5 | Injustiças
"Enquanto um pássaro pode voar
Temos que chutar o chão
As estrelas beijam o céu
Dizem que espíritos vivem."
Miracle – Bon Jovi
A fogueira alta aquecia a noite fria e os índios que ao redor dela estavam. Todos situavam-se sentados em um grande círculo ouvindo as histórias contadas pelas mulheres da tribo, uma tradição comum entre eles. Alce Negro escutava atento os ensinamentos dados por Nuvem Vermelha, sua avó.
A senhora já de certa idade andava por dentro do círculo gesticulando animosamente como se estivesse dentro das histórias que contava. As longas tranças que jaziam em suas costas fartas e negras contrastavam com o tom avermelhado da pele da índia, assim como fazia com ela parecesse ainda mais baixa do que realmente era.
Ao lado do índio, estava Puma Pequena e logo depois dela Coiote, seu melhor amigo – depois de Lakota, é claro - e Trovão de Fogo. Aqueles três eram os únicos índios mais próximos de Alce, tendo todos eles crescido juntos. Era o terceiro dia do treinamento dos índios e para o alívio dele a noite parecia ser sua amiga. Alce havia sido o primeiro a chegar recebendo um sorriso cúmplice da avó, que certamente havia escolhido o horário estratégico. Afinal, não era segredo algum que os dois tinham um laço familiar muito forte, o que de certa forma causava ciúmes no primo Trovão de Fogo, que também era neto dela.
Touro Sentado os observava de longe nunca deixando de lado seu cachimbo e a feição inabalada. Ele e os outros líderes tinham o importante papel de escolher quem seria o próximo chefe, e mais do que nunca se sentia responsável por todos os Sioux. Uma escolha insensata poderia levar a aldeia a destruição, e afastar o Grande Espírito de perto dos nativos.
Nuvem começava uma nova história que logo prendeu a atenção principalmente das índias, fazendo os homens quase revirarem os olhos pois se tratava de um conto de amor. A lenda se passava em tempos muito antigos quando as tribos ainda se dividiam por força e tamanho populacional, sendo algumas então maiores e outras menores. As maiores acabavam tendo muito poder sobre as outras, subjugando os índios que ficavam a mercê das escolhas superiores e uma enorme restrição os separava, assim as tribos não podiam se envolver umas com as outras.
Alce encarava a avó confuso com o rumo da trama, olhando de esguelha para Puma e os outros que continuavam absortos como se de fato estivessem entendendo cada palavra que Nuvem Vermelha dizia. Ele não entendia, ao menos não conseguia captar a mensagem que era passada através daquela história. Suspirou profundamente e deixou que seu corpo relaxasse sentado na terra avermelhada, e, por fim, se deu por vencido e pôs-se a escutar assim como os outros faziam.
"... quando a época da colheita e da pesca chegou, a tribo menor teve grãos fartos e peixes enormes em abundância pois trabalhavam dia e noite com afinco plantando e cuidando de seus animais, enquanto a outra tribo que era maior não obteve o mesmo resultado... – Nuvem contava pausadamente a história, observando índio por índio analisando se prestavam atenção em sua fala. – ... as tribos eram vizinhas e logo um sentimento de inveja se apoderou dos índios ao ver que os outros estavam conquistando mais do que eles, assim começaram a hostilizá-los, primeiro com palavras duras, depois com gestos duvidosos até que uma guerra se sucedeu entre eles."
– Qual o sentido desta história? – Coiote questionou exibindo um sorriso que indicava que para ele estavam perdendo tempo ali.
Nuvem Vermelha olhou para o jovem índio, e se Alce não a conhecesse não teria percebido o olhar de profundo desgosto da avó para com o amigo, embora ninguém além dele tenha percebido. A velha índia esboçou um sorriso quase compreensivo e o respondeu:
– Uma das maiores virtudes de um Sioux é aprender a ouvir, se não consegue fazer isso meu jovem não está pronto para ser o nosso líder. – Falou fazendo Coiote arregalar os olhos e engolir seco enquanto os outros cochichavam entre si, surpreendidos com a resposta de Nuvem. – Continuarei a história...
— "... alheios a toda a guerra entre as tribos existiam dois jovens índios apaixonados. O índio pertencia a tribo menor, enquanto a índia pertencia a maior e mesmo com todas as restrições impostas os dois continuavam a se encontrar escondidos. Um dia quando a jovem índia partia para mais um encontro com seu amado foi seguida por alguns guerreiros de sua tribo, e quando a viram com o índio não o pouparam de suas forças assim o espancando até pensarem que já estava morto enquanto levaram a índia em prantos de volta para a tribo." – Outra pausa foi feita e novamente ela os observou.
Alguns índios a fitavam esperando pelo desfecho da história, outros tinham a cara emburrada como Coiote e ainda restava Alce que prestava atenção embora um vinco que emitia inúmeras dúvidas emoldurasse sua testa. Nuvem soube que podia continuar a história, cada um ali aprenderia uma lição, alguns mais do que outros.
— "... A índia foi levada até os conselheiros da tribo que a acusaram de traição pois havia se envolvido com um inimigo de guerra, sua sentença foi a morte. No entanto, os Xamãs da tribo achavam que ela era jovem e bela demais para morrer daquela maneira e então a transformaram em uma flor..." – Os sussurros de surpresa logo foram ouvidos por entre os índios – "... O índio por sua vez não havia morrido como pensaram e tudo o que desejava era invadir a outra tribo e resgatar sua amada. Os líderes da comunidade achavam uma loucura que beirava a insensatez, tentando assim o impedir de cometer aquele ato alegando que na tribo existiam muitas moças as quais ele poderia desposar. Mas o jovem estava irredutível... e assim os Xamãs foram chamados para ajudá-lo. O índio então sabendo que a jovem amada havia se tornado flor ficou imensamente entristecido, e os Xamãs vendo aquela terrível sina não tiveram nenhuma outra opção se não transformá-lo em um beija-flor..."
Assim Nuvem concluiu o conto romântico que carregava muito mais do que a história de um amor impossível, pois ia além, muito além do que os olhos naturais podiam ver.
– É por isso que o beija-flor vai de flor em flor, sempre tentando encontrar sua amada. – Ela disse – Índios... a lição de hoje é: Nunca desistam de seus objetivos. Espero que tenham aprendido. – Finalizou se retirando do círculo caminhando de volta a sua tenda.
Alce se levantou cambaleando, as pernas estavam adormecidas pelo tempo sentado mas ainda conseguia se movimentar rapidamente e assim o fez correndo em direção a avó.
– Vó – Ele a chamou – Por que? – Questionou, embora não tivesse emitido o que queria saber.
– Nem tudo nesta Terra é justo, meu querido – Ela respondeu sabendo ao que ele se referia – Não cabe a nós questionar o que o Grande Espírito faz, muito menos como ele rege as nossas vidas. Vivemos porque ele permite, morremos pelo mesmo motivo. – Explicou – O que você pode fazer é pedir, uma ou duas vezes. Não mais do que isso. Peça e ele te dará, Alce. Nunca desista do que você quer.
– Mas... – tentou argumentar – Eu não... eu não sei. – Respondeu sentindo-se perdido.
– Você vai descobrir. – Respondeu com um singelo sorriso e entrou na tenda o deixando sozinho outra vez.
O índio então foi em direção as estalagens encontrando o velho amigo a sua espera. Lakota parecia sempre estar pronto para um passeio se abanando para limpar o feno que havia sobre sua pelagem. As tochas iluminavam e aqueciam o estábulo e as sombras dançavam sob a pilha de fenos. Sua atenção foi prendida pela silhueta de Puma Pequena que se fez presente ali.
– Não quero conversar, Puma. – Disse antes mesmo que ela pudesse dizer algo.
– Alce... – Ela começou se aproximando dele, suas vestes de couro e a tinta negra que pintava seu rosto a deixavam ainda mais bonita aquela noite – Somos amigos... – Falou ao tocar um de seus ombros. – Eu não quis te reprimir... nem te seguir. Mas aqueles homens querem nosso mal, se não tivermos cuidado... se eles nos acharem toda a tribo será dizimada.
– Acha que não sei disso, Puma? – Ele se virou para ela com visível descontentamento – Acha que eu faria algo para prejudicar a comunidade?
– Não... eu não acho, Alce. – Respondeu no mesmo tom – Mas sei que... eu já vi acontecer... você paralisa. – Falou vendo ela a olhar surpreso – Eu não tenho certeza... mas... sei que pode ser por causa do Grande Espírito.
– Não se meta nisso. Você não sabe o que vê. – Respondeu sucinto se virando outra vez para Lakota se preparando para montá-lo. – Cuide da sua vida, Puma.
E montando no cavalo seguiu para as montanhas, deixando a índia nos estábulos totalmente inconformada. Lakota galopava rapidamente como se soubesse que o índio precisava sair dali o quanto antes, como se o próprio precisasse estar longe também. A lua iluminava o caminho e já no alto enxergava os últimos índios da tribo se recolherem e apagarem as tochas de suas teppes.
O vento voltou a bater contra ele e o silêncio da noite lhe cobria assim como a escuridão do túnel de gelo que adentrava e então como se estivesse o aguardando do outro lado do túnel, no ponto mais alto da montanha gelada, ouviu:
– Alce... lembre-se de quem tu és – O vento soprava fazendo seus longos cabelos voarem – Você precisa entender... as patas brancas se sujarão com o vermelho desta terra e tudo mudará. Lembre-se de quem tu és, e então saberá. – E assim como soprou rapidamente se cessou e tudo que restou foi o relinchar de Lakota.
– Quem eu sou? – Ele se questionou.
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