6 | Ventos do Sul
"Ouvi um som me chamar
O vento vem pra me levar."
– Paulo Ricardo
"A vida Elizabeth, não é justa. Muito pelo contrário... a vida é real. Fria, cruel, devastadora como uma grande nevasca."
Elizabeth admirava o horizonte que se tornava novo a todos os instantes conforme o trem corria pelos trilhos, tinha em mente as palavras do irmão que martelavam em seus neurônios. A vida nunca lhe parecera daquela maneira, mas agora que estava ali assumindo o lugar que muitas desejavam sentia que a vida era sim uma grande nevasca. Elizabeth agora era uma Custer, uma maldita Custer e o nome lhe causava ânsia.
O coronel aparecera naquela manhã em sua cabine logo cedo convidando-a para o café da manhã, e embora desejasse ficar só, o mínimo que poderia fazer era tomar o desjejum com o marido, ao menos em agradecimento por ter cedido que ela tivesse uma cabine exclusiva.
A verdade era que Elizabeth não estava pronta para dormir com o coronel. Não sabia se teria coragem de beijá-lo outra vez sem que sentisse nojo dele ou ainda se teria coragem para deitar-se com ele sem que não tivesse a vontade de morrer. Por sorte, ele aceitou de bom grado seu pedido.
Ovos, panquecas, waffes, mel e cereais. A dama que se contentava em se alimentar de chá e uma pequena fatia de torrada com geleia olhava horrorizada para o prato farto do coronel.
"Porco" – Ela pensou ao ver que ele colocava na boca mais do que realmente cabia fazendo assim os alimentos caírem pelas bordas.
Respirava profundamente uma e outra vez pedindo forças aos céus para aguentar aquilo. Chegou a pensar que talvez estivesse sendo castigada por faltar as missas aos domingos, certamente Deus havia se chateado.
"Mas a ponto de fazer-me casar com este parvo?" – Pensou outra vez – "Não... é claro que não." – Ponderou esboçando um falso sorriso ao ser olhada por ele sob os cílios.
– Não vai comer? – Ele perguntou fitando as comidas da mesinha.
– Já me sinto satisfeita – Ela respondeu, tentando manter sua boa educação.
– Com isto? – Ele apontou para os farelos da torrada que haviam caído no prato – Por isso é tão magra – Falou em visível descontento – Agora que está casada comigo... deve se alimentar melhor. Gosto de fartura.
"Me admiro não ser do tamanho de um elefante" – Ela pensou enquanto seu sorriso continuava a emoldurar seu rosto como se concordasse com Custer, embora no fundo só desejava não ter que olhar para aquele rosto.
– Claro, querido. – Limitou-se a responder. Não deixaria se afetar pelo comentário maldoso – Estamos próximos de Montana? – Perguntou mudando o assunto, fingindo não saber o caminho que era percorrido por eles.
– Acredito que chegaremos antes do entardecer – Respondeu enquanto continuava a se empanturrar de comida – Pedi que acelerassem o trem ontem a noite, vê que estamos indo mais rápido? – Disse com os olhos brilhando como se tivesse feito algo surreal.
– Eu percebi... – Respondeu olhando a paisagem passar rapidamente pela janela – Não é perigoso? – Arqueou a sobrancelha em dúvida – A neve parece estar bem escorregadia para irmos tão rápido ... – Comentou preocupada.
– Bobagem – Disse limpando a boca com um dos braços, deixando que o melaço manchasse o tecido azul do casacão que usava. – Essa é a ferrovia mais segura do mundo. Estamos estreando querida... seremos os primeiros dos milhares que viajarão de um canto a outro deste país. Não se preocupe com isso, em breve estaremos no Norte... há muito lá para que você conheça. – Disse fazendo-a se calar.
– É só que... – Tentou argumentar
– Elizabeth, eu já disse pra não se preocupar. Não pondere. – Alertou se retirando da mesa – Já pode voltar a sua cabine. Tenho uma reunião agora – Disse indicando a porta do vagão com os olhos.
A dama sequer conseguiu raciocinar o que havia acabado de acontecer.
"Ele me deu uma ordem?" – Pensou confusa, embora estivesse claro que Custer lhe dera uma ordem e pelo seu olhar profundo e gélido não queria ser contestado.
Elizabeth baixou a cabeça e saiu do vagão furiosa com ele. E furiosa consigo mesma.
"Deveria ter revidado! Ele não pode me tratar assim." – Pensava enquanto caminhava rapidamente de volta a sua cabine. — "Ele não é meu pai para me dar ordens! — Vociferou sozinha enquanto se recostava na porta da cabine.
A neve continuava a cair constante e o frio entrava cortante pelos vãos das portas e janelas fazendo a dama ser obrigada a se encolher na poltrona e cobrir-se com mais cobertores.
A ausência de pessoas naquela parte do vagão lhe proporcionava um silêncio que antes não sabia que precisaria. Elizabeth remoeu seus pensamentos por horas e horas até que se deu por vencida e adormeceu ao mesmo tempo que o sol se pôs. E mais uma vez seus sonhos eram preenchidos com visões de animais e paisagens dos quais sequer ouvira falar, mas enquanto estava presa naquele mundo imaginário sentia um pouco de felicidade.
*
Preto e branco, preto e branco, preto e branco. A sequência de cores era vislumbrada pelo felino albino que caminhava pelos trilhos em busca do vulto do animal que havia visto no túnel. O nevoeiro que se formava no ar impedia que tivesse uma visão perfeita da paisagem a sua frente enxergando assim em preto e branco, como se todas as cores tivessem sido absorvidas pela camada de ar espessa.
Suas patas mergulhavam na neve recém-derretida ao lado dos trilhos e se manchava o com mais rubro vermelho que se misturava com a ferida aberta em seu corpo. A cada passo que dava observava atentamente o ambiente e tentava ouvir qualquer barulho que fosse suspeito, pronta para correr outra vez se precisasse. Seguindo mais ao norte percebeu o nevoeiro se esvaindo podendo assim ver com clareza a grande floresta que rodeava toda a ferrovia, os animais pequenos que subiam nas árvores altas continuavam alheios a ela, enquanto os maiores não se encontravam por ali.
O animal sentia o cheiro, era quase palpável assim como a neve. Cheiro de medo. Os animais tinha medo, medo dela. Os arbustos se remexiam rapidamente a fazendo olhar fugaz para dentro da floresta, lhe aguçando a curiosidade e o instinto felino. Então mudou de direção, deixando o pouco de civilização vinda dos trilhos para mergulhar dentro da floresta úmida. A neve cobria a maior parte do verde que restava daquele intenso inverno e aos poucos se camuflava em meio a imensidão branca.
Fumaça vinha de não tão longe fazendo o animal seguir os vestígios, o barulho de água corrente também era ouvido embora fosse estranho o rio correr quando deveria estar congelado. Se aproximando mais e mais chegou às margens, o azul opulento das cordilheiras que eram refletidas no gelo quase ofuscava sua visão e então percebeu que enfim enxergava as cores, tão perfeitamente que ao passear os olhos pela paisagem o avistou.
O animal que havia visto nos trilhos, tomava água calmamente num pequeno buraco no rio congelado e então soube que o barulho vinha dele. As galhadas altas e fortes emolduravam o bicho e lhe davam a sensação de que ele era ainda maior do que pensava ser antes. Colocou uma das patas no gelo, e então outra parando um instante para observar seu reflexo. As patas sujas de terra vermelha manchavam o gelo e então todo a azul se tornava rubro mais uma vez e o cristal refletia seu corpo albino ensanguentado.
*
Um solavanco forte a despertou fazendo com que seu corpo magro fosse de encontro ao chão da cabine, batendo assim a cabeça na mesinha de canto. Elizabeth imediatamente levou uma das mãos até a testa ferida e tremendo tudo o que viu foi sangue. Seus sonhos e sua vida pareciam cada vez mais conectados, e somente percebeu o que acontecia quando outro solavanco ocorreu a fazendo colidir outra vez no chão e assim o rasgar das rodas do trem sob os trilhos lhe doeram os ouvidos
Se desesperou ao constatar o que de fato acontecia, pelas janelas a paisagem era de meras listras coloridas e turvas o suficiente para que não pudesse saber onde estavam. O trem se locomovia em velocidade assustadora e o local mais seguro naquele momento parecia o chão onde já se encontrava. Elizabeth sequer conseguia se levantar, a cabeça parecia rodar e rodas ao tempo que o corte em sua testa ainda sangrava. Não demorou para que além do próprio caos barulhento do trem ela ouvisse os gritos dos outros viajantes.
— Maldito, Custer! — Ela xingou em voz alta
Parecia muito claro para a dama que só estavam naquela situação devido ao pedido do coronel em acelerar o trem, o que considerando a nevasca que logo chegaria era quase como um assassinato em massa.
Pensou se não deveria ter sido mais enfática ao não concordar com ele, se não deveria tê-lo dito que já havia feito aquela mesma viagem tantas vezes que conhecia Montana de olhos fechados. Pensou se não deveria por fim, ser ousada e corajosa para pedir-lhe o divorcio horas depois do casamento.
No entanto, com a dor que sentia e com a eminente certeza de que morreria nos minutos seguintes começou a rir. Talvez fosse puro e simples desespero, uma reação que era discutível na situação em questão, mas logo em seguida começou a chorar. Silenciosa, apenas deixando que as lágrimas banhassem o rosto porcelana. Abraçou o corpo, lembrou-se dos pais, da irmã mais nova Olívia, de tudo que ainda não havia feito naqueles poucos anos de sua vida. E por último, se agarrou à lembrança de John e se questionou se ele havia sentido todas aquelas coisas quando sua hora estava próxima. Elizabeth fechou os olhos e tudo depois daquele momento se tornou caos.
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