Capítulo 27
Natália POV
A viagem até à Bélgica com o meu irmão e o Enzo é feita com a ajuda de uma outra família de assassinos em Espanha que conhecia os meus avós e que nos ofereceu o transporte.
Após lhes ter dado a notícia, percebi que a reação deles, mesmo tendo sido treinados pela Sociedade tal como nós fomos, foi tal e qual uma família normal que recebe a notícia do falecimento de um familiar.
A verdade é que, antes de sermos assassinos, somos humanos. Humanos com famílias, amigos e sentimentos.
A carrinha tem lugar para três pessoas à frente, e o meu irmão vai a conduzir. Por estarmos na Europa, o controlo de fronteiras é mínimo, portanto até agora ninguém nos mandou parar. Até porque se o fizesse encontraria um monte de roupas na bagageira e, talvez, se procurasse bem, várias armas, munições, granadas, conjuntos de coletes à prova de bala e uma fotografia dos meus avós, que o Enzo insistiu em trazer.
Nas últimas oito horas o Pietro foi apanhado, fugi para Espanha de avião, encontrei os meus avós já sem vida e, juntamente com o meu irmão e o meu primo, parti numa viagem até à Sede Europeia com o objetivo de destruirmos a SIAT. Mesmo assim, nem uma única lágrima atravessou a minha face. O ódio absorve o meu desgosto. Depois de tudo o que passei, só consigo pensar em fazer a Justiça.
— Qual é mesmo o plano? — pergunta o Enzo do meu lado direito.
— Atacamos de madrugada, já que as ruas estão vazias, e rebentamos com tudo quanto seja possível — digo.
— Isso não me parece um bom plano — intervém o meu irmão. — Primeiro, temos que entrar no edifício sem eles saberem.
— Alguém sabe onde ficam as entradas das condutas de ventilação? — questiona o nosso primo, pensativo
— Estamos a tentar invadir a Sede de quem nos ensinou a como utilizar as condutas de ventilação. Não esperes que isso resulte — digo.
— Vamos pelas traseiras — diz o meu irmão enquanto realiza uma curva. — Tem que haver uma entrada.
— E o parque de estacionamento? — intervenho.
— Também serve — responde o meu irmão. — Estacionamos o carro, entramos pelas saídas de emergência já armados e atacamos quem se puser no nosso caminho.
— Lembrem-se: o nosso alvo é o Epifanio Santoro. Não podemos sair de lá sem o deixar morto — digo.
— E o teu amigo? — pergunta-me o Enzo.
— Acham que ele lá possa estar? — questiono.
— É possível — diz o Alexandre. — Fazemos assim: eu e o Enzo tentamos chegar ao Epifanio para o matar, e depois colocamos os explosivos por todo o edifício. Enquanto isso, tu procuras o Pietro e sais de lá rapidamente com ele. O primeiro a chegar à carrinha aguarda pelos outros. Quando estivermos os quatro, saímos do estacionamento e ligamos os explosivos.
— Combinado — diz o Enzo, entusiasmado.
— Pode ser — digo.
Ainda de noite, chegamos por fim à Bélgica. Por ser verão, não está tão fria como me lembro dela.
Vários camiões de mercadorias cruzam-se por nós, e são poucos os carros que vemos. Custa-me crer que dentro de menos de uma hora verei o meu plano ser posto em prática. Foi tudo tão rápido que nem tivemos tempo de pensar em tudo o que poderia correr mal.
Por fim, chegamos ao edifício, que continua exatamente igual ao que me lembro. Está tudo tão silencioso que me custa acreditar no que estamos prestes a fazer.
— Estão prontos? — questiona o Enzo antes de entrar no estacionamento subterrâneo da Sede. Como temos que nos identificar antes de entrar, eu e o Alexandre viemos para a bagageira e o Enzo para o lugar do condutor.
Respondemos que sim, e ele abre o vidro e identifica-se ao segurança como sendo Enzo Rendhal. Talvez por não saber dos planos do Epifanio para destruir a nossa família, o assassino que está a fazer a segurança do parque de estacionamento não suspeita e deixa-nos entrar.
Já vestidos com os coletes à prova de bala e num parque subterrâneo completamente às escuras, guardo nas calças duas pistolas e duas granadas e levo uma metralhadora na mão.
Eles os dois fazem o mesmo, só que o Enzo leva uma mochila às costas com vários explosivos.
Antes de subirmos, reunimo-nos num círculo e eu falo:
— Aconteça o que acontecer, iremos vingar-nos pelos nossos avós. Hoje, iremos provar a todos o que significa ser um Rendhal. Alexandre, Enzo, boa sorte.
— Que o sangue da Justiça seja derramado sob as nossas mãos — diz o meu irmão, e o Enzo termina:
— Vamos lá fazê-los explodir sem dó!
Como planeado, o Enzo coloca vários explosivos por todo o parque, já que este sustém o edifício, e eu e o meu irmão subimos as escadas das saídas de emergência. Quando chegamos ao primeiro andar e as escadas terminam de subir, contamos até três e saímos para o corredor em frente.
Um assassino que caminhava pelo corredor fica confuso com a nossa chegada e é deixado inconsciente pelo meu irmão, que lhe agarra no pescoço com os braços e o faz deixar de respirar temporariamente, caindo este de seguida no chão.
O Enzo aparece na porta que entrámos e junta-se a nós. Ao encontrar uma câmara de vigilância, dá-lhe um tiro que acorda todo o edifício.
— Enzo, estás parvo? — protesta o meu irmão. — Todos os andares devem ter ouvido isso.
— Não viemos aqui para destruir tudo? Tanto faz se ouvirem — diz.
Dois seguranças aparecem de repente, e o Alexandre dá-lhes dois tiros no ombro e retira-lhes as armas, deixando-os vivos porém incapazes de disparar contra nós.
— Não podemos continuar aqui — digo. — Temos que chegar ao escritório dele.
— E onde raio fica isso? — grita o meu irmão já irritado.
O Enzo faz pressão na ferida de um dos guardas e pede-lhe que diga onde fica o escritório. Eu e o meu irmão olhamos um para o outro chocados, no entanto resulta e o guarda indica, já cheio de dores e quase inconsciente, que fica no piso seis.
Apresso-me a chamar o elevador, contudo o meu irmão agarra-me no braço e puxa-me para as escadas enquanto diz que aquilo seria uma má ideia.
Após subir cinco lances de escadas e já ofegantes, chegamos por fim ao piso do escritório. Contudo, mal o Enzo abre a porta de saída, um tiro certeiro atinge a cintura do meu irmão, que cai no chão mergulhado em dor.
De um lado, eu, o Enzo e o meu irmão no chão. Do outro, mais de dez seguranças armados a apontar contra nós.
O Enzo murmura algo, e eu dou por mim a sentir todo o sangue do meu corpo a descer para as pernas, que insistem que devemos fugir. Porém, se o fizermos, será morte certa.
Ainda no chão, o meu irmão encosta-se à parede e faz pressão na ferida. Quero descer para o ajudar, mas não me consigo mover-me nem um milímetro que seja.
— Ah, ah, ah! — O riso do Epifanio por trás daquele grupo de homens é inconfundível. — Pensaram que isso ia resultar?
Aponto a minha metralhadora para ele, porém dez armas são apontadas consequentemente para mim. Já o Enzo apenas olha para eles sem reação.
— Pensava, realmente, que isto fosse resultar? — A expressão dele é de gozo. — Afinal, para além de sujos, os Rendhal são todos uns ignorantes. Sem exceção.
O meu irmão sussurra qualquer coisa, deixando todos os homens, incluindo o Epifanio Santoro, a olhar para ele, e eu aproveito para olhar pelo canto do olho para o Enzo e noto que coloca a mão por cima da granada que tem no cinto.
— Seria uma pena, se os matasse a todos agora mesmo. Podíamos tornar isto tão mais interessante — pronuncia, e o meu olhar enche-se de rancor.
— Se nós morrermos, vocês morrem connosco — diz um Enzo ao apontar uma arma para eles e com uma das mãos por cima da granada.
Quatro tiros ensurdecedores acertam nas pernas de Enzo, que cai quase inconsciente no chão. Um ruído horrível invade os meus ouvidos. O cheiro a sangue deixa-me enojada, ainda mais sabendo que é sangue de família.
— Deixem-nos — digo, por fim, avançando para a frente devagar. — A ideia disto foi minha.
O Epifanio volta-se a rir. É um riso lento, prolongado e forçado. De seguida, ordena que levem o Enzo e o Alexandre para a enfermaria separados.
Que decisão estúpida, penso. O Enzo é bem capaz de matar alguém sem remorso, mesmo neste estado.
Inesperadamente, não choro. Não tremo, e o meu coração não bate mais rápido. Estou calma. Estou estranhamente calma para a situação em que estou metida.
Dois homens pegam-me com alguma brutidão nos braços e puxam-me para longe das escadas, do meu primo e do meu irmão. Seguimos por um corredor até ao escritório do Epifanio, que vai em frente e nos guia.
Já no escritório, ele pega numa arma sem munições que me dá para a mão.
— Para que é isto? — Algum terror invade a minha voz.
— Você não é uma assassina — diz e sorri manhosamente. — Assassinos matam. Você nunca matou.
De tanto morder a língua, esta começa a sangrar. O meu rosto fica quente, assim como as minhas mãos.
— Não vou matar ninguém — digo, já a ser empurrada pelos dois homens e a ser levada para outro piso pelas escadas.
Ele não responde, e saímos três andares depois de subir. Num novo corredor, o cheiro a incenso de café volta a deixar-me ainda mais incomodada.
Uns metros à nossa frente, ele abre uma porta e sorri. Como não consigo ver o que está nessa sala, não percebo porque o faz. No entanto, ao chegar percebo.
— Mãe? Pai? — Os meus olhos enchem-se de lágrimas, assim como os deles. Fungo, grito e corro até eles para os abraçar, porém a voz do Epifanio impede-me de avançar.
— Mate-os. — Paro no meio da sala e engulo em seco, ainda com a arma na mão.
A sala é cinzenta, inacabada e vazia. No fundo, os meus pais presos a duas cadeiras com cordas e com fita-cola a tapar-lhes a boca. Por trás de mim, os dois homens que me trouxeram apontam-me ambos as suas armas e o empresário Santoro lança uma gargalhada prazerosa. De seguida, faz com que uma munição rebole no chão até chegar a mim e grita novamente para os matar.
O meu sangue gela. Todo o meu corpo gela. Neste momento, desejo que a minha alma abandone o meu corpo. Desejo morrer e nunca ter que fazer isto. Pois, caso não lhes tire a vida, verão aqueles dois homens dispararem contra mim e matarem a sua única filha.
— Não vou fazer isso — murmuro ao apertar a arma na minha mão com toda a força e atiro a munição outra vez contra o chão.
Os meus pais tentam dizer qualquer coisa, porém a fita-cola impede-os.
Desculpa, mãe. Desculpa, pai. Eu falhei. Sou a vossa filha e falhei. Não mereço ser uma Rendhal. Não mereço ser uma assassina. Não mereço ser nada.
Levanto as mãos e viro-me novamente para a porta.
— Eu rendo-me.
— Rendhes-te, Rendhal? — Tanta satisfação e deleite à medida que ele diz isto.
Engulo em seco e limpo o rosto. Contudo, ao colocar a arma no chão sou interrompida por uma explosão nos pisos de baixo.
Os dois homens viram-se para a direita e são imediatamente mortos por vários tiros em todas as partes do corpo.
Entro em choque. Choque, pânico, medo. Dois homens morreram à minha frente com vários tiros. Os corpos deles estão agora no chão, desfigurados. É uma imagem horrível. O sangue, o crânio exposto, os órgãos a escorrer pela pele.
Uma tontura invade-me e caio de joelhos no chão enquanto visualizo tudo o que se está a passar à minha frente.
Vários assassinos que não reconheço aparecem e imobilizam o Epifanio Santoro, libertando de seguida os meus pais. A sala enche-se de gente, e eu apenas choro de joelhos no chão. Sem me reconhecerem, os outros assassinos consolam os meus pais e dão-lhes a notícia que estamos livres. Que a Sociedade pertence aos Rendhal. Quando olho novamente para cima, vários assassinos percebem quem eu sou graças aos meus olhos. Enquanto eu choro, eles emocionam-se. Sou eu, a Assassina Lendária. A Assassina de Olhos Bicolores. A Assassina Inocente.
Os meus pais abraçam-se, e eu corro por entre a multidão. Sigo o caminho por onde vim e oiço dizerem que a revolução terminou. Que, graças ao deslize do empresário Santoro em ter chamado todos os seguranças para o proteger de mim, do Alexandre e do Enzo, o edifício ficou exposto e puderam insurgir-se.
Quando chego ao local onde eles foram baleados, sigo o rasto de sangue até à enfermaria e encontro-os.
Abraço o meu irmão como nunca o fiz, assim como o meu primo. O enfermeiro olha para nós, e depois muito especificamente para mim, que por causa dos meus olhos o deixo assustado e surpreendido.
De forma rápida e mal resumida, conto-lhes que os nossos pais estão vivos. Que o Epifanio foi capturado por vários assassinos que estavam contra ele. Que a Sociedade voltou a ser dos Rendhal. Todavia, algo que eu não esperava acontece; eles os dois discordam rapidamente e insistem que o trabalho não está terminado. Cheio de dores, o Enzo intervém:
— Viemos aqui com um objetivo: destruir a Sociedade; não torná-la novamente da nossa família.
— Então... mas... — pronuncio.
— Ele tem razão — diz o meu irmão já a sentar-se com várias ligaduras na cintura. — Temos que sair do edifício e ativar os explosivos.
— Esvazia o prédio — ordena o meu primo. — Nós conseguimos sair.
— Mas... — Engulo em seco. — Os nossos pais estão vivos.
— Natália, — diz o meu irmão — é esta a nossa missão; libertar todos os assassinos desta vida.
— Vocês têm razão. — Olho para baixo, e abraço-os mais uma vez antes de sair. — Vou buscar o Pietro.
Com a ajuda de um assassino que me diz onde eles estão, subo até aos últimos andares e chego a uma das celas onde mantêm os traidores. Lá, encontro o Pietro e a irmã.
Ao ver-me, os olhos dele enchem-se de lágrimas e de luz. Parece um sonho, mas é bem real. O Pietro está vivo. Quero chorar com ele e abraçá-lo tanto possível, porém não temos tempo. Mesmo assim, de forma instintiva ele coloca uma mão sobre o meu pescoço e beija-me de forma ternurenta e sem pressa. Por mim, nunca parava. Por mim, ficaria assim para o resto da minha vida. Contudo temos que sair deste edifício.
Dou um abraço rápido à Maria e indico-lhes o caminho para a rua. Infelizmente, não os posso acompanhar, mas prometo encontrar-me com o Pietro mal consiga sair.
De seguida, corro tanto quando consigo até ao escritório do presidente e uso o altifalante para dar a mensagem a todos os andares: "Ordem de evacuação. Repito, ordem de evacuação. Peço a todas as pessoas dentro do edifício que saiam nos próximos dez minutos a contar a partir de agora."
Assim que saio da sala vejo várias pessoas confusas a dirigir-se às escadas, e uma delas pergunta-me se sei o que se passa. Digo que em breve saberão e vou até à enfermaria, no entanto não encontro o meu primo nem o meu irmão.
Sou a última pessoa a abandonar o prédio. Quando o faço, peço a todas as pessoas que se afastem tanto quanto possível, pois não podemos prever como será a explosão.
Reúno-me novamente com o Pietro, a irmã, o Alexandre, que me diz que o que tem na cintura é só um raspão, e o Enzo, que continua deitado na maca. Andamos uns bons metros para trás, e, junto a todos os outros assassinos e curiosos que passam na rua, assistimos por fim à destruição da Sociedade. Em apenas vinte segundos, todo o edifício estremece, os vidros colapsam e as paredes começam a rachar-se, indicando que vai ceder.
Os grupos separam-se e somos agora uma multidão a fugir do cenário iminente de colapso total do edifício. Uma nuvem de fumo persegue-nos, e descemos os cinco pela rua com o Pietro a empurrar o Enzo, que, mesmo cheio de dores, tenta olhar para o que se passa por trás de nós.
Quando deixa de existir edifício da SIAT, já o Alexandre e o Enzo foram levados por uma ambulância que entretanto chamaram, e eu, o Pietro e a Maria estamos num táxi a caminho do aeroporto. Antes disso, ainda dei um papel aos meus pais com a morada da mansão do Pietro.
Até apanharmos o avião, sou incapaz de me pronunciar e contar-lhe tudo o que aconteceu. Contudo, assim que levantamos voo do solo belga, sinto-me finalmente livre e decido falar com eles.
Os meus pais estão vivos. A Sociedade foi destruída. Todos os assassinos foram libertados. E isso apenas aconteceu graças a nós.
Então, por que não me estou a sentir realizada neste momento? Por que sinto que ainda temos um problema? O que é que não nos estamos a lembrar?
Um beijo do Pietro interrompe-me os pensamentos, e dou por mim a esquecer-me de todos os demónios que me perseguem. Ele está comigo. Estamos juntos. Sobrevivemos.
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