Capítulo 31
Natália POV
Deixo o Pietro em Itália e apanho o primeiro voo para Espanha. Já no avião, uma forte turbulência deixa-me ligeiramente atordoada, e dou por mim a questionar quais os motivos para esta viagem.
O que faço aqui?
Por que deixei o Pietro sozinho?
Por mais que pense, não encontro as respostas. Não tenho uma única razão para aqui estar. Então, porque vim?
Uma nova turbulência limpa os meus pensamentos, e viro-me para a senhora de idade ao meu lado para lhe pedir uma pastilha. Contudo, ela já cá não está. Aliás, o avião está vazio. Onde está toda a gente?
Olho para a janela assustada, e o céu azul deu lugar a uma noite cerrada. Quando me viro novamente, todos os passageiros estão silenciosamente nos seus lugares. Mas algo está errado.
Com algum esforço, encontro o erro; nenhum deles tem rosto. São faces lisas e sem expressão. No meio de um enjoo forte e uma dor de estômago repentina, todos sem exceção se viram para mim. QUE HORROR! TODOS TÊM A CARA DO EPIFANIO. Pietro, onde estás? ONDE ESTOU? O que me fizeram?
As caras mantêm-se sérias. PAREM DE OLHAR PARA MIM, penso. Por favor, PAREM.
De repente, todos os Epifanios começam a dizer as mesmas exatas palavras: "Não te podes esconder." Novamente, "Não te podes esconder. Não te podes esconder. Não te podes esconder. Não te podes esconder." Grito, porém não param: "Não te podes esconder. Não te podes esconder." DEIXEM-ME, exclamo com todas as minhas forças, mas ignoram. "Onde menos esperares, estarei."
— Morram! — Acordo subitamente. — Pietro? — Ele olha para mim assustado.
Estamos sozinhos no quarto dele na mansão dos Santoro, pois ainda não tivemos tempo para decorar o nosso quarto. Na mesma cama de casal que eu, com a mão sobre o meu rosto, ele olha para mim inexpressivo.
— Os pesadelos voltaram? — pergunta-me, e assinto que sim. — Tenta dormir — diz e encosta-se novamente na almofada, mas como já é de manhã decido não fazer o mesmo.
Levanto-me, vou até ao quintal e sento-me à borda da piscina.
Enquanto era assassina, partes de mim morreram todos os dias. A minha Humanidade morreu. As minhas esperanças morreram, assim como o meu livre-arbítrio. No entanto, descobri algo. Com a ajuda do Pietro, da irmã e do meu irmão, percebi que era possível recuperar. E, com a ajuda deles, renasci um pouco todos os dias.
Contudo, algo está mal. E esse mal tem um nome: Epifanio. Ele está à nossa procura. E, enquanto estiver, não poderei dormir descansada.
No final da festa da noite de hoje, deixámos a Sabrina na esquadra da polícia a pedido dela, que dizia ser a melhor forma de garantir que ficaria em segurança. Até ela tem medo do Epifanio, para poder sugerir tal coisa.
Assim que ele acorda, peço ao Pietro para me levar à consulta de psicologia. E, apesar da estranheza inicial da psicóloga, faz-me uma sessão de hipnotismo a meu pedido.
Novamente, regresso ao edifício da SIAT, tal como ela me sugere. Quero ver o que acontece depois. Quero saber quem levou o Epifanio vivo.
A arma na minha mão, os meus pais amarrados, os tiros no corredor. De repente, assassinos aparecem e agarram-no. Estão aqui para o matar? Não. Eles não vieram à procura de vingança, tal como os outros assassinos insurgentes que os perseguem. São dois grupos de assassinos; os que defendem o Epifanio, e os que defendem os meus pais.
Apresso-me a descrever tudo o que vejo à psicóloga, e termino com a imagem dos assassinos que levam o Epifanio em segurança antes dos outros aparecerem na sala para salvar os meus pais.
Quando abro os olhos, percebo que o Pietro está na sala e que ouviu tudo o que eu disse.
— Ele está mesmo vivo — diz, estático e com o olhar vazio.
A psicóloga decide sair da sala e dá-nos um momento a sós.
— E agora? — pergunto ao achar que ele não saberá responder a isso, no entanto ele tem uma ideia:
— Vou falar com o Lorenzo. A Máfia pode ajudar-nos.
— Estás a gozar, certo? — pergunto, todavia ele mantém-se sério. — Meu Deus...
— Eles têm armas, instalações e gente disposta a proteger-nos a troco de dinheiro e lealdade.
— E a tua mãe e a Maria?
— Elas vêm connosco. Ficamos lá até eles encontrarem o Epifanio.
Sem alternativa, acabo por concordar. Por um lado, ele tem razão. Por outro, é demasiado arriscado. Quem é, afinal, essa máfia? Como sei que posso confiar neles?
Não há tempo para perguntas.
Em minutos, já estamos numa zona industrial da cidade, onde o cinzento dos edifícios e a neblina se misturam num só. O cenário perfeito para um filme de terror. Embora, neste caso, a razão do nosso terror seja bem real.
Ele leva-me até um prédio alto, também cinzento, que originalmente pensei ser de uma fábrica. Já por dentro, fico atrapalhada com a decoração; pois, ao contrário do esperado, é imensamente luxuosa. Tons de vermelho-escuro e prateado invadem a minha vista. Flores e estátuas decoram a receção, onde uma empregada nos recebe.
O Pietro identifica-se como sendo o herdeiro dos Santoro, e eu perco a minha vista no colar de jóias e na enorme tatuagem de dragão no pescoço da mulher. Depois, seguimos por um corredor em tons dourados com vários quadros a óleo nas paredes, e o Pietro liga a um motorista de confiança para as trazer juntamente com algumas malas que os empregados da mansão já foram alertados para arrumar.
Somos levados até uma sala de espera, a sala das visitas, onde dois sofás em pele e uma taça de frutas junto a dois copos de sangria nos acompanham.
— Sangria — murmuro ligeiramente enjoada. — A bebida do hotel que me fez desmaiar.
— A origem da nossa relação — diz ao rir-se e pega no copo, fazendo-me sinal para fazer o mesmo, porém recuso.
Perco-me mais uma vez na decoração do teto ornamentado em tons prateados, nos cortinados em cetim, na parede impecavelmente branca e no candeeiro de cristais.
— Onde estamos? — pergunto, por fim.
— A casa do chefe — diz com algum gozo e dá um gole. — O tio do Lorenzo.
— Ele vive aqui? — Olho para ele pasmada. — Quer dizer... nem é assim tão mau. — Volto a encostar-me no sofá.
— Não vejo por que não. — Volta a dar um gole. — É seguro, mais que uma mansão, e tem o detalhe de ser muito menos vistoso. Afinal, a melhor forma de garantir segurança é não dar nas vistas.
— Concordo. Mas, mesmo assim, não nego que seja estranho.
— E tu, estás melhor, Natália?
— Ainda tenho aquele terrível pressentimento... Algo me diz que devíamos sair do país.
— Por que dizes isso? Há algum motivo concreto? — pergunta ao ficar alarmado com a minha expressão hesitante.
— Nós destruímos a Sede Europeia. — Engulo em seco. — Mas e as outras? Será que estão no ativo?
— Tu própria disseste que não ficariam, Natália. E faz sentido; se a principal perde os ficheiros que indicam quem são os assassinos, então deixa de haver Sociedade. Todos se tornam livres, tal como a tua família se tornou.
Talvez ele tenha razão.
— Quais são as outras Sedes? — pergunta por mera curiosidade.
— A da América do Sul, América do Norte, Europa do Leste, Pérsia...
— Pérsia! — diz com algum entusiasmo. — A zona da Pérsia inclui o Dubai.
— O que tem? — questiono.
— Se a Sociedade ainda existisse por aí, o teu irmão saberia. Ele é a única pessoa que está tão ou mais informada que nós.
— É verdade — murmuro e sorrio de alívio. — Ele nunca estaria tão confiante, se desconfiasse de algo.
Ficamos ambos a pensar em tudo o que se passou ontem à noite.
Após mais alguns minutos sozinhos na sala, ele aproveita para passar a mão na minha perna de forma provocante.
— Hum — murmuro e dou-lhe um beijo no pescoço. — Venho já.
— Não me digas que estás outra vez enjoada — diz com alguma preocupação.
— Não, não é isso. — Forço um sorriso, levanto-me e beijo-o uma última vez. — Até já.
Assim que saio da sala e atravesso o corredor, decido fazer algo que nunca acreditei ser capaz: fugir.
Faço sinal à senhora da receção como se eu apenas fosse até lá fora para apanhar ar e tiro a bateria do meu telefone para evitar que me localizem.
Não posso ficar aqui. Tenho que ir aos correios para enviar uma carta ao meu irmão a avisá-lo do que se está a passar. Por algum motivo, temo mais pela vida dele do que pela minha.
Corro até ao carro e tiro a chave que retirei do bolso do Pietro enquanto ele me beijava. Assassinos mudam, mas não esquecem o que aprenderam.
Apesar de não saber conduzir, ponho a chave na porta e abro-a, colocando-a de seguida na ignição. Depois, uso a memória fotográfica para ligar as mudanças e coloco o pé no acelerador. Se tanta gente o faz, não pode ser difícil.
Ao avançar uns metros, perco o controlo do carro e quase destruo um poste, mas sou capaz de travar a tempo e começo a apanhar o jeito da coisa.
O estacionamento vazio fica-o ainda mais quando tiro de lá o carro, e surpreendo-me pela minha própria capacidade de pôr esta máquina a andar conforme as minhas ordens.
Quando chego ao final da rua, o inesperado acontece; um gato preto atravessa a estrada. Viro o volante tão rápido quanto consigo para a direita, mas embato contra um caixote do lixo, e praguejo imediatamente em todas as línguas que sei.
Felizmente, o carro não fica amolgado. De qualquer forma, este pequeno incidente faz-me decidir ir ter com o Pietro e confiar na sugestão dele, já que sou incapaz de sair daqui sozinha, por isso deixo o carro estacionado ao lado do caixote, que me dei ao trabalho de colocar novamente em pé, e avanço na direção contrária à que vim.
"O que faz um caixote urbano numa zona industrial?" Esta pergunta surge na minha cabeça, e sou incapaz de a ignorar.
Olho para todos os lugares à minha volta e encontro uma inesperada igreja, provavelmente para os trabalhadores das fábricas aqui em redor.
Enquanto assassinos, somos expressamente proibidos de ter uma religião. É proibido, censurado, tabu. No pouco que se fala sobre isso, é para dizer que não podemos tocar no assunto. Já o Pietro, segue a Igreja Católica Romana. E, apesar de ele ir todos os domingos à missa, nunca aceitei o convite para o acompanhar.
Agora, sinto-me arrependida. Talvez aqui esteja a solução para vários problemas meus. Talvez aqui eu encontre, realmente, Deus.
Sigo por instinto até à porta da pequena e humildade igreja, cujo interior, apesar de simples, carrega um forte valor simbólico. Atravesso os bancos de madeira até ao altar, e assusto-me com a presença de um padre, baixo e severo, que me olha ao longe.
— Seja bem-vinda, menina?... — A voz dele é muito rouca.
— Natália — digo com alguma timidez e... MERDA, não devia ter utilizado o meu nome verdadeiro.
— Quer alguma privacidade?
— Não é preciso, obrigada. Sou nova nestes assuntos...
— Não me diga que não é batizada.
— Não... — Fico ligeiramente envergonhada.
— Por que cora?
— Não é proibido estar aqui sem ser batizada? — pergunto, e ele apressa-se a responder:
— Não! Claro que não! — diz e dá dois passos em frente, apesar de ainda estar longe de mim.
Agora na luz, vejo que a pele dele é lisa e estranhamente jovem. Se não fosse padre, diria que fez algum tratamento ao rosto.
— Mas está interessada em ser? — pergunta, e eu respondo quase sem pensar:
— Sim, claro que sim. — Afinal, ficaria mal responder que não.
— Podemos tratar disso agora mesmo — diz ao avançar pelos bancos.
— Está a dizer que posso ser batizada? Hoje? Agora?
Ele assente que sim.
Era perfeitamente capaz de fazer isto pelo Pietro. Ele já me tentou converter tantas vezes, porém nunca me senti tão preparada como agora. Eu quero fazer isto. Eu quero acompanhá-lo nas idas à missa e seguir os ensinamentos de Deus.
— Parece-me certo — digo e sigo-o até ao fundo da igreja.
— Se não se importar com tal pergunta; por que nunca o fez antes?
— Nunca me senti preparada — digo com a maior honestidade possível, e vejo-o a abrir um armário. — Mas hoje é o dia. — Sorrio com algum orgulho da minha decisão.
— Sabe, há algo que sempre me perguntei — diz ao tentar várias chaves, já que nenhuma está a entrar na fechadura do armário. — Deus é capaz de tudo. Deus sabe tudo, vê tudo. Contudo, estas proposições criam conclusões contraditórias. Seria ele capaz de criar uma rocha que não fosse capaz de levantar? — Olho para ele confusa por não perceber o ponto a que está a tentar chegar. — Se não a conseguir levantar, não é capaz de tudo. Mas, se a conseguir levantar, não é capaz de criar uma rocha que não seja capaz de levantar.
— Que engraçado — murmuro — isso é um...
Paradoxo.
Merda.
Ao abrir o armário tira uma arma, com a qual me aponta.
— Querida, querida, Natália... — A voz rouca deu lugar a uma voz inconfundível.
Epifanio.
— Pensava que escapava? — Abre um sorriso rasgado. — Olhe... pensou mal. Muito mal. Extre-ma-mente mal.
— O que quer de mim? — Atrevo-me a perguntar com uma coragem que não sei de onde vem.
— Quero o seu corpo morto — diz e dispara, deixando-me tonta.
A dor? Onde está a dor do tiro?
Quando me viro na direção do olhar do Epifanio, vejo uma poça de sangue escuro no chão e, ao lado da macha, um corpo estendido.
— Pietro! — Corro na direção dele com todas as forças do meu corpo, no entanto um novo tiro faz-me parar a meio do caminho.
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