Capítulo 36
Jeff
Eu não podia negar o alívio que me deu quando finalmente pegamos a rodovia sentido interior. Não havia nenhum veículo na nossa cola, havíamos saído do prédio de carro, era noite e ninguém poderia enxergar dentro do SUV irado e todo filmado. No fim, tive que concordar que era a forma mais segura de voltar pra casa.
Foi por isso, apenas por essa razão, que aceitei a carona.
Trafegamos por quase duas horas sem trocar uma palavra. André dirigia concentrado nos espelhos, provavelmente conferindo se não tínhamos companhia. Também carregava um semblante cansado e acabrunhado, e eu não podia culpá-lo.
Aquela ideia de jogar na cara que eu não era gay nem queria "brincar de casinha" com ele tinha sido cruel, e a primeira mentira que dissera a ele desde que havíamos nos conhecido. Sobre ser gay, talvez não fosse totalmente mentira porque eu não saberia me classificar no momento; agora, sobre não querer viver algo com ele, aí a história era outra.
Enfim, o recado havia sido dado. Com essa, ele provavelmente nunca mais iria querer olhar na minha cara de novo. Isso me feria em proporções que eu não me atreveria a classificar, só posso dizer que parecia pior do que minhas lesões físicas.
Quando faltava aproximadamente uma hora de trajeto, André parou num restaurante à beira da estrada.
– Vamos dar um tempo aqui, – ele basicamente resmungou – decorei as placas que passaram por nós desde que pegamos a estrada. Se eu vir alguma dessas placas de novo, saberei que estamos sendo seguidos.
Decorou?
– Não vou questionar a prudência disso. Só não sabia que dava pra fazer um lance tão complexo assim com essa tua cabeça de nerd.
– Não vou tentar te explicar como funciona minha mente. Já passamos da fase de nos conhecer melhor.
Ai... Essa doeu, porra!
– O que sugere? Ficamos esperando no carro? – Perguntei, tentando disfarçar o efeito da agulhada.
– Quer comer alguma coisa?
– Por que sempre me pergunta isso?
– Me desculpe, – ele suspirou pesado e esfregou os olhos com a ponta dos dedos – me esqueci que também passamos da fase em que eu me preocupo com a porra da sua vida.
Fiquei em silêncio porque o nó que se formou na minha garganta apertou a ponto de doer. Sem me perguntar ou avisar qualquer coisa, ele soltou o cinto e desceu do carro. Não levou a chave do contato e saiu caminhando tranquilamente pelo pavimento em frente ao restaurante. Fiquei só olhando suas pernas compridas se afastando enquanto o vento noturno bagunçava seus cabelos.
Onde eu estava com a cabeça, caralho?
Me recostei no banco e esperei. Devia ter passado uns quinze, vinte minutos, e ele voltou com um saco de papel e uma garrafa de água nas mãos. Entrou no carro e jogou ambos no meu colo, depois deu a partida e recolocou o carro de volta na estrada, olhando alternadamente em todos os espelhos.
– Não precisava – tentei agradecer.
– Não mesmo. Também não precisa comer, se não quiser. Se preferir, jogue tudo pela janela, afinal, você é especialista nisso.
Ui... Essa também doeu.
– André...
– Não fode, Jeff! Não quero ouvir tua voz!
Ele parecia muito zangado. Quando eu disse que ferrava com tudo à minha volta, eis o exemplo.
Trafegamos por mais quarenta minutos e paramos de novo, dessa vez num posto de combustível. Na verdade, ele parou a meu pedido.
– Está tudo bem? – Ele perguntou, provavelmente porque eu devia estar meio esverdeado. Em algum momento da viagem, ingeri os pães de queijo que ele havia comprado, mas não caiu legal no estômago. Isso somado ao fato de trafegar com as janelas fechadas, ainda que o ar-condicionado estivesse ligado, me deixou enjoado.
Não respondi. Apenas abri a porta e saí do carro. Aspirei profundamente o ar da noite tentando me recompor. Minha cabeça girava e meu estômago dava sacolejos desagradáveis. Não queria vomitar de novo perto do André. Estava começando a parecer esses bebês que ficam golfando toda hora. Era constrangedor demais!
Eu sabia que em algum momento teria que procurar um hepatologista para acompanhar meu quadro. Também sabia que nunca o faria se dependesse da minha autodeterminação. Esses dias em que André e Ângela velaram pela minha saúde, atentos a cada detalhe, me deixaram muito mal-acostumado.
Eu desejei que alguém cuidasse de mim.
– Jeff...? – Ele se aproximou e eu fiz um sinal com a mão para que ele se mantivesse distante. Senti a salivação aumentar na minha boca e o suor brotar na testa.
Merda.
Sim. Não preciso descrever o que houve. Enfim, depois do momento de constrangimento, fiquei um tempo agachado, esperando o corpo estabilizar. André se manteve distante, mas pude ver que estava preocupado.
– Acha que foi o que te dei pra comer?
– Entendeu agora por que eu "jogo tudo pela janela", André? De um jeito ou de outro, as coisas fatalmente se jogam sozinhas. – Levantei-me e caminhei em direção ao banheiro do posto. Senti que André caminhava próximo, mas não disse mais nada.
No banheiro, joguei uma água no rosto e puxei para os cabelos. Queria que os tremores passassem antes de entrar de novo no carro. Aproveitei para usar o mictório e lavei as mãos. Quando saí, André estava sentado num banco num pequeno jardim afastado da área de abastecimento. Fui até ele e me sentei ao seu lado.
– Estamos perto, agora. – Comentei. Me dei conta que em menos de uma hora, daria adeus a esse homem.
– Hm – ele até chegou a abrir e fechar a boca, mas tudo o que saiu foi um murmúrio indistinto.
Fiquei contemplando o céu noturno, para onde ele também olhava. A brisa estava fria e me dava arrepios, mas me fez bem. Aos poucos, me senti melhor, apesar de estar num momento tão difícil. Eu deveria estar acostumado, o fim era certo, mas dessa vez, não me sentia tão preparado como achava que estava.
– Olha, André... Me desculpe por aquilo que falei, tá legal? Não queria te ofender...
– Qual parte?
– Que não sou gay e...
– Você não é. Eu não sou. Vida que segue.
O silêncio voltou, quebrado apenas pelo ruído do vento que movia algumas folhas secas; uma delas se prendeu ao cabelo do André. Me inclinei para removê-la, mas me contive. Me dei conta do quanto eu queria tocá-lo, do quanto ainda o queria, e do quão injusta toda essa situação era, principalmente para ele.
– Enfim... Me desculpe. Me desculpe por ser assim. Confiança é uma coisa que nunca aprendi, entrega muito menos. Minha história não é bonita, nem nunca terá um final feliz.
– É a sua história. Não posso mudá-la.
– Não, não pode. Quer saber algo sobre ela?
– Que diferença faz? Você já escolheu o fim, de qualquer maneira.
Ele não olhava para mim, e eu percebi o quanto ele se distanciava a cada minuto que passava, como um balão de gás hélio subindo ao céu estrelado. Subitamente, me senti compelido a segurar a corda antes que ele desaparecesse para sempre.
– As pessoas do meu passado abusaram de mim, André. Eu fui usado para criar conteúdo para uma quadrilha que mantinha um canal de pornografia infantil. Pessoas importantes ajudavam a manter o esquema, e por serem tão importantes, tudo foi pulverizado pela justiça.
Eu não sabia que era isso que ia sair quando abri minha boca. As palavras simplesmente escorregaram pelos meus lábios, como se não suportassem mais se manter represadas dentro de mim. Notei o semblante do André mudando sutilmente, e o esforço que ele fazia para não se voltar para mim. Eu não podia culpá-lo por me afastar. Mesmo assim, eu continuei:
– Uma dessas pessoas, eu reconheci depois de anos. Eu jamais poderia esquecer aquele rosto, muito menos a tatuagem que ele tinha no antebraço, uma estilização em blackwork do relógio derretido de Salvador Dali. Depois de tanto tempo, eu vi essa mesma tatuagem numa gravação feita por uma câmera escondida. Isso foi há pouco mais de dois meses.
Nessa hora, André não se aguentou e girou o rosto em minha direção. Tinha uma ruga entre os olhos.
– Como...? – Ele perguntou, confuso.
– Numa babá eletrônica que eu havia dado de presente à Hannah. O acessório armazenava os dados capturados em uma nuvem. Na filmagem, vi quando Hannah deixou minha filha sozinha com dois homens, um deles drogou a criança, o outro, o que tinha a tatuagem do relógio, usou uma câmera para filmar minha filha enquanto dormia.
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