XCII - Coordenadas
Estava em um corredor escuro, o cheiro de sangue impregnava seu nariz, tão forte que podia sentir o gosto metálico encher sua boca. O ar ali estava abafado e quente, o suor escorria por seu corpo enquanto as vestes de tecido grosso e áspero grudam em sua pele. O estômago estava pesado como se houvesse uma bola ali dentro, estava prestes a vomitar e o gosto amargo da bile se misturava ao metálico do sangue.
Não conseguia ver um palmo a frente, a escuridão engolia tudo à sua volta enquanto o desespero e agonia cresciam cada vez mais. Alguns passos hesitantes até sentir a superfície gélida e áspera da parede, seus dedos, úmidos e com aspecto grudento com algum líquido estranho, colaram na parede e a usou como guia naquela escuridão. Ela seguiu. Um passo cuidadoso atrás do outro, seguiu cegamente pela escuridão sem fim pelo que pareceram horas, mas não parou. Nem mesmo quando o corpo doía, quando a boca secou e intensificou o gosto amargo da bile.
Continuou. Um passo atrás do outro.
Minutos. Horas. Dias… não sabia quanto tempo estava ali. Até que, de repente, seu pé enroscou em algo caído ao chão, o toque macio e quente, mas o choque a fez perder o equilíbrio e seu corpo caiu na escuridão à frente. O chão desapareceu, a parede desapareceu, e então caiu no ar. Mergulhando mais e mais fundo naquela escuridão que lhe sufocava, podia senti-la entrando em seu nariz, em sua boca, por seus olhos e a enchendo. Corrompendo seu interior. Tornando-se vazia, tornando-a parte daquela escuridão, até que seu corpo colidiu com um som nauseante contra o chão áspero e gélido. Não sabia quanto tempo a queda durou, não sabia a altura que caiu, mas cada pedacinho de seu ser explodiu em uma dor excruciante que a deixou imóvel ali. Incapaz de se mover, incapaz de sentir algo além da dor de seu corpo destruído e vazio…
E então deixou aquela escuridão, aquela dor, tudo aquilo lhe tomarem. Se permitiu render e parar de lutar, parar de tentar encontrar uma luz, uma solução ou saída. Aquele seria o seu fim, engolida pela escuridão onde seria abandonada e esquecida. Retirada das mentes daqueles que amava, de todos eles, e então tudo seguiria seu rumo, a vida continuaria, e ela seguiria ali esquecida e apodreceria na escuridão de onde quer que estivesse.
E então a luz. Ardeu sua pele e cegou suas vistas tão acostumadas à escuridão, grunhiu um som rouco e que não parecia pertencer a ela, até que viu aquele feixe pequeno alguns metros a frente. Era fino, pequeno, e formava um retângulo grande. Tinha o formato de uma porta.
Ignorando a dor, ignorando cada instinto que mandava voltar para o chão e abraçar sua própria miséria, ela levantou. Cambaleou, caiu de joelhos e então levantou de novo até estar firme sobre as duas pernas bambas e fracas.
— ANNIE!
Seu corpo congelou, seu coração parou por um instante e sentiu sua respiração travar em sua garganta. Jade. Era Jade ali gritando por ela, o som ecoou pela escuridão e ressoou em seu ser trazendo-a de volta à realidade. Jade estava atrás daquela porta, gritando por ela, chamando-a, mas o grito não era um chamado, um convite, era um pedido de ajuda. Uma súplica. E então Jade gritou de novo e de novo, até que as pernas de Annie se moveram sozinhas e disparou a correr em direção à porta.
— JADE! – ela gritou, queria que soubesse que estava a caminho, que iria até ela e que a salvaria. Dessa vez salvaria.
Foi então que o grito mudou, de feminino passou para masculino e a voz de Eleazar chegou até seus ouvidos. O mesmo pedido de ajuda, o mesmo tom de dor e de desespero. Tudo.
Ela lançou seu corpo contra a porta, seu ombro chocando contra a madeira que sequer tremeu, os ossos pareceram chacoalhar dentro de seu corpo, mas não se deu tempo para gemer ou pensar na dor e apenas tateou em busca da maçaneta. Não encontrou nada além de madeira áspera, não havia maçaneta e nem fechadura, não encontrou nada. Não havia nada. Os gritos de Jade e Eleazar se intensificaram, não chamavam por seu nome, apenas gritavam com agonia e dor enquanto o desespero de Annie aumentava. As batidas no coração aumentaram, aceleraram a ponto de sentir na garganta, a respiração se tornou ofegante e passou a esmurrar a porta com punho o mais forte que podia. Soco após soco, mas nada acontecia. Nem quando lançava seu corpo fraco com todo o restante da pouca força que tinha nada acontecia.
— NÃO, JADE! JADE! ELEAZAR! EU TO AQUI, POR FAVOR, NÃO. NÃO, NÃO!
E então o silêncio voltou, não havia nenhum outro som além da própria pulsação e respiração. Nada de Jade ou Eleazar.
A porta se abriu com um rangido e estalos na madeira velha, a luz encobriu o corpo de Annie e que não feriu sua visão. Estava em uma sala velha e empoeirada, as janelas estavam quebradas e os móveis jogados no chão. A camada espessa de areia e poeira marcou seus passos perfeitamente enquanto ela andava tentando reconhecer aquela sala. Sentia em seu âmago que conhecia, conhecia aquela lareira e aquela escada, mas que por anos se recusou a lembrar ou guardar… mas estava ali no fundo de sua mente. E no canto, caído ao chão com o pescoço em um ângulo torto, estava uma mulher. Os olhos sem vida a encarando diretamente enquanto um corpo menor, uma criança, com aparência semelhante à daquela mulher estava encolhido e chorando.
— Uma mãe por uma mãe.
E, ao olhar para a mulher caída, ela viu Jade com o corpo ensanguentado…
Annie se sentou em um salto, as gotículas de suor escorriam por seu corpo trêmulo e sua respiração estava ofegante. As imagens estavam nítidas em sua mente, via Jade no chão cada vez que fechava os olhos e aquilo embrulhou seu estômago forçando-a se levantar do colchão no chão. Gally estava nu deitado, enrolado nos lençóis enquanto dormia profundamente, o céu ao lado de fora ainda estava escuro, mas logo começaria a clarear com o nascer do sol. Mesmo com ânsia de vômito e zonza de sono, Annie encontrou suas roupas no chão, vestiu a calça e o top e foi descalça para o banheiro. O galão com água pela metade estava em cima do armário, ela pegou o pote de alumínio em cima e colocou um pouco da água fria e andou em direção a pia.
O fósforo estava ao lado da vela, eram duas em cada lado da pia e os acendeu iluminando precariamente o ambiente, mas o suficiente para conseguir ver o próprio reflexo no espelho sujo e velho. Ficou observando o próprio reflexo quase que sem piscar após lavar o rosto, pescoço e braços com a água do pote de alumínio. A cicatriz em seu olho continuava horrível, a dor fantasma ainda persistia e desconfiava que essa dor continuaria por muitos anos. Observou com a pouca luz as outras cicatrizes espalhadas pelo seu corpo, pela primeira vez fazia isso, parar em frente a um espelho e se olhar de verdade, ver o estrago do tempo e das batalhas que travou. As cicatrizes espalhadas de diversos tamanhos, umas quase a levando a morte e outras apenas um descuido.
Quando girou o tronco foi que percebeu algo estranho, uma linha preta próximo a axila e então se lembrou do que Tanya havia dito: números tatuados. Pegando a vela, Annie se aproximou e tentou ler, era uma sequência confusa de números, mas algo em seu peito se mexeu e então rapidamente saiu do banheiro em busca de papel e caneta.
O sol estava quase nascendo, o céu estava em um tom claro e o ar aos poucos ia aquecendo, mas a casa continuava silenciosa. Era cedo, bem cedo, e Annie estava com vários papéis no capô do carro enquanto tentava encontrar um sentido para aqueles números tatuados em sua pele. A única coisa que conseguiu encontrar foi uma localização, coordenadas confusas que levavam a um ponto ao oeste e seguia até quase ao meio do deserto.
— Que merda é isso? – sussurrou para si mesma, o cenho franzido enquanto analisava o mapa.
Um par de braços fortes circulou sua cintura e o rosto quente de Gally afundou na curva de seu pescoço, seus lábios deixando beijos naquela região exposta, fazendo os pelos do corpo dela arrepiarem e ela fechar os olhos com um leve sorriso.
— Bom dia pra você também.
Gally riu contra sua pele, o som rouco saindo de seu peito enquanto apertava os braços ao redor dela.
— Bom dia. O que está fazendo aqui tão cedo?
— Só… buscando informações. – ela suspirou dando de ombros – Achou que eu tinha ido embora?
— Achei. Acordei várias vezes à noite para ter certeza que estava comigo, que não tinha partido nem nada. – Ao ouvir aquilo, o coração de Annie se apertou e sabia que se saísse agora sem dar notícias apenas o magoaria mais ainda. Mais do que ela já tinha magoado.
— Olha, amor, tenho que ser sincera com você. Há uns números tatuados em meu corpo que dão nessas coordenadas. – apontou no mapa enquanto ele levantava a cabeça
— E você vai? – o rapaz franziu o cenho enquanto perguntava.
— Não fica tão longe daqui, talvez eu consiga voltar em um ou dois dias se for agora.
— Você vai em um ponto aleatório no mapa de supostas coordenadas que estão tatuadas no seu corpo?
Annie se virou e olhou nos olhos azuis do garoto, o cenho dele ainda estava franzido e era óbvio que não gostava nem um pouco daquela ideia. Os dedos dele se firmaram em sua cintura, como uma tentativa inconsciente de mantê-la ali, de não deixá-la fugir novamente, mas ela apenas suspirou.
— Isso mesmo.
— Não. – sua voz saiu firme, uma ordem, pela primeira vez.
— O esquadrão raposa se desfez, as cidades estão abandonadas e sem proteção, Mattie está quebrando a cabeça tentando proteger a base e as cidades do ataque do CRUEL, eu não faço a menor ideia de onde os outros estão, Andrey está atrás de mim e eu não faço a menor ideia do que eu faço. Eu… eu tinha uma pequena chance de pegar Andrey naquele dia, mas só tinha aquele homem do qual poderia torturar para ter mais informações… só que matei ele. Agora estou sem informações, locais, sem nada… eu não sei o que fazer, Gally. Eu sinceramente não sei o que fazer.
— Annie… – ele começou, mas suspirou sem saber exatamente o que dizer. Em um movimento rápido, Gally a levantou e colocou em cima do capô, ele ficou entre suas pernas enquanto os braços circulavam em sua cintura – Tudo bem. Quer ir em um ponto aleatório do deserto? Vamos, então. A gente deixa Isa aqui com aquela garota e eu vou com você.
— Vai ser um bom garoto? – os lábios de Annie se alargaram em um sorriso malicioso, Gally riu com o rosto começando a corar graças às lembranças da noite. Embora estivesse bêbado e suas inibições tinham sumido, as lembranças ainda estavam nítidas.
— É, eu vou ser um bom garoto.
Morgan estava acordado cuidando dos corvos quando Gally e Annie entraram na casa, os corvos repetiam algumas palavras e ficavam seguindo o homem para todo lado.
— Oh, acordaram. Fico surpreso que conseguiram dormir. – o homem sorriu de lado.
Annie tossiu limpando a garganta tentando esconder o rosto corado pelas lembranças daquela noite.
— Dormimos muito bem. – cruzou os braços.
— É, deu pra saber… – Morgan olhou por cima do ombro – O sofá. – explicou – Ninguém dormiu no sofá.
— Ah, é isso aí mesmo. Mas falando de negócios, Morgan, eu tenho que sair e preciso da sua moto.
— O que aconteceu?
— Tenho uma coordenada e eu preciso checar o que tem lá. De carro iria demorar muito, se eu sair agora com moto consigo voltar amanhã de manhã.
— Eu não uso há um bom tempo, mas pode pegar.
*
Darlan não dormiu naquela noite, apenas observou o teto rachado enquanto Félix murmurava a noite toda com seus sonhos e pesadelos. Às vezes ele acordava gritando e suando, então ficava o resto da noite e o dia inteiro no quarto em que pagaram, já que não conseguia andar de dor na perna. Aquela noite não teve nenhum pesadelo, mas sussurrava e se mexia bastante. Os dois passaram a dormir juntos na mesma cama, diferente de Gabriel, Félix se importava com Darlan e queria que tivesse conforto. Gabriel nunca o viu além de um colega ou uma sombra que o acompanha… as lembranças fizeram o peito do garoto doer e os olhos arderem. Sentia falta dele, do seu jeito relaxado e sua preocupação com roupas. De suas falas. De sua voz… de tudo. O peito dele doeu de novo.
Félix era bom, mas todos os dias se lembrava de Gabriel. Da traição e todo santo dia se perguntava o motivo, porque o chamou, o salvou, se no final iria abandoná-lo? Qual a razão de tê-lo feito se importar tanto, amar tanto, se iria traí-lo? Um suspiro pesado saiu de seus lábios enquanto tentava encontrar uma resposta para aquilo.
— Sem sono? – perguntou Félix. Darlan estava tão absorto em seus pensamentos que não notou o fato de que Félix havia parado de se mexer e murmurar.
— Alguém tinha que ficar de olho, não é? – sorriu forçadamente.
Félix suspirou sabendo o que aquele sorriso significava.
— Não sei o que fazer. – murmurou cansado.
— É, eu também não. – Darlan se virou para Félix – O que você pretendia no começo quando saiu?
— Em parte eu queria me afastar, sair dali e não ver Annie nunca mais. Outra parte… queria matar Andrey, mas sei que nunca vou poder fazer isso. Não sou páreo para ele.
— Você ainda culpa Annie pelo que aconteceu?
— Culpo. – respirou fundo – Mas não disso. A perda dos três em tão pouco tempo atingiu ela mais do que qualquer um, não a culpo por ficar trancada por uma semana ou pensar em se entregar… mas essas questões são antigas. Se ela matasse Andrey, se ela tivesse colocado um ponto final há muitos anos, então nada disso teria acontecido. Mas acabamos baixando a guarda, ficamos tão preocupados com aqueles do lado de fora que não olhamos para dentro. Depois de anos naquele esquadrão, dos jogos, das brincadeiras e das risadas eu aprendi a gostar de Priscila e Gabriel e nunca passou pela minha cabeça que seriam eles a nos trair. Nunca vimos os sinais, droga, não havia nenhum maldito sinal. E agora tudo desmoronou.
— Então vamos voltar para a base. Lá podemos resolver as coisas, tentar achar uma forma de parar os dois… fazê-los pagar pelo que fizeram.
— Não, não podemos. Depois do que disse a Annie… ela nunca vai me perdoar. O esquadrão era a família que ela escolheu e eu joguei na cara dela algo que não devia. Talvez não fosse minha família, mas era a dela… era a família dela! Não era uma mentira.
— Tenho certeza que ela entenderá.
— Não, não entenderá… e mesmo que entenda, a confiança está quebrada. Eu não me sentia parte da família e agora sei que nunca farei parte dela… não importa o quanto eu queira.
— Então… – Darlan mordeu o lábio inferior e então sorriu – Que tal conhecer o grupo que eu vivia? Podemos ir lá, sei como encontrar eles.
— Quem?
— Vamos encontrar o Braço Direito.
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Bom dia, boa tarde ou boa noite.
Não voltei 100%, na realidade eu consegui escrever esse capítulo porque escrever foi a única coisa que acalmou minha mente. Dia 12 agora eu tenho que ir na casa da mulher brasileira e tenho me candidatado a diversas vagas, mas não me chamaram para entrevista ainda.
Então eu tento ler, ver filme, série e escrever. Qualquer coisa que impeça minha mente de surtar com todo o caos que tem acontecido.
Mas, de verdade, espero que vocês gostem desse capítulo.
Obrigada por esperarem❤️ não posso dizer quando será o próximo capítulo, mas vou tentar atualizar o mais rápido possível.
Amo você, beijinhos ❤️✨
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