Capítulo 31
O céu começa a clarear, tingido por tons de laranja e dourado, mas é o calor suave das ervas sendo esmagadas entre meus dedos que me traz uma estranha sensação de conforto.
Tudo ao meu redor se moveu rápido demais, decisões e consequências se atropelaram. Mas aqui, neste instante, eu consigo apenas... respirar. Fazer o que mais gosto e me perder nisso. Afinal, sempre que fico parada por muito tempo, elas voltam. As lembranças.
Olho para os ingredientes espalhados pelo chão e respiro fundo antes de começar. Um sorriso começa a se formar em meus lábios. Preparar esse chá ─ ou poção, como alguns já devem desconfiar ─ é uma boa distração.
— Esse chá é um daqueles que pode te contaminar só de cheirar — explico, enquanto coloco as luvas e ajusto uma faixa no rosto, cobrindo o nariz e a boca. — Melhor não arriscarem ficar tão perto.
Encaro Markson e Triket que me observam como sempre fazem. Eles trocam olhares, claramente confusos, mas se afastaram um pouco, sentando no chão.
— Chá, é? — O príncipe arqueia uma sobrancelha, observando tudo de longe. Eu deveria ter vendado e amordaçado ele, mas não é como se isso mudasse muita coisa. — Espero que não seja para mim... detesto chás.
— E do que sua excelência gosta? — pergunto, com a voz leve, o sorriso nos lábios e os olhos cravados no príncipe, que permanece sentado a alguns metros de distância. — Posso chamar isso aqui do que quiser, mas não muda o fato de que vai tomar.
Minha voz sai melosa, doce como mel envenenado, embora a ameaça seja inconfundível. Ele ergue uma sobrancelha, mantendo aquela expressão fria e avaliadora de sempre, como se estivesse me julgando por tentar enganá-lo.
Não é isso. Não estou tentando enganar agora, só estou me divertindo. É fascinante assistir como ele reage, ou melhor, como escolhe não reagir, mantendo essa fachada de controle absoluto — mesmo estando tão bem preso.
— Então não chama de chá... — ele diz, entediado.
Com cuidado, abro o grimório, ainda achando graça da fachada do príncipe e pensando em como posso desmanchar isso.
Eu já sei o que quero. Há duas poções extremamente úteis que posso tentar fazer aqui. A primeira é a do amor, mas é tão difícil, tão complicada, com ingredientes tão modificados — o sangue real, por exemplo — que ela é facilmente descartada, por hora.
A segunda poção é... um veneno. O Veneno Cacoete, conhecido também como a poção do vício. Sempre quis fazê-lo, mas nunca tive um motivo real, nem alguém que realmente valesse a pena testar. É algo grande, quase exagerado, mas de uma perfeição perturbadora.
Se tomar uma dose todos os dias, o veneno não mata, não faz nada. Mas se ficar sem tomar, com o tempo, ele vai corroendo tudo. À medida que fica sem tomá-lo, o efeito é devastador. Ele suga a energia da pessoa, seus poderes, e vai confundir até o psicológico da vítima, destruindo tudo por dentro. O único desejo é mais um pouco da poção.
Se o risco de contaminação não fosse tão grande, eu já teria testado antes. Afinal, isso é ou não perfeito para criar um escravo a base da chantagem? Só eu tenho a receita dessa obra prima.
— O melhor é que... eu sempre tive todos os ingredientes! — Preciso conter a risada que escapa mesmo com a boca fechada. — Então não tem erro!
— Tenho medo quando ela começa a falar sozinha... — Triket murmura.
Não tem erro, não tem erro, não tem erro, repito para mim mesma enquanto adiciono cada ingrediente. Não posso permitir errar. Geralmente sou propensa a falhas, mas dessa vez... não. Não tem como falhar. É importante demais para que eu cometa qualquer deslize.
— Ainda precisamos conversar antes de entregar isso aí para o príncipe... — Markson fala, mas eu o ignoro completamente.
Não tenho tempo para conversas agora. A poção precisa ser feita.
— Planejar o que fazer. Não pode sair decidindo as coisas sozinhas...
— Concordo com ele... — o príncipe fala, enquanto coloco a última erva no pote e começo a mexer a mistura com cuidado.
A medida que vou amassando tudo, a aparência da substância se transforma numa gosma avermelhada, exatamente como descrito no grimório. Sinto um leve entusiasmo tomando conta de mim. Está dando certo.
— Társila! — Markson grita, sua voz cortando o ambiente. Eu demoro para reagir, mas, quando finalmente encaro ele, uma sensação de desconforto me toma. — Você tá entendendo o que eu tô falando?
— O que está acontecendo com você? — pergunto, observando Markson de cima a baixo. Ele parece cansado, suado. — Um frio desses e parece que estava correndo.
— Não é disso que eu estava falando... — Markson suspira, em negação. Encaro a fada na cabeça do elfo, como se ela soubesse de algo, mas ela apenas levanta os ombros confusa.
— Eu sei o que estava falando... mas não temos tempo para conversar a sós, não vou tirar meus olhos do príncipe, não mesmo. — Coloco o pote no chão, o veneno está pronto, falta só colocar água quente para servir como um chá. — Então se for algum segredo... é melhor deixar para depois.
Tiro as luvas, colocando com cuidado no chão, próximo ao pote.
— Então não pode dizer o que está pensando em fazer com ele?
Não o respondo. Sei que ele não compartilha o mesmo desejo ganancioso de ter um príncipe como escravo. Talvez a possibilidade de ele me reprimir me faça ficar em silêncio, mas não é como se eu realmente me importasse com isso... o problema vem depois da reclamação.
Eu não vou parar, não importa quantas vezes ele reclame ou insista que é errado.
Eu realmente me sinto mais próximo de um monstro a cada minuto que passa. Se eu contar tudo o que penso em fazer com o poder que acho que Dérium tem... eles vão... me abandonar e eu não quero isso.
Ainda preciso pensar em uma forma de explicar o que estou pensando em fazer sem parecer tão maldosa... Fazer com que estejam comigo.
— Ela já disse que quer o príncipe... somente. — informa Triket, quebrando o silêncio.
— Ela está certa. — Abro um sorriso, abaixando o pano que cobre minha boca. — Triket não poderia resumir melhor. É algo interessante... para todos... Só vamos ter a ganhar.
— Eu não acho que seja tão interessante assim. — Dérium fala, encarando-me de cima a baixo, procurando por cada deslise que possa transparecer. — Se querem ganhar alguma coisa... Apenas aceitem a proposta.
— A majestade é maravilhosamente linda quando está em silêncio. — falo, e dessa vez não é ironia.
— Por que simplesmente não aceita a proposta dele? — Markson pergunta, parece apressado, a voz meio ofegante.
Encaro o elfo por alguns segundos, ignorando sua pergunta e vasculhando seu corpo. Markson está sentado, e de repente me lembro com clareza da última vez que o encontrei.
Ele não era para estar morto? Ou gravemente ferido? Como conseguiu chegar a Pinos e voltar, e ainda carregar esse monte de tralhas por aí como se não fosse nada?
Caminho até o elfo, aproximando-me como quem não quer nada, ele está escondendo algo e não quer dizer.
— Vamos, responde... Qual o problema da proposta dele?
— Como se ele tivesse em posição de oferecer alguma coisa... — retruco, me agachando e ficando mais perto de Markson.
Encaro seu abdômen, da última vez que vi, sua roupa estava encharcada de sangue, com um corte feio, achei que estava morto naquela hora.
— Está falido e não tem nada. A posição dele é pior que a nossa. Por que não coloca isso na sua cabeça? Se quiser aceitar alguma proposta, somos nós que temos que ditar os termos, não ele. Seja o que ele oferecer, pense mais alto, ele não vai ter como recusar.
— Então não quer aceitar porque foi ele que disse as regras da proposta? — Markson insiste, sua expressão desconcertada.
— Não... Não apenas isso.
— Então você também quer vender ele? — Triket se adianta, com a voz cheia de curiosidade.
— Parem de tentar adivinhar... — respondo, dando uma risadinha seca. — E isso é pensar muito pequeno, fadinha.
— Não da para entender... vocês são malucos... — murmura o príncipe, a voz baixa.
Markson se endireita, indignado, a expressão ainda marcada pela exaustão. Ele revira os olhos, mas a resposta vem rápida.
— Não me coloque no mesmo pacote delas... não sou maluco majestade.
— Se você está com elas, é impossível pensar o contrário... — Dérium responde com aquele olhar arrogante e dessa vez preciso concordar com ele.
— Ele está certo... Tem certeza de que você não é maluco? — pergunto, os olhos bem fixos no elfo, a ponto de assustá-lo.
— Do que está falando?
— Levanta a camisa! Quero ver o que é que esconde! Eu sei que você não está normal.
— Como é que é?
— Você me ouviu. Levanta logo! — Insisto, mas ele continua parado, como se não tivesse entendido.
Perdendo a paciência, avanço de uma vez, agarrando a barra da camisa dele. Ele recua, segurando minha mão.
— Társila! — Markson fica em pé, reclamando e tentando segurar minhas investidas.
Triket salta no ar com um grito agudo.
— O que você está fazendo, sua louca? — ela exclama, voando para longe, as asas tremendo como se estivesse em pânico. — Eu não vou ficar perto disso!
— O que seria isso? — o príncipe pergunta quando ela pousa na cabeça dele.
— Eles vão se matar...
— Então tomara que o elfo ganhe...
— Já disse para parar com isso! — fala Markson.
— Paro nada! Por que você está com tanta vergonha? Como se eu não tivesse visto você sem camisa antes! — Provoco, enquanto me esforço para puxar o tecido que ele segura com força. A irritação estampada na expressão dele só me incentiva mais. — Não precisa esconder que seu tronco é tão minúsculo quanto suas pernas.
— Deixa de falar besteira! — o elfo reclama sem graça.
— Eu quero só te examinar!
— Sai de perto! — ele diz, a voz mais alta do que o normal, mas não o suficiente para me fazer desistir. — Como se eu fosse deixar você me tocar.
— Eu não vou te tocar, seu idiota... nojento! — retruco, o olhar fixo nele enquanto seguro a barra da camisa. — Eu só quero ver o que você está escondendo, não sou tão burra assim.
Percebo que, desse jeito, ele não vai soltar, e minha paciência chega ao limite. Sem pensar muito, eu me jogo contra ele com toda a força. Markson tropeça para trás, perdendo o equilíbrio, e cai sentado, enquanto eu aproveito a oportunidade para puxar sua camisa.
Quando finalmente consigo puxar a camisa de Markson, vejo o corte exposto de uma ponta a outra no abdômen. Não está sangrando, mas a pele ao redor está avermelhada, quente, claramente inflamada. Há uma fina camada de ervas sobre a ferida, amareladas e secas, como se estivessem ali há dias sem serem trocadas.
— Você está maluco? — minha voz sai mais alta do que pretendia, mas eu não me importo. — Como você deixa isso assim, seu idiota?
Aponto para a ferida, realmente sem entender.
— Que tipo de elfo burro não troca as ervas de um corte desses?
— Não me venha com essa, não tive tempo. — Ele se deita, cansado.
— Não estou entendendo... — a voz do príncipe corta o ar, carregada de sarcasmo. — Você não disse que eles iam se matar? Porque, pelo jeito, está parecendo mais preocupação do que qualquer outra coisa.
— Eu realmente achei que iam... — Triket comenta baixinho.
Desvio o olhar para o príncipe, e lá está ele, com a mesma pose de quem sabe tudo, como se fosse o dono da situação.
Olho para o pote com a gosma avermelhada. Por um instante, quase me esqueci dele, mas bufo ao lembrar. Tudo porque o elfo idiota não tratou os próprios ferimentos, e agora a prioridade é cuidar disso antes que ele realmente morra.
— Eu vou preparar o remédio... — comento, encarando Markson. — Daqueles que ardem muito, para você lembrar de nunca mais fazer isso.
— Eu já disse que não tive tempo... — ele tenta se justificar, mas eu o corto antes que continue.
— Não me use como desculpa. — Minha voz sai fria, interpretando sua desculpa esfarrapada. — Não me use como desculpa nunca. Eu sei me virar.
Aponto para Triket, que bate as asas apressada, assustada, quase caindo da cabeça do príncipe.
— E você, sua fadinha duas caras. — Meu dedo continua firme na direção dela. — Fique avisada também.
— Mas eu não fiz nada...
Não adianta colocar em prática tudo o que estou pensando. Não adianta procurar saber sobre o meu passado. Não adianta planejar uma vingança, se for necessário. Não adianta invadir Pinos, se no final esses dois morrerem. Porque é tudo o que me restou.
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