1 | Ventos do Norte
"Pelo ar vindo bem de longe
Há uma voz que diz:
Não esquece quem tu és."
Toque o Clarim — Paulo Ricardo
Dakota — América do Norte — 1875
O vento vindo do Norte soprava os cabelos negros e compridos com força, fazendo-os ir de encontro a face do homem. De cima de um dos picos da cadeia de montanhas rochosas observava a extensa planície onde a tribo se localizava. O dia ainda começava e o sol resistia brilhante entre as nuvens de chuva que se formavam no céu. Fechou os olhos tão escuros quanto a noite e inspirou o ar deixando que entrasse vigoroso em seus pulmões. A brisa gelada lhe batia deixando que os pelos do corpo vermelho se eriçarem, a temperatura invernal não o incomodava fazendo os seis graus daquela manhã serem bem-vindos. Ele gostava daquela sensação, gostava de quando a natureza falava com ele.
O relinchar do velho amigo o fez abrir os olhos e então destinar a atenção ao cavalo que comia da grama e relva verde. A pintura colorida ao redor dos olhos já estava desgastada assim como as penas que enfeitavam a crina castanha estavam murchas e sem cor, indicando que em breve o cavalo precisaria de pintura e artefatos novos. Fez um carinho no mamífero, como se dissesse que tudo ficaria bem e voltou a observar as tepees - suas tendas em forma de cone - e os índios que já haviam despertado. As folhas das árvores baixas então se esvoaçaram no ar fazendo-o olhar atento à sua volta. Seguindo todas em uma única direção, ao redor dele as folhas pareciam dançar como em dia de festa e então mais uma vez seus olhos se fecharam.
𒀱
Não lhe parecia claro o suficiente o que ocorria nos estábulos daquela propriedade, tendo assim que se aproximar mais e mais em passos lentos e muito astutos. Estava claro e o sol esquentava o ambiente como nunca vira antes por aquelas bandas do Norte. O vapor fazia a areia dos estábulos ao ar livre se soltar flutuando e entrando invasiva em suas narinas. Os cavalos relinchavam e batiam os cascos ferozmente todos ao mesmo tempo, fazendo com que o tablado de madeira que mantinha o sobrado em pé tremesse.
Não havia se ligado aos detalhes, mas agora que estava ali de maneira inexplicável se deixou observar o restante do ambiente. O sobrado o qual já havia identificado não era tão ostensivo como esperava levando em consideração o grande pátio e o número de animais que habitavam ali.
Tudo indicava—conforme seus pés o levavam mais adentro—que o local estava abandonado.
Embora estivesse em partes correto em seus pensamentos não deixou de notar os passos vindos da grande entrada de madeira do outro lado. E então novamente os cavalos se revoltaram, fazendo um barulho ainda maior.
Então ele entendeu que eles sabiam. Os cavalos sabiam quem chegava e não se agradavam nenhum pouco daquela presença.
𒀱
Logo suas íris voltaram a contemplar sua terra e mesmo confuso com a visão que havia tido continuou impassível. Ele não era dado a demonstrar suas emoções, embora elas existissem em algum lugar dentro de si. Ao longe os índios pescadores já trabalhavam, as muitas lanças eram jogadas contra a correnteza do rio, assim como as redes improvisadas apanhavam os peixes. Ainda próximo das margens do rio os índios agricultores colhiam os alimentos advindos da terra, a safra de milho naquele ano havia sido abençoada e daria para suprir toda a aldeia pelos próximos três meses.
Os búfalos pastavam tranquilos pela grande planície, assim como os bisões que logo seriam abatidos pelos índios caçadores. A carne dos animais os alimentava e a pele lhes servia para construir as tepees e para produzir suas vestimentas. Eram um povo organizado, lá do alto ele observava com orgulho seus irmãos Sioux convivendo em perfeita harmonia cada um com seus afazeres mantendo a comunidade em união.
O cavalo relinchou de novo, dessa vez avisando que estava na hora de voltar à planície.
— Lakota, bom garoto — O índio disse ao subir em cima do cavalo que abanou a crina em resposta.
Os dois voltaram em perfeito galope passando pelas geleiras que se formavam entre as paredes montanhosas, um túnel de gelo os acolhia e então a escuridão tomava conta do ambiente. A falta de luz não era um problema para eles que conheciam o lugar como ninguém passando rapidamente pelo tubo gelado que os levava cada vez mais abaixo. Logo a relva fresca voltou a ser sentida pelos dois que se apressaram a chegar a aldeia antes das orações começarem.
𒀱
— Está atrasado de novo — Ouviu o chefe dizer assim que entrou na tenda de orações.
— Me perdoe grande Touro Sentado — O cumprimentou já deixando que ele aceitasse suas desculpas por mais um atraso.
— Sabe que não poderá se tornar chefe um dia se continuar se comportando assim — O velho tornou a dizer— Os outros líderes estão te observando – Revelou ao mesmo tempo que fumava seu cachimbo — Assim como observam Trovão de Fogo – Ponderou vendo o índio mais novo lhe olhar com pesar nos olhos.
O índio respirou profundamente e se sentou no chão para mais uma manhã de ensinamentos com o avô. O preparo para se tornar o próximo chefe da tribo costumava ser árduo e envolvia muita dedicação e disciplina por parte dos índios. Seu principal concorrente era Trovão de Fogo, seu primo por parte de mãe, e não negaria que ele era um guerreiro tão bom quanto ele.
— Tentarei não me atrasar mais — Respondeu embora em sua cabeça tivesse feito os cálculos corretos do tempo que levaria das montanhas até a aldeia. De fato, sempre saia mais cedo para evitar os atrasos, mas acabava chegando sempre depois da hora marcada.
– O que o Grande Espírito lhe mostrou? - Perguntou enquanto preparava uma tintura vermelha com ervas.
Ele não deixou que o avô visse seus olhos arregalados em surpresa, embora sempre ficasse admirado com a capacidade do chefe em saber de todas as coisas que ocorriam na aldeia, principalmente de suas visões. Se ajeitou em seu lugar ponderando se revelaria ou não o conteúdo da visão que teve mais cedo.
– Nada – Respondeu por fim, fazendo Touro Sentado abrir os olhos e olhá-lo desafiador.
— Não é de bom caráter mentir, filho — Alertou — Está com medo — Disse afirmativo vendo as feições do neto, no entanto, o índio mais novo entendeu como uma pergunta.
— Não tenho medo. Não sinto medo de nada — Respondeu sério fazendo o velho rir contido e balançar a cabeça negativamente.
— O Grande Espírito lhe falará outra vez... esteja atento aos sinais. - Revelou — Se aproxime — O chamou para perto.
Tendo o jovem guerreiro ajoelhado em sua frente lhe pintou a extensão dos olhos com a tinta vermelha. - Sua lição de hoje é se lembrar de quem tu és. - Disse ao terminar de pintá-lo dos olhos a altura do queixo. Uma oração ao Grande Espírito foi feita e então o índio foi liberado de sua primeira tarefa do dia.
Saindo da tenda suspirou de maneira cansada, suas visões haviam se tornado recorrentes nos últimos meses assim como a pressão de sua família para que se tornasse chefe mantendo a linhagem que comandava a aldeia desde a terceira geração de índios Sioux. Ao longe avistou o primo e os outros guerreiros reunidos em volta da fogueira enquanto preparavam as carnes de búfalo para o almoço. Trovão de Fogo chamava cada vez mais atenção dos líderes e consequentemente das índias mais bonitas da comunidade.
Se o índio quisesse se tornar um líder respeitado precisava melhorar em tantos aspectos, se casar era importante para o seu povo. Através de um bom casamento, vinha uma boa liderança. No entanto, ele não se sentia pronto para tal passo. Não se sentia pronto para muitas coisas.
Desistiu de se juntar aos outros dando meia volta e seguiu em direção às margens do Missouri. Lakota – o cavalo— o esperava prontamente para mais um passeio nos entornos da ostensiva floresta que os rodeava ao Oeste. No galope lento voltava a passear seus olhos por toda a extensão habitada por seu povo, não tinha certeza se teria capacidade de comandá-los um dia – como seu avô fazia com maestria –, no entanto a honra era algo que os índios presavam e não podia desistir – ao menos – de tentar conquistar a chefia da tribo.
A floresta então os acolhia como já fazia durante todos os dias, as taigas iam abrindo espaço para que passassem sem grandes dificuldades por entre os galhos mais baixos. O fim do inverno trazia consigo diferentes paisagens, muitos dos arredores ainda eram tomados pelo gelo enquanto a floresta dava sinais que de em breve floresceria.
O índio havia descoberto aquele caminho meses antes e assim pode ver os homens brancos logo no fim das altas coníferas. Trabalhavam na construção do que lhe parecia uma ferrovia as quais os índios mais antigos diziam ser para os veículos dos brancos. Naquele dia os homens pareciam comemorar, com seus macacões cobertos por graxa dançavam à melodia de algo que o índio desconhecia, mas que aos seus ouvidos saíam como ruídos agudos e perturbadores. Bebiam um líquido amarelado em copos feitos de material transparente — utensílios esses que os índios fabricavam com o barro —, o que para ele só confirmava que os homens brancos eram grandes desperdiçadores de matéria-prima e destruidores da natureza.
Observou a extensão da ferrovia se perder para além das montanhas, o gramado que envolvia a extensão da floresta tinha dado lugar a pequenas pedras e aos trilhos de ferro. Parte da vegetação havia sido derrubada e o Sioux notou os animais que ali viviam, corriam assustados com a presença dos homens.
"Traiçoeiros" - Ele pensou inconformado com o comportamento daquela gente estranha.
Embora sua vontade fosse matá-los ali mesmo, sabia que não deveria se aproximar deles. A muitos os militares perseguiam as tribos e seu povo já havia sofrido demais nas mãos dos brancos. Lakota relinchou indicando que era hora de partir mais uma vez já temendo as reações de seu amigo, que havia se aproximado um pouco mais dos trilhos. O cavalo bateu o casco no chão chamando sua atenção outra vez e mais outra, recebendo do índio um olhar furioso.
– Fique quieto, Lakota – O índio disse bravo com o cavalo.
Agachado por detrás das últimas árvores que os separavam resolveu imitar um lobo. O uivo alto logo foi ouvido pelos homens que se assustaram deixando que os bancos de madeira tombassem no chão. As armas que alguns carregavam foram acionadas rapidamente e seus olhos procuravam de onde vinha o barulho. Os lobos eram conhecidos por aquelas bandas como os mais traiçoeiros e os brancos ficariam conhecidos como os mais medrosos, uivou mais três vezes rindo dos homens que já haviam deixado o local às pressas.
— É assim que pretende se tornar o chefe da tribo? - Ouviu a voz atrás de si o fazendo cair de costas no chão. Lakota relinchou outra vez achando engraçada a cena e o olhava como se dissesse "bem-feito".
Para a sorte do índio a dona da voz era conhecida, Puma Pequena o olhava divertida achando graça do susto que ele havia tomado. No entanto, a carranca logo se formou no rosto do índio e a mão da mulher que estava estendida para o ajudar ficou suspensa no ar.
— Porquê me seguiu? - Perguntou com desdém ao se levantar
— Alguém tem que ficar de olho em você — Ela respondeu dando de ombros.
— Não preciso de ninguém — Disse subindo em Lakota.
— Todos precisamos de alguém — Ela respondeu. Não entendia porque ele era daquela maneira, porque não deixava que se aproximassem dele.
O índio a deixou falando sozinha fazendo o cavalo galopar rapidamente a frente dela, no entanto o alado que a levava era tão rápido quanto Lakota e logo conseguiram alcançá-los.
— O que pretendia? – Questionou — Sabe que não devemos nos aproximar deles, não podem descobrir onde estamos! – Dizia quase sem folego pela corrida inevitável que travava para manter a distância entre eles mais curta.
— Puma... – Ele a alertou — Não se meta em minhas coisas. - Respondeu fazendo Lakota parar de repente e dar meia volta rumo a floresta outra vez.
A índia não o seguiu mais.
Entrou novamente na imensidão verde, desta vez indo mais ao Sul de encontro às geleiras por onde os trilhos passavam adentrando o túnel perfurado no gelo. Estava curioso para saber que tipo de máquina passaria por aquela ferrovia e porquê haviam escolhido o ponto mais alto do Norte para aquela construção. O frio já caia ainda mais e pelo tempo que estava fora da aldeia sabia que já se passava de muitas horas da tarde. Um chiado ao longe foi ouvido por ele que logo franziu o cenho e começou a procurar em busca de onde vinha o barulho, e novamente outro chiado ainda mais alto ecoou e então as pedras abaixo do casco do cavalo começaram a tremer assim como os trilhos.
Olhando para dentro do túnel enxergou a sombra de um animal na escuridão do gelo. O bicho desconhecido então começou a se aproximar dele assim como os tremores no chão aumentavam gradativamente. O índio encavara tudo aquilo com certa desconfiança. Logo imensas galhadas foram vistas e um alce de quase dois metros de altura saiu do túnel olhando atentamente para o índio. Lakota se remexeu preocupado com os tremores e com seu dono que não se mexia tendo paralisado diante do grande animal a sua frente.
Então o vento mais uma vez o abraçou, muito mais forte e gélido do que antes fazendo seu cocar colorido voar para longe. Não fechou os olhos como sempre fazia, e continuando a encarar o alce. Os olhos do animal tão escuros quanto os dele pareciam querer dizer-lhe alguma coisa como se pedissem que ele se aproximasse. Mas o vento lhe batia ainda mais forte e os trilhos tornaram-se impossíveis de andar em cima rangendo alto e trepidando nas pedras. O chiado então soprou uma última vez, apenas para que o índio finalmente olhasse para o outro lado se deparando com uma locomotiva vindo a todo vapor. Olhou novamente para o animal e só então percebeu que o mesmo estava sobre a ferrovia, o índio então se desesperou olhando de um lado a outro pensando em uma maneira de salvá-lo de ser atingido pela grande máquina dos homens brancos.
Não conseguia se mover sentindo o frio finalmente lhe atingir com toda a força e tremeu em cima de Lakota. Seus olhos molharam em desespero ao ver que o animal seria esmagado com o impacto que logo viria e então lançou-lhe um último olhar como se pedisse desculpas e a locomotiva passou por eles arrastando uma grande quantidade de vento consigo.
"Não esquece quem tu és..." - Ouviu o vento soprar enquanto a imagem do alce desaparecia de suas vistas como um espírito. "Alce Negro..." - O vento soprou outra vez - "Não esquece quem tu és...".
Então ele entendeu. O Grande Espírito havia se comunicado outra vez com ele, o alce era ele e a locomotiva o atingiria com toda a força. Não sabia ao certo o que aquilo significava mas se atentou aos sinais que lhe foram dados.
Seu nome era Alce Negro, indomável como um.
Aaaa história nova começando, e se preparem pra uma jornada repleta de fatos históricos e muita cultura envolvendo os nativos americanos e o ditos homens brancos. Ansiosos para voltar no tempo com uma boa dose de fantasia?
Deixem seus comentários e não se esqueçam de votar <3
Bạn đang đọc truyện trên: Truyen247.Pro