Incêndio
Estava preocupada, era a primeira vez que Shao saía sem mim. Eu sei que ele estava com o irmão, que só tinha ido beber água no rio, mas quando uma mãe fica preocupada nenhuma razão ajuda. Dava voltas, subia e descia por todos os lugares, falei com todas as famílias, visitei minhas amigas, ajudei Ala a catar piolhos no filho do meio, comi uma fruta, cochilei, mas o aperto no peito só aumentava.
Zic achava graça da minha preocupação, mas quem era ele para saber? Shao e todos os outros filhos dele estavam jogados. Aliás, quase todos esses machos eram imprestáveis, mas ele era o pior. Já o pai de Guti era o melhor que eu poderia ter arranjado e só tinha ele de filho. Mesmo não sendo sua obrigação sempre se preocupava com meus dois picurruchos. Meus filhotes têm o melhor e o pior pai.
Uma revoada de pássaros nos sobrevoa gritando, era o maior grupo que eu já havia visto, aquilo não era normal. Tudo estava estranho ultimamente, muitos já tinham saído da região pela violência. Se Shao fosse um pouquinho maior também teria ido, mas sei que o bichinho não resistiria.
Átua e os filhos chegam correndo. O que eles estão fazendo aqui? A área deles é bem mais à oeste. Entro em desespero, algo de muito errado está acontecendo. Então ouço sobre o incêndio. Não espero nem um segundo a mais, parto em direção aos meus filhos. Várias famílias já estão indo para o leste. Os gritos ecoam para avisar a todos na floresta, mesmo os de outras tribos e até os predadores.
Jogo-me pelos galhos em desespero cego para tentar alcançá-los a tempo. Já posso sentir o cheiro de queimado e a fuligem cai em meus olhos, atrapalhando minha jornada. Tropeço, caio, levanto. Mas então o ar fica cada vez mais difícil de respirar, minha garganta sufoca. Vejo os animais abaixo de mim indo para onde eu deveria seguir, muitos estão queimados e sangrando.
De repente encontro um muro de fogo consumindo tudo à minha frente, qualquer coisa que estivesse lá morreu. Grito, me jogo na copa de uma árvore e deixo o mundo saber a dor que eu sinto por ter perdido uma parte de mim, meus filhotes, que nem tiveram a chance de viver.
Mas o instinto de sobrevivência me impele a dar as costas para o fogo e percorrer o caminho de volta. Alço galho após galho sabendo que as chamas estão cada vez mais perto, agora elas vêm de todos os lados, só posso ir para frente.
A madeira arranca tufos do meu pelo, perfura a minha pele e me faz tropeçar várias vezes. O fogo alcança a árvore atrás da minha e a faz tombar na que eu estou. Desço em pânico e corro pelo chão da floresta enquanto vejo uma árvore após outra cair.
Finalmente enxergo o fim do meu lar. Agora poucos metros me separam da sobrevivência. Caio novamente, reparo que estou só, os outros já foram, ou morreram. Escalo a cerca de arame farpado que esmaga ainda mais as parcas forças que me restaram. Arrasto meu corpo pelo chão, estou salva.
Ouço latidos e um som cortante que não sei o que é, mas sempre vem dos humanos e causa morte. Um cão enorme e raivoso me persegue, recomeço a corrida e tento ignorar os estalos incessantes. Então um último estrondo corta o ar e sinto algo perfurar minhas costas. Uma dor excruciante percorre meu corpo, tombo no chão. Sinto uma sonolência impressionante, tento me reerguer, impossível. Fecho os olhos e me entrego ao sono.
FIM
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