𝐗𝐗𝐈𝐈𝐈: 𝐇𝐨𝐧𝐞𝐬𝐭𝐢𝐝𝐚𝐝𝐞ʳ
Gally encarou Annie ainda sem acreditar, seu olhar chocado ia da garota para o muro e do muro para a garota, ficou assim por longos segundos enquanto digeria aquela informação. O choque então começou a dar lugar ao medo, começou a temer a possibilidade de ser visto e novamente capturado. Seu estômago embrulhou, ele começou a recuar alguns passos ainda sem saber como reagir, Annie percebeu seu comportamento e o que aquilo significava para ele sendo um fugitivo da CRUEL. Então disse:
— Relaxa, eles não vão te ver daqui. – ela olhou para um ponto distante de onde era a entrada, no céu havia alguns bergs voando e outras máquinas que sobrevoavam as pessoas que protestavam a alguns metros do portão – Estamos seguros aqui, não se preocupe. Sobre os muros, bom, eles construíram esses muros há poucos anos e separaram pessoas como nós de pessoas como eles. – ela cruzou os braços – Eu pensei que seria bom mostrar isso, de todos nós você é o único que mais sofreu nas mãos deles. Há grupos que incitam a população a lutar, ficam dia após dia fazendo discurso e preparando pessoas para essa "causa".
— Que causa? – ele perguntou, a voz não passando de um sussurro até que finalmente seus olhos saíram dos muros e encontraram os da garota.
— A queda do CRUEL, é claro. Eles precisam pagar por tudo o que fizeram, então nós iremos fazer algo a respeito com o devido tempo e preparo.
Gally abaixou a cabeça, as lembranças da clareira brotando em sua mente, então se aproximou de uma cadeira que havia ali na varanda e se sentou. Precisava se sentar e se acalmar ou então despencaria, no pior dos casos vomitaria e não queria fazer isso diante de Annie.
— Eles me colocaram naquele labirinto junto de outros. – revelou com a voz ainda fraca – Eram vários outros garotos como eu, sem memórias e apenas com o nome. Eles colocaram aqueles verdugos no labirinto, vez ou outra alguém era picado e perdia a cabeça, sabe? Ficavam loucos. Então a gente os bania para o labirinto, afinal ninguém sobrevivia uma noite no labirinto.
Annie não disse nada, apenas se aproximou e se sentou na cadeira ao lado dele. Atentando-se a ouvir tudo.
— Teve uma noite em que as portas não se fecharam durante a noite e os verdugos vieram. – Annie pode reparar os olhos de Gally brilharem com as lágrimas que começavam a surgir, mas nenhuma escorreu – Aquelas coisas destruíram nossa clareira e mataram vários clareanos. As minhas lembranças do final estão um pouco confusas, mas cada vez mais consigo lembrar com clareza dos acontecimentos. Um deles é que tudo aquilo, toda a clareira, era um teste. Eles nos assistiam dia após dia e todas as mortes foram culpa deles. – o rapaz suspirou alto e então se calou e Annie entendeu que ele não iria contar mais nada. Decidiu não perguntar sobre a lança ou sobre o garoto gordinho que estava morto quando chegou lá.
— Eles vão pagar pelo que fizeram. – ela esticou a mão e tocou o pulso de Gally, apertou ali com delicadeza tentando passar algum conforto – Nós vamos fazer eles pagarem, okay? Por tudo que fizeram.
Gally apenas apertou a mão de Annie enquanto balançava a cabeça afirmando, ele respirou fundo e então olhou novamente para os muros. A garota se levantou, queria conversar mais, mas não forçaria nada:
— Você quer… voltar? – perguntou um tanto hesitante – Ou quer ficar aqui mais um pouco?
— Eu estou cansado.
— Tem uma cama lá no quarto, quer descansar lá? Pode até dormir. – ela suspirou – Eu te acordei bem cedo, então pode dormir lá e quando acordar nós voltamos.
— E o que você vai fazer?
— Ah, sei lá. – ela deu de ombros – Talvez ler um pouco ou passear por aí.
— E se você quiser dormir?
— Tem um sofá. – apontou com o polegar por cima do ombro. – Acredite em mim, é bem confortável. Vem, vamos entrar, você precisa descansar um pouco.
Gally não se opôs, se levantou e foi em direção ao quarto. Deitou-se na cama e não demorou muito para dormir. Sozinha, Annie sentou no sofá e deitou a cabeça no encosto, ficou observando o teto enquanto pensava em tudo o que o garoto havia dito. Ficou pensando naquele garoto morto com um tiro no peito, era uma criança, mas não foi isso que a incomodou. Foi a possibilidade de haver mais imunes como Gally por aí, fugindo do CRUEL e passando por diversos problemas já que eles não devem saber nada do mundo.
Se Gally não fosse atingido com uma lança, será que estaria com os outros agora onde quer que estejam? Pouco se recordava de quando encontrou o garoto no CRUEL, mas se lembrava que suas suspeitas apontavam para que Gally tivesse atirado no garoto. Mas por quê? E se não foi ele, mas outro que atirou? O que aconteceu com ele?
Foi com esses pensamentos que ela dormiu naquela mesma posição.
"
O rapaz despertou depois de algumas horas, o céu já estava escurecendo e o quarto estava com um cheiro estranho e forte. Levantou-se atordoado, as lembranças do que fez naquela manhã voltaram para sua mente e se lembrou de onde estava. Andou ainda sonolento pelos cômodos, o cheiro provinha da cozinha e sabia que Annie tinha feito algo. Algo com cheiro forte e ruim.
Ele a viu apoiada na grade da varanda, ela observava a cidade e os muros do CRUEL. Parecia estar submersa em seus pensamentos e que não tinha notado a presença do rapaz, foi então que ele se aproximou e perguntou:
— Do que você tem medo?
— Ah, você acordou. – ela o viu por cima do ombro, mas não saiu do lugar – Fiz café, quer? – ofereceu seu copo de alumínio.
— Café?
— Exato. É difícil conseguir, então não tome tudo.
Ele avaliou o líquido escuro, aproximou o copo quente de seus lábios e sentiu o cheiro antes de beber. Era forte, bem forte, então bebeu. De primeira não reagiu, mas então se virou e cuspiu tudo. Era amargo, terrivelmente amargo e forte. Sua reação causou uma alta risada em Annie.
— Que troço horrível! – exclamou devolvendo o copo com uma careta enquanto sentia o gosto amargo na boca.
— Não é lá a coisa mais gostosa do mundo, mas dá pro gasto. – ela sorriu bebendo um gole, então respirou fundo enquanto voltava a atenção para os muros – Você tinha perguntado sobre meus medos, não é?
— Ah, foi. – ele se aproximou e ficou ao lado dela na grade – Mas se não quiser responder, eu entendo.
— Precisamos ser honestos para conquistar a confiança um do outro. Sendo bem sincera, eu tenho dois medos. – ela se virou e apoiou as costas na grade enquanto evitava o olhar do rapaz – O primeiro é ficar sozinha no mundo, é uma sensação terrível e eu não quero sentir de novo. O segundo é ser capturada pelo CRUEL, acho que eu dificilmente conseguiria passar pelo que vocês passaram.
— De novo?
— É isso aí. – ela bebeu um grande gole de café ainda evitando o olhar dele. – E você, Gally? Qual seu medo?
Ele hesitou, desviou o olhar para os muros e ficou pensativo por alguns segundos. Então suspirou e respondeu:
— Eu não sei ao certo, talvez continuar vivo. – a frase fez Annie o encarar confusa, ele sentiu o olhar dela e então tentou explicar – Perdi todos os meus amigos, não tenho família e nenhuma razão pela qual continuar. Eu não tenho nada. Vendo o mundo real com meus próprios olhos, então vejo que viver significa ser capturado e torturado pelo CRUEL ou morto por cranks e pessoas perigosas. Eu não tenho algo pela qual viver.
— Isso tudo é uma grande merda, não é? – Gally sorriu de lado sem ânimo algum. Annie apenas suspirou e colocou a mão em seu ombro o apertando levemente – Eu não… – ela começou, mas parou. Aquilo atraiu o olhar de Gally e os dois ficaram ali por alguns segundos até ela tomar coragem e continuar – Eu obviamente não sou a melhor opção, mas posso ser sua amiga. Isso não dá motivação alguma para viver, eu sei, mas se quiser então ficarei ao seu lado até encontrar o que procura. Te disse ontem, não é? Não vou me afastar, apenas se você quiser.
— Isso seria ótimo. – ele sussurrou.
Gally levou a mão até a de Annie que se mantinha em seu ombro e a apertou mantendo-a ali. Os dois ficaram naquela posição por alguns segundos, até ela afastar a mão e voltar a atenção para seu copo, enquanto ele voltava a atenção para os muros. Ficaram ali por alguns minutos em total silêncio, até que ele decidiu perguntar:
— Aquela garota é o que?
— Não entendi. – o encarou confusa.
— A do refeitório, o que ela é sua?
— Você gostou dela, hein. – ela riu – Tanya é uma amiga, embora ela às vezes me bajula e mima demais.
— Eu não gostei dela assim, tipo, ela é super bonita e tals, mas não gostei dela assim.
— Não precisa se justificar, afinal Tanya é realmente linda, até mesmo eu pensei várias vezes em chamá-la para sair.
— Espera, então você gosta de garotas?
— É, eu gosto sim. E você?
— Ah, definitivamente. – ele corou – Com certeza gosto de garotas.
— Interessante. – ela riu.
— E você gosta de garotos também? – a encarou de canto.
— Também gosto. – Annie sorriu de lado e o encarou – E você? – a pergunta ficou sem resposta, a expressão na face de Gally quando a encarou era indescritível e aquilo a fez rir alto. O rapaz sorriu um pouco envergonhado enquanto as bochechas estavam levemente coradas. – Bom, eu praticamente gosto de tudo, não consigo ver sentido sentir atração pelo gênero da pessoa. O que me cativa é a personalidade, como ela vai agir diante das situações e como ela pensa.
— Nunca parei para pensar nisso.
— Às vezes, quando estou sem missões ou apenas entediada, penso sobre tudo isso. São assuntos inúteis no nosso estado atual, mas é interessante. Você conhece a si mesmo, mesmo estando em um mundo de merda como esse.
— Então é por isso que Tanya não gosta de homens? Ela só gosta de mulher?
— Não, não é isso. – a diversão sumiu da face de Annie quando as lembranças começaram a salpicar em sua mente – Tanya é um caso delicado.
— Se não quiser contar, tudo bem. Não vou insistir.
— Acho que eu não deveria contar algo assim, porém sei que Tanya nunca iria contar e você precisa saber sobre como o mundo é. – Annie suspirou antes de beber mais um gole, então continuou: – Eu encontrei Tanya há alguns anos, ela e outras mulheres foram sequestradas por um grupo grande de homens e você já pode entender o porquê. O grupo tinha uma fama ruim, bem ruim, então fui atrás deles para ver se ainda tinha prática e não tinha perdido minhas habilidades.
— Espera, habilidades de que?
— Matar. – ela deu de ombros e voltou a contar a história, enquanto seu dedo deslizava pela borda do copo de alumínio – Não sei por quanto tempo ela ficou com eles, claro que nem ousei e nunca irei perguntar. O grupo era ruim só na fama, as habilidades eram péssimas, então foi fácil soltar todas elas. Tanya me agradeceu, implorou para que eu a ensinasse e treinasse e eu o fiz. – um sorriso brotou em seus lábios com as lembranças de seu tempo treinando Tanya – Ela nunca conseguiu melhorar, o trauma e as lembranças ainda a assombram, é por isso que ela odeia a presença de homens. Hoje em dia ela se tornou extremamente forte e habilidosa, arrisco dizer que é mais habilidosa que eu, fora que nenhum homem sobrevive se encostar nela sem permissão.
— E o que aconteceu com as outras mulheres?
— Outras estão espalhadas pelo mundo, também receberam treinamento e hoje em dia são quase máquinas de matar. Ou estão em missões para meu esquadrão ou estão vivendo a vida delas, buscando um lugar que possam chamar de lar, infelizmente muitas delas não conseguiram lidar com o trauma e deram um fim a vida.
Gally ficou em silêncio, o estômago ardia e revirava só de imaginar o cenário, pensar em tudo que elas passaram fez sua ânsia ficar pior. Tanya parecia ser muito doce e gentil com Annie, ficou triste por alguém tão belo e gentil quanto ela ter sofrido coisas do tipo. Ele encarou a garota ao seu lado, ela ainda estava com os olhos no copo e então um sorriso brotou em seus lábios antes dele dizer:
— Agora entendo o motivo de você ser tão respeitada na base. – Annie pensou um pouco naquilo e então deu de ombros.
— Tá com fome?
— Ah, tô morrendo de fome. – só agora Gally sentiu seu estômago se contorcer pela fome, quantas horas tinha ficado sem comer? Já estava anoitecendo.
— Vem, vou preparar algo para você. – ela entrou e o rapaz a seguiu.
— Sabe, quando eu estava na clareira costumava criar uma bebida que os clareanos odiavam e amavam.
— Ah, é?
— Posso fazer algum dia para você experimentar? De qualquer forma, acho que você vai sobreviver, afinal se consegue tomar isso – ele apontou para o copo com café com uma clara expressão de nojo – então irá beber tranquilamente.
— E o que vai precisar?
— Infelizmente, mocinha, isso é segredo industrial. – ele sorriu de lado totalmente convencido.
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