3
Leto estava deliberadamente ignorando sua rotina matinal desde que o inverno começou, nem se pagassem ele sairia para correr, mas isso não o impedia de acordar cedo e fazer outras coisas — assistir televisão.
Hoje, numa quarta-feira, Leto não acordou cedo e por pouco não se atrasou para o trabalho(fato que já rendeu alguns pressentimentos).
Pegou a bolsa transversal, colocou três torradas na boca e saiu correndo para a porta. Enfiando o pé no tênis, ouviu a voz da sra. Moore chamar.
— Não fale de boca cheia — ela o repreendeu quando Leto fez menção de falar. — Pode ir, ficarei com Marika até o almoço.
Leto juntou as palmas e curvou a cabeça três vezes ao andar, sorriu e ela bufou em resposta.
Pegando a bicicleta no estacionamento, Leto notou que não estava ventando, era apenas um dia impregnado pelo frio. As nuvens acinzentadas traziam nada além da pressão gelada.
O serviço começou segunda e ficava num prédio chique na Yaletown, achou surpreendente o quão bem recebido foi. Os colegas do setor se disponibilizaram a ajudar no que precisasse e o chamaram para almoçar.
Era ótimo que fosse perto de casa, a bicicleta ajudou a economizar e ver a paisagem urbana todo dia era gostoso.
Leto estacionou perto da entrada principal(onde ficava um bicicletário para os funcionários) e deu mais uma olhadinha no prédio; espelhado de fora a fora e enorme, mas o formato mais se assemelhava a uma caixa do que um retângulo. Era curioso e bonito de olhar, Leto gostou. As recepcionistas acenaram e deram risadinhas quando ele se dirigiu ao elevador.
Haviam 17 andares, todos para a TSK Enterteinment. O salário já deveria ser um aviso, mas Leto não sabia o quanto eles eram relevantes até de fato estar ali. A quantidade de funcionários e andares se dava ao tanto de microempresas afiliadas ou agrupadas à TSK.
As portas se abriram no nono e Leto foi imediatamente saudado pela ampla visão que a vidraçaria disponibiliza, ela cobria a parede do chão ao teto. Muita luz entrava, era arejado e até o carpete bege parecia bonito.
Haviam diversas mesas plataformas de estação, cada uma tendo sua divisória para quem quer que estivesse ali pudesse trabalhar em paz. No entanto, Leto não pôde deixar de achar curioso que ¼ da sala fosse ocupado por outra mini sala. Ele não conseguia ver lá dentro, era escuro e persianas tamparam a maior parte.
— Bom dia. — Fabien cumprimentou sem tirar os olhos do computador.
— Bom dia — Leto sentou-se na própria estação e ligou o computador com a língua coçando para perguntas. — Desde que cheguei não vi ninguém lá dentro — apontou para a salinha. — O que é aquilo?
Fabien o fitou com desgosto e ajeitou os óculos.
— É a sala da supervisora. Ela ainda não apareceu essa semana.
Nos filmes, supervisores tão importantes a ponto de terem sua salinha particular rodeada pelos pobres funcionários nunca eram boas pessoas.
— E como ela é?
— Bonita e séria, mas é gente boa. Rígida com o trabalho, só que tem suas exceções. Ótima líder.
Leto estava curioso e perguntaria mais se não estivesse atolado de trabalho.
As horas passaram, a fome veio e voltou, o horário de almoço correu e Fabien trouxe um lanche para ele. Atarefado, o dia rolou rapidamente e estava perto do horário de saída quando o som de saltos agulha perfuraram o carpete.
Leto não olhou para a pessoa, continuou prestando atenção na entrada de comentários maldosos no vídeo de uma associada.
— Boa tarde. — a voz soou distante. — Não tive tempo de passar aqui antes em decorrência de uma viagem à negócios, novas parcerias foram formadas e em breve daremos mais detalhes. Até semana que vem será entregue a planilha do planejamento mensal, espero que confiram e caso haja alguma dúvida, sabem onde bater.
A sala respondeu com um silêncio satisfeito.
— Aliás, temos um novo integrante, não? Seja bem-vindo... — Leto deu uma olhada e viu a cabeça dela abaixada para ler o papel. — Augusto Galba Leto Delyon...
Ela ergueu o olhar e Leto constatou, horrorizado, a expressão também chocada da mulher. A franja, cabelo preto longo, olhar profundo e diferente do que havia visto antes, roupas chiques de trabalho.
— Seja bem-vindo. — Mikaela sorriu ao se recompor. — Espero que esteja bem acomodado.
🫐
Três dias após a surpresa desagradável o sábado veio; e com isso, um buffet enorme que se estendia por pelo menos três metros sobre uma mesa longínqua com uma variedade gritante de comida.
Ostras, trufas brancas, caviar, filés, peixes supostamente venenosos? Tinha. Tiramisù, souflé, cremes, gelatos, bolos? Também. Vinho? Com certeza.
Leto sentiu o leve esbarrão do cotovelo de Alicia em seu estômago e a olhou, alarmado.
— Pare de admirar tanto, só sirva o que quiser — ela deu uma risadinha. — Parece uma criança diante de um playground pela primeira vez.
Recuperando o fôlego que nem sabia ter perdido, focou na tarefa de ler as letrinhas miúdas para desviar de todo e qualquer fruto do mar. Leto sentia profunda aversão ao gosto e com tantos relatos ruins, não gostaria de ter uma disenteria.
— Não é legal? — Alicia disse quando se sentaram — tem tantaaa comida boa.
— É ótimo — Leto não se sentia tão confortável em estar naquele meio com seu terno barato. — Você está linda.
As bochechas de Alicia salpicaram, realçando instantaneamente seu vestido azul marinho. O tecido era fino e se moldava ao corpo dela perfeitamente, a corrente de prata com uma pedrinha de safira era tão delicada quanto as feições da dona.
— É a minha primeira semana na TSK e vi algo que poderia valer a pena dar uma chance, espero que não barrem a minha irreverência — comentou ao cutucar bolotas de nhoque verde mergulhadas em molho branco. — Mas sabe o que me surpreendeu de verdade? Com quem dei de cara no trabalho?
— Aquele seu colega, Fabien? — Alicia não estava prestando muita atenção, bebericava do vinho e comia com muita vontade o ravióli.
— Não, quem dera fosse — Leto a fitou, traído. — Encontrei Mikaela, para surpresa de alguns, ela é chefe do meu departamento.
Alicia cuspiu todo o vinho de volta no copo, os olhos se arregalaram por instantes e ela caiu na gargalhada.
— Não é engraçado — ele sabia que estava fazendo careta, suas feições se contraíram em extremos para mostrar a dor.
— Na verdade, é bastante. Decidi não contar para nenhum lado, Mikaela assinou o contrato de alguém e sequer leu o nome direito, devem ter só repassado depois de tanta seleção interna. Ela surtou quando te viu lá e chegou em casa esbravejando. — Alicia abocanhou um ravioli inteiro. — E você nem pesquisou sobre sua superior, foi hilário.
— Você sabe que estou fodido, não sabe?
— Ela vai se acostumar com você, Mikaela é profissional e vai notar o seu esforço.
Leto suspirou, só agora voltando para a pergunta que rondou seu cérebro desde que botou os pés nesse salão. No palco diante deles estava um homem citando os benefícios e o desenvolvimento da região, o quanto ia valorizar.
— Você vai comprar um terreno neste condomínio?
Ele não conseguia ver Alicia morando sozinha numa casa gigantesca.
— Claro que não— respondeu baixinho —, gosto de morar com os meus pais e não pretendo sair agora.
— Então por quê estamos num baile de investidores?
— Porquê? — ela virou o dedo para o buffet. — A comida é deliciosa.
Leto observou as outras mesas, as pessoas pareciam focadas na explicação e voltou-se para Alicia, comendo de costas para o palco.
— Da onde você tirou isso?
Alicia passou a língua pelos lábios após tomar um gole de vinho, saboreando o gosto adocicado.
— Empreiteiras estão sempre ofertando seus trabalhos em convenções assim, fisgando peixes grandes. — Alicia cutucou um bolinho de carne — O ano mal começou e já passei por uns quinze jantares.
— E nunca comprou nada? Eles não desconfiam?
Alicia deu de ombros.
— Eu sou uma atleta olímpica, e nem 90% das pessoas que estão aqui vão comprar algo. Quanto mais gente, melhor para eles.
— Você até melhoraria a imagem da onde estivesse... — Leto passou o indicador pelo queixo — é um ótimo plano.
Alicia balançou a cabeça, satisfeita.
— E você vai ser meu acompanhante oficial agora, vamos sempre jantar comida boa em lugares chiques sem pagar nada.
Um lado dele via isso como algo vergonhoso, mas não é como se os ricos fossem se tornar menos ricos por terem alguém os usando num jantar.
Mais falácias seguiram no palco, patrocinadores se apresentaram, "aulas de investimentos" foram dadas e Leto e Alicia já tinham passado pelas sobremesas. Garçons também vagaram pelas mesas oferecendo sorvetes e caldas deliciosas.
Leto já se sentia entupido de comida quando as pessoas finalmente pararam de aparecer no palco. Uma música suave passou a tocar e Alicia levantou-se num pulo.
Lançou um olhar faceiro para Leto e saiu andando.
A possibilidade de ser abandonado na toca dos leões o fez acordar do torpor.
Seu olhar foi e voltou em diversos pontos do salão, mas Alicia já havia sumido. Talvez ela estivesse no banheiro, certo? Leto sentiu-se suar frio.
O toque alto "Ohh-ooh-ooh" de uma música tomou conta do ambiente. Leto observou as outras mesas e todos pareciam igualmente confusos. As luzes se apagaram e ao virar-se para os arredores, uma figura se destacava no fundo do salão, onde as mesas não existiam.
She sits alone
Waiting for suggestions
A luz estava sobre Alicia, forte feito faróis. Ela sorria grande, aquele tipo de sorriso largo e verdadeiro, que doeria as bochechas depois.
Ela levantou o braço e apontou, apontou na direção em que ele estava.
He's so nervous, avoiding all
the questions
As pessoas passaram a olhar para ele quando a luz forte pousou em sua cabeça. Os dois estavam iluminados e agora ela o chamava para a pista.
Leto sentiu as bochechas esquentarem e a vontade de enterrar a cabeça na mesa cresceu.
Quando ela dobrou o indicador pela terceira vez, chamando-o como naqueles filmes de romance dos anos noventa, Leto levantou e foi. Os convidados assobiaram e bateram palmas.
His lips are dry, her heartis gently pounding
— O que está acontecendo? — ele sussurrou no ouvido dela.
Alicia mostrou a língua.
— Só se divirta.
As mãos de Leto foram agarradas e sentiu seu eixo rodar com um giro guiado por Alicia.
— Don't you know exactly what they're thinking?!
A batida começou e Leto tentou ignorar todos os olhos neles, foi em vão, mas quando ele finalmente olhou nos olhos de Alicia, sentiu-se calmo.
— If you want my body and you think I'm sexy — eles cantaram juntos, à medida que as palavras de Alicia iam saindo, seus lábios se erguiam num sorriso. — Come on, sugar, tell me.
Leto balançou o corpo, e mesmo ele, que não gostava de dançar publicamente, sentiu-se o melhor do mundo. Seu corpo estava leve, como se a brisa de outono soprasse seus ossos e o levassem para um lugar muito distante, muito quente e muito aconchegante.
O olhar de Alicia parou nele e a imensidão azul o engoliu. Os ruídos de cadeiras sendo arrastadas para encher a pista de corpos não faziam sentido, tudo que Leto conseguiu captar era a face auspiciosa de Alicia.
E, mesmo que ele sentisse algo a mais naqueles olhos, alguma coisa profunda, Leto não tentou entender.
🫐
música:
Bạn đang đọc truyện trên: Truyen247.Pro