a pasta ── a testemunha jurou até o último minuto ter visto alguém como o Brian.
Isso era verdade. A testemunha, uma mulher mais velha chamada Anna Bolton, era caixa de supermercado. Ela jurava ter visto alguém como Brian naquela noite, quando voltava do trabalho e trombou com a multidão em volta da faixa da polícia. Ela descreveu características exatas que ele tinha. Cabelo ruivo, barba média e óculos de grau redondos. O rosto dele estava coberto por um chapéu e o sobretudo, mas ela viu o nariz torto de relance. Tudo condizia com Brian Hayes. Ele era o suspeito perfeito. Tirando, é claro, o fato de que estava morto.
Ele sentia a frustração que irradiava de Delilah naquele momento. Era frustrante, mas ao mesmo tempo ela estava tentando se contentar com o que tinha. A possibilidade de haver uma ligação entre Brian Hayes e o assassino pairava no horizonte, porém Bruce desconfiava de que aquele caminho também levaria a nada.
Morgan abriu a pasta sobre a mesa, dessa vez focando no que havia ali sobre Jeremiah, o caminho mais concreto que eles tinham.
── Os policiais não encontraram nada de relevante ou comprometedor no trailer do Stirk, nada que ligue ele aos assassinatos ── ela comentou. ── Mas encontraram muitos recibos de uma floricultura. Bom, isso faz sentido. Ele deveria levar flores para a mãe sempre que ia visitá-la.
── A última compra dele foi em Setembro, três dias depois que a primeira vítima apareceu ── Batman pontuou, e ela concordou com a cabeça.
── Ele voltou para o trailer depois disso. Tony, o segurança da Universidade, disse que não costumava vê-lo muito pelo campus em setembro. Começou a ficar mais tempo longe durante essa época ── disse Delilah. ── O que significa que ele não deve ter sido sequestrado na Universidade. Pode ter sido em qualquer lugar de Gotham agora, mas também não temos como confirmar isso porque, claro, as câmeras de segurança foram apagadas.
Bruce não perde o tom de deboche que há no tom de voz dela, um quê de irritação. A polícia havia investigado as câmeras de segurança, porém a universidade não tinha mais as filmagens de setembro. As câmeras apagam as filmagens antigas depois de duas semanas. Não havia nem ao menos um segundo armazenamento.
Seguir os passos de Jeremiah se mostrava um trabalho mais do que complicado. O transporte mortuário tinha muitos recibos, nem todos eram pertencentes ao Stirk. Outras pessoas que costumavam usá-lo também costumam descartar seu lixo dentro do veículo. Porém, de certa forma, foi fácil identificar aqueles que só pertenciam à vítima. O único lugar que ele frequentava com frequência era uma floricultura em Burnley e um fast food. Talvez fosse necessário visitar a loja em algum momento.
Delilah massageou a têmpora, mantendo os olhos fechados e respirou fundo. Em seguida, ela se voltou para o vigilante mais uma vez, parecendo ainda mais cansada sobre a luz amarelada da cozinha, o rosto marcado por uma noite mal dormida.
── Andei pesquisando sobre o pai do Stirk, Fenton. Descobri algumas coisas interessantes ── ela comentou ── Li algumas matérias buscando saber sobre a casa deles, se ainda está no mesmo lugar, se pertence ao Jeremiah ou não... acabei descobrindo que o senhor Stirk trabalhou em uma fábrica durante a maior parte da vida. Na época em que atacou a esposa e tentou matá-la, havia sido demitido sem receber nada porque a empresa declarou falência. Advinha qual era a empresa que ele trabalhava?
── Sionis Enterprises ── ele respondeu.
── Bingo. ── Delilah se aproximou do mármore frio e se apoiou nele, deixando seus antebraços apoiados ── Sei que isso não justifica ele ter surtado e tentado matar Elizabeth, mas pelo menos "explica" o que o levou à loucura. Os Stirk naquela época deveriam estar zerados. Nenhum dinheiro, nenhuma economia. Mesmo se tivessem algo, eles não eram ricos, era o trabalho de Fenton na fábrica que os mantinha e ele o perdeu antes de receber qualquer salário no mês seguinte. Isso me faz questionar como Jeremiah conseguiu manter a mãe dele em uma das casas de repousos mais caras de Gotham?
O questionamento pairou no ar, fazendo Bruce franzir levemente o cenho abaixo da máscara e erguer uma sobrancelha, algo que sempre fazia quando estava pensativo.
── Você leu o mesmo que eu li, sabe o que eu sei. ── continuou a Morgan, gesticulando um pouco com as mãos ao falar ── Jeremiah não costumava movimentar muito sua conta bancária, nenhum valor absurdo entrava e ele trabalhava em um trabalho mediano na universidade. Antes disso, sempre trabalhou como zelador, faxineiro, motorista... trabalhos que ajudavam a manter ele, não a mãe. Não houve uma herança de família porque eles não tinham mais nada. O estado só ajudou quando ela entrou para uma instituição psiquiátrica, depois disso Elizabeth era responsabilidade do filho. Algo não está batendo nessa história.
E realmente não estava. Bruce não havia pensado por esse lado. Agora que Delilah havia pontuado isso, ele começava a se questionar sobre essa questão também. Jeremiah viveu uma vida simples desde que saiu do reformatório. Não se envolveu em nenhum outro crime, desde então sua ficha estava completamente limpa.
Ele viveu como um qualquer, buscando se afastar do terror que marcou a história de sua família. Não tinha amigos, não era próximo de ninguém. Era difícil dizer quem aquele homem realmente era, além daquilo que deixou transparecer para os outros. A polícia ainda não havia investigado os outros lugares que ele trabalhou, ── e talvez nem chegasse a investigar, levando em conta como estavam tratando aquele crime ── porém todos que chegaram a conhecê-lo deveriam ter a mesma opinião do segurança Tony.
Estranho. Foi assim que Jeremiah Stirk foi definido. Ele se destacava por isso quando alguém se lembrava dele, mas também era ignorado por conta desse aspecto. Talvez, isso fosse tudo o que ele precisava. Tudo o que aprendeu a apreciar em si mesmo, afinal o beneficiava ao ponto de transformá-lo em um fantasma, alguém imperceptível.
O olhar dele encontrou o de Delilah, e Bruce imaginava que os dois deveriam estar seguindo a mesma linha de raciocínio naquele momento, porém não verbalizam isso, parecia precoce demais tirar conclusões sem provas. Eles mantêm tudo o que tem a dizer guardado. Para aquela noite, as descobertas que haviam feito eram o bastante. Observando o relógio na parede atrás dela, o vigilante sabe que aquela deve ser a sua deixa para ir embora.
── Quando eu tiver mais informações sobre esse assunto, entrarei em contato com você ── ele diz, dando as costas para ela.
── E se eu conseguir essa informação primeiro que você? Posso conseguir mais pistas também, como entro em contato? ── Delilah o questiona. Batman para próximo à janela. ── Espero até que você esteja entediado e decida invadir minha casa de novo?
── Fale com o Gordon.
── Não vou brincar de telefone sem fio, morcego. ── respondeu a Morgan. Ela cruza os braços, encarando ele ── E não estou afim de escutar sermão do Gordon. Ele vai me dizer para parar de investigar sozinha, e eu não vou parar. Vou continuar investigando esse caso.
── Eu sei que vai, ouvi alguns rumores sobre você ── o Batman comentou.
── Coisas ruins, espero ── um leve sorriso toma a expressão dela.
Bruce a fita por um momento, sem expressar nenhuma reação. Em seguida, ele se volta para a janela e fala com ela quando está saindo.
── Vou arrumar uma solução ── Ele garante. De seu lugar na escada de incêndio, Bruce - ou melhor, o Batman - deixa que seus olhos se encontrem uma última vez antes que ele parta.
Há um entendimento mútuo entre eles, ele percebe aquele brilho no olhar dela. Delilah não tem mais nada para dizer, então permite que aquela conversa se encerre ali e apenas observe cada movimento dele, exatamente como fez naquela noite, em silêncio e sem impedi-lo de partir.
Quando está sendo puxado pelo gancho no lançador em direção ao outro prédio, Bruce ainda está pensando na conversa que eles tiveram. Ao olhar para trás, nota que as luzes dela ainda não se apagaram e pensa que isso não deve ocorrer tão cedo. A noite gélida de Gotham o recebe, tão familiar e inquietante, enquanto o vigilante ainda pensa no que pode fazer e em como vai prosseguir.
Bruce se envolve com os crimes e com a violência daquela cidade. Ele se ocupa em proteger os moradores, se empenha em garantir a segurança que a polícia e o prefeito falham em fornecer as pessoas. Ele quebra as regras para isso, se torna o que há de pior, se funde com as sombras, anda por cima da lei, e não há nenhum arrependimento nele quando o faz.
Entretanto, ele nunca tira ela de sua mente. Por isso, retorna a Narrows na calada da noite. As janelas estão fechadas e todas as luzes apagadas, porém Bruce consegue abri-la o suficiente para deixar o rádio sobre a madeira fria da pequena mesa com o jarro de flores. Ele não deixa nenhuma mensagem, nem nada para identificar, porém sabe que Delilah irá entender quando visse o aparelho. Aquele era apenas mais um voto de confiança que ele estava dando, e esperava que ela não o desperdiçasse e nem o fizesse se arrepender.
AUTHOR'S NOTE.
I. | Primeiro capítulo narrado pelo ponto de vista do Bruce finalmente aconteceu! O que acharam? Confesso que fiquei com medo de não conseguir escrever, porém esse capítulo fluiu tão bem quando eu comecei, mesmo não estando dentro do meu planejamento inicialmente. Foi super fácil desenvolve-lo.
II. | A conversa do Bruce com o doutor Hunter foi inspirada em uma sessão de terapia que o Bruce tem na HQ "Batman: The Knight". Alguns pontos do passado do Bruce e como ele veio a se tornar o Batman também vão ser retirados dessa HQ. E, caso não tenha ficado claro, essa consulta ocorreu antes da Delilah começar a frequentar o consultório do Hunter. A primeira consulta dela foi em novembro, esse flashback do início ocorreu em outubro, então ainda não é a consulta que o Bruce tem no dia que os dois se encontram na recepção.
III. | As atualizações devem continuar no mês que vem, porém será intercalada com a atualização de uma outra fic minha. Então, uma sexta deve sair capítulo novo de Inner Demons e na seguinte cap. da outra história.
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