22
O luto age de maneiras diferentes e mesmo que mantenha uma certa linearidade ao seguir os cincos estágios, as pessoas são únicas. Quando alguém muito próximo morre, a sensação é dolorosa, angustiante e corrosiva, a dor abre uma ferida que pode fechar com o tempo, mas que jamais se cicatriza.
No começo, todos os dias alguém diferente aparecia em sua porta; primeiro a campainha tocava, depois as batidas reverberariam pelo silêncio do apartamento e então, a pessoa começaria a chamá-lo. Às vezes era a voz de Adina, em outras era Fabien e até mesmo Madelyn. Mas eles nunca eram respondidos, Leto estava no sofá e não se levantaria.
Fora o dia em que chorou copiosamente nos braços da sra. Moore, nenhuma outra lágrima foi derrubada. Mesmo que a dor fosse grande e ele precisasse externá-la, o choro se recusava a cair.
Não conseguiu se levantar para ir ao enterro e agora, semanas depois, não conseguia se mover do sofá para viver. A sra. Moore tinha as chaves reserva de sua casa e as usava para levar comida, pois Leto não tinha força e vontade de fazer algo que não fosse encher os potes de Marika e Surya.
Ele ainda não sabia porque Alicia morreu, não procurou respostas e nem tentou conversar com outras pessoas. O noticiário? Nunca mais foi colocado, sua televisão só passava documentários.
Deixou a caixa de cereal de lado, esfregou o rosto e sentiu a mão pinicar; a barba começou a crescer. Jogou a manta pelos ombros e ouviu o miado de Marika, os olhos despertos da gata o fitaram, ele sabia que se ela pudesse falar o chamaria de algo vergonhoso.
Assim que terminou de encher o pote de ração, ouviu a campainha.
Como estava ao lado do comedouro, esticou para dar uma espiada no olho mágico, não via pessoas que não fossem a sra. Moore havia semanas.
Cabelo escuro, franja, roupas pretas e um cachecol grosso e marrom. Mikaela esticou para olhar o olho mágico e ele quase deu um pulo com o susto.
— Augusto, eu te ouvi — batidas seguiram — abra essa porta.
Ela deve ter sofrido muito mais do que ele e não parecia perto de morar debaixo de uma ponte. Leto respirou fundo uma, duas, três vezes antes de girar a maçaneta. Os olhos de Mikaela pareciam nebulosos, olheiras se destacavam abaixo dos olhos e seu cabelo estava murcho, sem graça.
— Duas semanas — Leto foi recuando à medida que Mikaela passava pela porta. — Você sumiu por duas semanas e não foi ao... — ela engoliu em seco, como se a palavra lhe doesse — enterro. Como você pôde fazer isso com ela? Todo mundo está de luto também.
Leto não ensaiou uma desculpa, a verdade nua e crua estava ali, visível em sua aparência e profundamente marcada em seu coração.
— Eu não consegui — puxou ainda mais as extremidades da manta. — Eu não sou como você, Mikaela. Não sou uma fortaleza e não tenho pessoas em quem me apoiar. Ali me fez respirar de verdade, ser uma pessoa comum e eu não sei como viver sem isso. Não sei o que fazer daqui pra frente.
Os passos lentos e inquisitórios cessaram, Mikaela deu um suspiro embotada e afastou a bagunça do sofá; tirou sacos de salgadinhos industrializados, copos sujos e panos embolados. Ainda que estivesse abatida, seus maneirismos continuaram. Mikaela não seria apagada ao perder o sol, mas talvez... Alicia fosse uma estrela.
— É difícil aguentar uma dor tão grande sozinho, o peso nos ombros fica insuportável e as expectativas de um futuro, ínfimas. — Mikaela comprimiu os lábios num sorriso lânguido, entristecido. — Os pais dela estão sofrendo, eu estou sofrendo e todos que foram pegos pela luz dela também estão. Tem dias que são insuportáveis, mas é justamente por isso que deve ser compartilhado. Leto, sei bem que nossa proximidade foi lenta e que muitas vezes nos unimos por motivos esquisitos, mas eu estou aqui. Alicia te amava, não posso deixar alguém tão importante sofrendo nessa caverna de desilusões.
— Como você consegue? — Leto sentou na outra extremidade do sofá e levemente atordoado, encarou Mikaela. — Como você consegue levantar da cama todos os dias sabendo que nunca mais vai ver ela?
— Mesmo que Alicia tenha sido a pessoa mais importante da minha vida, eu ainda tenho sonhos que preciso realizar, pessoas que amo. — Mikaela recostou no braço do sofá e sustentou o olhar. — Tenho que me manter firme nessa convicção, senão nunca sairia do limbo.
Pensamentos nebulosos foram ganhando iluminação e a dúvida que tanto acorrentou as últimas duas semanas, escorregaram de seus lábios num sussurro.
— Qual foi a causa da morte?
— Ela tinha Polipose Adenomatosa Familiar, só descobrimos quando saiu a autópsia — Mikaela franziu o cenho. — Ela tinha muitas dores, mas nunca falou nada. O médico disse que ela descobriu tarde a presença dos tumores, já tinha formado câncer... Alicia não quis tratamento e decidiu viver até onde conseguia, aproveitando a vida e competindo na patinação.
Alicia sofreu sozinha, se consolou e se resignou sobre as próprias escolhas e o futuro que queria. Algo sem a incerteza de viver e o sofrimento que viria da fraqueza de não patinar. Ainda que parecessem uma série de atos egoístas e inconsequentes, Leto não conseguia sentir raiva.
— Você sabe se ela recebeu o diagnóstico antes de me conhecer?
— Alguns meses antes... ela já sabia quando se envolveu com você, sinto muito.
E Leto não conseguiu fazer nada além de gargalhar até a barriga doer. Alicia fez planos que não passavam de mentiras dolorosas, ela sabia que iria embora e o deixaria só, mas ainda fez com que Leto a amasse e nunca tentou entrar num assunto parecido. Nunca deu a entender que o futuro não os deixaria juntos.
— Ela era tão egoísta — disse quando recuperou o fôlego.
— Até demais — os lábios de Mikaela se ergueram. — E foi embora em paz, faleceu durante o sono na casa dos pais.
Leto conseguiu se levantar para usar o fogão, fez ovos mexidos e bateu uma polpa de laranja. A fraqueza ainda insistia em conduzir seus movimentos, mas uma força já induzia a resistência. Empratou a comida e a colocou na mesinha para dois.
Em algum momento da visita Mikaela abriu a cortina do apartamento, agora raios solares entravam suavemente no recinto; esquentavam a atmosfera e davam vida às cores do ambiente que tanto foi escondido.
Após um lanche da tarde num clima confortável, sem silêncios estranhos e cheios de ódio, Mikaela decidiu que era tempo de ir embora. Disse que o emprego ainda estava de pé e que ele deveria voltar para conseguir seguir em frente.
— Mikaela... — disse enquanto se prostrava na soleira da porta.
— Sim? — Mikaela ainda ajeitava o casaco.
— Eu não consigo me lembrar da última conversa que tive com Alicia.
Mikaela não ofereceu nada além de um olhar cauteloso, cheio de sentimentos que Leto não conseguia decifrar. E sem dizer uma palavra, foi embora.
Quando estava prestes a fechar a porta, a cabeça da sra. Moore despontou no corredor. A cabeleira branca estava presa num coque apertado e um pequeno sorriso adornava seus lábios; ela andou até o apartamento de Leto e sem dizer nada, o abraçou.
— Eu fico tão feliz que você conseguiu abrir a porta e conversar — disse, os olhos marejaram e Leto abriu espaço para que ela entrasse. — Essa menina já apareceu na sua porta muitas vezes, mas nunca criou coragem para te chamar. Ela sempre ia embora quando eu aparecia.
— Mikaela já veio aqui antes?
— Esse é o nome dela? É muito bonito... — a sra. Moore pegou Marika no colo. — Mikaela veio mais que todos os outros, mas logo ia embora. Bastante curioso. Ela também era amiga de A-Alicia? — falou como se fosse uma palavra proibida, a voz lhe falhou e saiu baixinha.
— Era a melhor amiga de Ali — Leto deu um pequeno sorriso — deve ter sofrido muito mais do que eu.
A sra. Moore nada respondeu e Leto pensou na estranheza que era ser ignorado, mesmo que não fosse uma pergunta. Além do mais, porque Mikaela não falou que foi tantas vezes? Ela tinha medo de encontrar Leto? Receio de que se falasse sobre a morte de Ali, tudo doeria ainda mais?
— Obrigado por cuidar de mim — seus olhos não focaram na senhora, mas ainda a sentiu sorrindo.
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