Capítulo 48
André
— Tínhamos um acordo, Hannah — reclamei, consciente de que ela não me responderia com sinceridade. Embora estivesse acordada e consciente, não parecia disposta a esclarecer o motivo de ter dado com a língua nos dentes; eu, contudo, não era um idiota e deduzi facilmente o que ocorrera.
Hannah havia sido resgatada na noite anterior, desacordada numa poça de vômito, vítima de overdose. Foi por muito pouco, uma questão de menos de uma hora, e ela teria ido a óbito. Toda a situação levantou perguntas sobre onde estaria Larah, e uma investigação não muito cuidadosa apontou que ninguém sabia onde estava a menina. Colocado contra a parede, o companheiro de Hannah informou que a criança estava com o pai, no entanto, Jeff não tinha autorização para ficar com a filha sem supervisão de um assistente social.
Fatalmente, a polícia foi acionada, uma jogada maldosa do traficante no intuito de forçar Jeff a se manifestar e entregar a menina. O momento era tenso, era tudo ou nada, e Jeff estava em clara desvantagem, contando apenas com uma gravação que jogaria nomes na lama, mas não garantiria que ele ficaria com a criança.
— Você não vai dizer nada? — Perguntei a Hannah. Ela se resignou a levantar os olhos para mim, pousando depois nas próprias mãos, cruzadas sobre a barriga. Numa delas, havia um acesso por onde eram administrados fluidos, na outra, um aparelho celular. Em toda essa situação, ela ainda teve a pachorra de fazer um Story no leito da clínica, tranquilizando os fãs e mentindo sobre a razão de estar internada.
Infelizmente para ela, fofocas corriam mais rápido do que fogo em palha seca. Obviamente, os principais canais de comunicação já estavam noticiando a overdose. Ninguém mencionou nada sobre a filha, visto que o assunto era delicado e o Juizado de Menores proibira a divulgação de qualquer notícia relacionada à criança.
Jeff estava desaparecido. Tive que depor acerca dele, explicar nossa ligação, e muitos questionamentos foram levantados. Os policiais perguntaram qual era a minha relação com ele, e eu respondi ser um amigo da época em que ambos éramos policiais. Havia uma pré-disposição nos agentes em acreditar no que eu dizia, assim como estavam inclinados a não acreditar no Jeff, afinal, eu deixei a corporação com louros, já ele, com culpa e vergonha.
Tive que recontar a história das lesões que ele sofrera há um mês. Por sorte, minha memória fotográfica me permitia lembrar com grande precisão de detalhes a história que inventei quando ele esteve internado. O maior problema foi que Jeff não registrou um Boletim de Ocorrência, e isso levantava suspeitas. Para completar o circo de horrores, ninguém conseguia falar com o Jeff. Eu me comprometi a tentar localizá-lo, e ele tinha 24 horas para aparecer com a menina, caso contrário, seria expedido um mandado de busca e resgate. As consequências do descumprimento da determinação judicial seriam avaliadas posteriormente, e certamente essa história complicaria bastante a luta pela guarda de Larah.
Eu estava preocupado com ele. Meu peito andava apertado, precisava contatá-lo, porém, não podia simplesmente dirigir até a casa de Doralice e correr o risco de levar para o casebre policiais e, o que seria pior, comparsas do companheiro de Hannah. Eu tinha que coordenar meus passos, por mais ansioso que estivesse.
Subitamente, senti-me extremamente cansado. Cansado da trama, da confusão, da distância do Jeff, de passar o tempo todo procurando uma maneira de resolver a situação. Eu não via uma solução além de o Jeff apresentar o vídeo para se defender e tentar obter a guarda da criança, enfrentando as consequências com os criminosos envolvidos. Era um risco enorme, do qual ele não conseguiria escapar.
No fim das contas, meu plano para resolver as coisas acabara de ir por água abaixo. Consternado, encerrei o assunto com Hannah:
— Eu vou providenciar a devolução do dinheiro que me pagou para investigar o Jeff. Não quero mais me envolver nessa história, também não vou fazer nada para impedir que Jeff use aquele vídeo para se defender. Infelizmente, você teve todas as chances de fazer a coisa certa, mas Larah era a última das suas preocupações. Poderia dizer que tenho pena de você, mas não tenho.
Com isso, deixei a clínica e, pela milésima vez, tentei ligar para o Jeff. Agora, o número nem chamava, ia direto para a caixa postal. Com o coração apertado, fui para casa, tomei um banho e esperei. Tudo o que eu queria era saber se ele estava bem, seguro e, principalmente, se aquela impressão ruim que tive quando ele deixou o apartamento pela manhã era algo a considerar ou não passava de um alarme falso.
≈
Era madrugada quando deixei o prédio. Dirigi pelas horas seguintes, sempre atento às placas, e consegui fazer o percurso em tempo recorde, visto que a madrugada me presenteou com movimento ínfimo de carros e zero trânsito local. Quando embiquei o SUV em frente ao barracão, obviamente tudo estava apagado, já que eram quase quatro horas da manhã.
Primeiro, fiquei constrangido em bater à porta no meio da noite; cogitei esperar pelo amanhecer, mas logo mudei de ideia, pois Jeff tinha pouco tempo para devolver a filha, e cada hora contava. Desci do carro e, constrangido, bati à porta.
Tive que repetir o gesto por três vezes até que uma luz se acendesse dentro da casa. Quando finalmente a porta se abriu, notei o ar de surpresa de Doralice. Imediatamente, percebi haver algo errado, pois se Jeff estivesse na casa, ou ele teria aberto a porta, ou Doralice estaria desfilando um rosário de pragas por eu acordá-la a essa hora.
— O que aconteceu com o Jeff? — Havia uma nota de pânico na voz rouca da mulher. Meu coração ficou tão apertado que senti meus olhos úmidos, e eu nem sabia se havia motivo para isso. O mau agouro da manhã anterior voltou a me perturbar, como um espinho na carne, cutucando, perfurando, lembrando-me de que eu devia ter me esforçado mais.
Eu devia tê-lo levado à estação.
Eu devia tê-lo impedido de partir.
Eu devia ter deixado claro o que eu sentia, talvez assim ele tivesse escolhido ficar mais um pouco e eu pudesse convencê-lo a dar um passo além das fodas aleatórias que vínhamos praticando.
— E-eu não sei. Esperava que ele estivesse aqui.
Os olhos de Doralice ficaram ainda mais esbugalhados, como se isso fosse possível.
— Ele voltou a beber...
Se houvesse um ruído quando um coração se parte, ele soaria no meio da noite silenciosa. Foi o que aconteceu dentro de mim, quando me dei conta de que isso era uma realidade muito provável. Pior do que Jeff decair e se render ao vício, era o que o levara a esse ponto. Mesmo que quisesse chamá-lo de fraco, fracassado e covarde, eu não poderia, porque eu vi. Vi sua escuridão.
Eu vi o abismo no qual ele estava, e não consegui tirá-lo de lá.
— Não tenho certeza se foi isso mesmo. Talvez ele apenas tenha encontrado o que procurava — respondi, mais para me convencer do que convencê-la.
— Você quer entrar? — Foi a primeira vez que ela convidou.
Entrei, e ela me levou até a cozinha. Me ofereceu um café, que recusei, lembrando-me do último que jogara na pia por estar adoçado demais.
— Tem alguma ideia de como entrar em contato com ele que não seja pelo celular?
— Eu não tenho celular.
— Não acha arriscado estar tão afastada de tudo, com uma criança tão pequena, sem meios de se comunicar?
Ela riu, o que causou um acesso de tosse nela que durou uns bons três minutos. Tive pena do seu quadro, ela não parecia nada bem.
Mesmo assim, fumava.
Se Jeff precisava de um exemplo de resiliência, claramente não o encontraria dentro de casa.
— Não estou tão isolada assim. A mais ou menos uns três quilômetros daqui, seguindo por essa estrada, tem um pequeno centro comercial. Uma quitanda, um bar e alguns pequenos comércios. Nada muito significativo considerando de onde você vem, mas para nós, está de bom tamanho. Tem um ônibus que leva até lá, direto da rodoviária, e passa pela estação de trem. É como chegamos até aqui sem ser de carro. Além disso, eu tenho um rádio que uso quando preciso falar com alguém da cidade.
— Interessante. Fico mais tranquilo por isso. Estou preocupado, de fato, e estou pensando numa forma de rastrear os passos do Jeff a fim de localizá-lo.
— Boa sorte com isso. Ele é muito difícil de encontrar quando quer desaparecer.
— Já o encontrei uma vez.
A mulher ficou me encarando por um tempo, até que falou com a voz mais ruidosa pelo recente acesso de tosse.
— É... Você o encontrou mesmo. Por todos esses anos, me perguntei se algum dia Jeff seria encontrado. Ele passou a vida inteira perdido, procurando um lugar, um motivo, qualquer coisa que o tirasse do buraco, mas nunca encontrou. Larah foi um motivador importante, mas quando ele perdeu a guarda dela, eu tive certeza de que ele daria cabo da própria vida.
— Ele sempre foi assim? — Perguntei, com um nó na garganta.
— Sempre. Quando o trouxe para cá, ele não falava. Demorou dois anos para ele abrir a boca, e eu tive certeza de que ele tinha problemas mentais. Quando, com a ajuda de um advogado aqui do interior, consegui burlar uma documentação que o possibilitasse frequentar a escola, ele entrou atrasado e, em dois anos, concluiu quatro anos de curso. Ele era genial, tanto que a própria coordenação do colégio conseguiu que ele tentasse uma bolsa num internato particular. Ele ia bem em todas as matérias e, mesmo sofrendo bullying, superou os demais alunos e se formou com honras.
Achei a informação no mínimo intrigante, pois Jeff sempre posou de ignorante, exaltando meus atributos de nerd como se isso o colocasse abaixo de mim. Contudo, sempre vi sua genialidade e capacidade de raciocínio. Até mesmo a história do vídeo, o canal com os agendamentos, parecia algo tão simples, até meio bobo, mas nunca vi ninguém que tenha pensado em algo tão óbvio. Eu mesmo não teria pensado.
Infelizmente, ele não se mostrava tão inteligente quando precisava tomar decisões acerca de si mesmo.
— Quando ele foi diagnosticado com depressão? — Perguntei. Eu sabia disso, pois a documentação levantada para a audiência preliminar de transferência de guarda da Larah trazia detalhes bem específicos sobre o quadro de saúde emocional e físico do Jeff.
— Desde os quinze anos. Na época, ele deixou de ir à escola e parou de comer, depois dormia a maioria do tempo, até que tive que levá-lo ao médico.
— Queria tê-lo ajudado mais.
— Você tem feito mais por ele do que qualquer outra pessoa já fez. Não se engane pensando que ele não reconhece isso, e eu te digo com todas as letras que ele tem sentimentos muito profundos por você.
— Ele deve mesmo se sentir grato. Salvei sua vida.
— Vai, além disso, e vou dizer sem rodeios, pois não gosto de enrolação. Ele ama você. Quando ele ficou aqui por uma semana esperando por você, parecia um leão enjaulado. E depois, durante o tempo em que estiveram separados, ele ficou tão abatido que cheguei a temer que pudesse fazer algo contra si mesmo. Em uma noite, quando perguntei se ele havia voltado a beber, ele respondeu que jamais faria isso com você.
Foi difícil falar qualquer coisa depois disso. Um bolo enorme travava minha voz. Tudo o que eu queria era abraçá-lo e dizer-lhe que não estava sozinho, que nunca mais ficaria sozinho, porque eu o amava. Todavia, primeiro eu precisava tentar resolver toda a situação envolvendo a Larah, depois, buscaria encontrá-lo para, só então, resolver a situação dele.
— Preciso levar vocês para a capital. Temos menos de dezesseis horas para apresentar Larah ilesa ao Juizado de Menores. Se não fizermos isso, Jeff será procurado como criminoso, e eu não imagino as implicações disso, já que a vida dele está em risco constante, seja por um lado, seja por outro. Você está comigo nessa?
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