Capítulo 1
A partir do momento em que aceitamos juntar-nos à Sociedade, nós, os assassinos, somos treinados para não sentir nada. Ensinam-nos a como não sentir culpa, medo, raiva, empatia, ou qualquer outra emoção que afete o nosso trabalho.
A nossa vida muda a partir dos dezasseis anos, onde nos obrigam a escolher se queremos ou não entrar na Sociedade Internacional de Assassinos Treinados, ou SIAT, como lhe chamamos.
Os governos sabem que existimos, mas negam que o saibam. A comunicação social também nos ignora, pois teme que sofra as consequências de nos denunciar.
Como os meus pais e o meu irmão mais velho, aceitei. Toda a nossa família pertence ao grupo, incluindo os meus tios, primos e também os meus avós, que fizeram parte dos fundadores.
Contudo, devido ao alto risco do nosso trabalho, temos que mudar frequentemente de identidade e país.
Certas missões obrigam a que atuemos como família, mas posso ser chamada a qualquer momento pelo conselho para um trabalho individual, pois completei recentemente a maioridade legal, idade em que nos passam a poderem ser atribuídos os papéis mais importantes numa encomenda, como aqueles em que ganhamos realmente o título de "assassinos".
Por falar nisso, nunca tive essa função. Por um lado, por ser muito nova, mas, por outro, porque sempre me coube criar as estratégias que nos permitam cumprir o objetivo que nos foi encomendado. Desde cedo que aprendi ao observar os meus pais, já que eles garantem que tenho uma capacidade mental muito elevada, e portanto adequada ao que me é pedido.
Geralmente o meu irmão é que trata da escolha e transporte dos equipamentos que serão necessários para as missões. Já a minha mãe trata das identidades e viagens, e o meu pai trata do trabalho em si.
No fundo, a nossa função é a de nos certificarmos que tudo corre bem para o meu pai. E, se correr, ganharemos um grande valor monetário, pago pela Sociedade, que recebe uma certa comissão do que os clientes pagam.
O nosso último ano foi passado a viver em hotéis, e a qualquer podemos podemos ser chamados para trabalhar para máfias, governos, empresas, ou até mesmo particulares. No entanto, quase nunca sabemos para quem estamos a trabalhar, pois a Sociedade serve de intermediária entre os clientes e os assassinos.
A própria Sociedade tem uma ética muito forte, o que faz com que nem todos sejam aceites. Isso também faz com que haja vários pedidos rejeitados e como consequência vários opositores. Esse é o motivo de não terem uma sede fixa, sendo apenas obrigatória a existência de uma por continente.
Os meus pais quiseram que eu e o meu irmão tivéssemos uma infância normal, portanto estabelecemo-nos no nosso país de origem até que a minha entrada na SIAT fosse finalizada. Durante esse tempo os meus pais apenas realizaram pequenos trabalhos dentro do país, o que fez com que nunca fossemos descobertos, nem obrigados a mudar de cidade.
Custou-me muito abandonar os meus colegas de turma e amigos mais chegados, mas também tinha imensa vontade de seguir a mesma vida que a dos meus familiares. Quando terminei o Secundário, com dezassete anos, saímos do país e fomos viver para França, próximos a uma escola secreta de assassinos, onde me foi atribuído a mim e ao meu irmão um mentor que nos guiou aos dois e a mais um grupo de dez alunos e alunas da nossa idade, ao longo de vários meses.
Uma das disciplinas dedicava-se ao controlo físico e emocional e incluía aulas de combate corpo-a-corpo, controlo de armas, resistência física, elasticidade corporal e técnicas relacionadas à água e à concentração. Outra delas dedicava-se ao conhecimento teórico e incluía aulas de planeamento estratégico, ética de assassino, disfarce, envenenamento, métodos curativos e a como sermos o mais invisíveis possível.
Por termos ido viver para França durante tantos meses, tive que trocar o meu nome, Natália Rendhal, por Natalie Rendhal. Já o meu irmão pôde manter o dele, Alexandre, pois escreve-se da mesma forma em francês.
Isto dos nomes terem que ser parecidos serve para que os nossos familiares nos possam encontrar com mais facilidade, pois caso eles nos queiram contactar apenas terão disponível na Sede Europeia a localização do nosso hotel e não as nossas temporárias identidades. Também não podemos ter telefone, e-mail, ou qualquer outra conta em algum servidor na Internet.
Até agora tivemos dois trabalhos em família. Um deles envolveu capturar o líder do maior cartel de drogas argelino. Todavia, o segundo foi muito diferente, e neste tivemos que roubar um documento de um negócio realizado por um multimilionário no Dubai. No primeiro não tive muita intervenção e aproveitei mais para aprender com os meus pais. Já o segundo foi uma experiência na qual vi e experimentei pela pela primeira vez os gadgets a que temos acesso e devo dizer que adorei.
Os gadgets são aparelhos, eletrónicos ou não, disponibilizados pela Sociedade e que apoiam as nossas missões. Por exemplo, um dos que usámos consistia num comando que, quando ligado à corrente energética do edifício, era capaz de a sobrecarregar e desligar por completo. Outro que também usámos foi um aparelho que nos permitia interceptar as conversas por aparelho móvel de qualquer pessoa que estivesse num espaço de dois metros. Infelizmente, tivemos que os devolver, mas o pai garantiu-me que da próxima vez poderei ficar com um para mim.
Neste momento estamos a viver no leste europeu, mais especificamente na capital russa, Moscovo. Temos estado as últimas duas semanas num pequeno hotel de três estrelas, e os meus pais insistem em tratar-me por Nastya, apesar de já lhes ter dito que não é nada parecido com Natália.
Quando era mais nova costumava brincar com a situação e dizia ao meu irmão que éramos como fantasmas. De facto, talvez eu tivesse razão. Vivemos nas sombras, sem nome fixo ou uma casa própria. Trabalhamos de acordo com o que nos pedem até à idade da nossa reforma e os nossos momentos mais importantes são aqueles passados em família, nas reuniões que fazemos a cada seis meses na mansão dos meus avós em Espanha, país que eles decidiram viver após a reforma.
Estou com o meu irmão no topo do edifício do hotel, enquanto observamos o Kremlin ao fundo da avenida. O clima aqui é tão mais frio do que o que estou habituada que tive que vestir uma parka enorme.
— Não sabia que podias andar assim em público — comenta o meu irmão ao apoiar-se na grade da varanda.
— Do que é que estás a falar?
— Tiraste a lente de contacto.
Não esperava que fosse notar, mas ele tem razão.
Desde que entrei na escola de assassinos que tive que usar uma lente de contacto em apenas um dos olhos, já que tenho heterocromia, o que faz com que os meus olhos tenham cores diferentes. Um deles é castanho-escuro e o outro é de um verde azulado. Nunca tive problemas com isso, mas essa anomalia genética torna-me facilmente identificável pois é rara de encontrar. Logo, se quero manter-me o mais neutra possível, utilizar uma lente castanho-escura para que fiquem os dois da mesma cor garante-me um maior anonimato.
— Queria lembrar-me do que era ser a Natália, nem que fosse só por um dia — respondo enquanto noto o olhar triste dele. — Passa-se alguma coisa?
— Acho que não me importava de ter ficado no Dubai.
— Vida de assassino é assim. Lembra-te da regra: "Nunca ficar na mesma cidade em que foi finalizado um trabalho".
Ele assente com a cabeça e vira-se para a rua em frente ao hotel.
Se tudo isto foi complicado para mim, imagino para ele. Quando terminei o Secundário com dezassete anos e fomos para França, ele já tinha vinte e dois anos, o que significa que tinha muito mais cumplicidade com os amigos próximos do que eu. De tempos a tempos ele volta de férias até à cidade em que nascemos e morámos tantos anos, mas não é a mesma coisa do que lá viver.
— Recebi uma proposta de trabalho individual.
— O quê?! A sério? — quase grito ao levantar-me em direção a ele.
— É em Pequim, na China.
— Eu sei onde fica Pequim — comento ao rir-me da reação dele. — Estou tão feliz por ti!
— Então achas que deva aceitar?
— Se acho? Claro que sim!
— Não sei se estou preparado.
— Oh, claro que estás. Não foi à toa que andámos quase nove meses naquela escola.
— Ainda não contei aos pais — diz receoso.
— Queres que vá contigo quando estiveres preparado?
— Não é preciso esperar. Por mim íamos agora mesmo.
Descemos as escadas e vamos até ao sexto andar, onde está o quarto dos meus pais.
— Aconteceu alguma coisa? — pergunta-me a minha mãe por estranhar a nossa visita inesperada enquanto nos abre a porta.
— Temos uma notícia para vos contar — respondo à medida que entramos.
O meu pai desliga o portátil em que estava a trabalhar e coloca-o na secretária. De seguida, a minha mãe senta-se na poltrona enquanto informa o meu pai do que se passa.
— Um de nós os dois recebeu uma proposta de trabalho — vou direta ao assunto.
— Isso é ótimo — diz a minha mãe. — Já nos tinham informado e estávamos à espera do momento certo para vos dizer, mas vejo que também vos alertaram.
— Oh, a sério?
— Sim, querida — responde-me a minha mãe.
— Não esperava que fosse tão pouco tempo depois da anterior — acrescenta o meu pai.
— Até nos enviaram a carta da identidade que terás. O teu nome será Antonella, mas deverão chamar-te Nella.
— Ahn? Do que é que estão a falar? — questiona o meu irmão por não compreender ao que a minha mãe se está a referir.
— Mas isso é um nome de mulher — comento. — O Alexandre terá que fazer papel de mulher?
— Do que é que estão vocês a falar? — intervém o meu pai.
— Da proposta que recebi para um trabalho em Pequim — responde o Alexandre.
— Oh, isso é incrível! — diz a minha mãe ao perceber finalmente o que se está a passar. — Mas não era disso que nos estávamos a referir. Estamos muito felizes por ti e não sabíamos disso até agora. Porém a carta que recebemos é referente à Natália.
— A mim?
— Sim, filha. Será o teu primeiro trabalho sozinha!
— Mas, mas... como assim?
Eles estão a falar a sério? Será esta a minha primeira missão?
— Antes de te informar-mos sobre todos os pormenores, conta-nos no que consistirá a tua, Alexandre — pede-lhe o meu pai ao endireitar-se na cadeira da secretária.
O meu irmão senta-se ao meu lado na berma da cama e continua:
— Terei que invadir um casino ilegal controlado pela máfia chinesa e gravar um vídeo que sirva como prova para os poderem incriminar.
— Parece-me perigoso — comenta a minha mãe. — Terá sido encomendado pelo governo chinês?
— Não faço ideia — responde o meu irmão. — Tenho uma semana para o aceitar, e será dentro de um mês.
— E sentes-te preparado? — pergunta-lhe o meu pai.
— Bem, eu acho que sim.
— Achas ou tens a certeza?
— Tenho a certeza — responde confiante.
— E quanto a mim? — pergunto. — Que carta é essa que receberam?
Os meus pais entreolham-se, e a minha mãe responde-me:
— Diz-me, querida, estás interessada em visitar Itália pela primeira vez?
— O quê? Oh, meu Deus! Claro que sim! É em Itália?
— Sim, mais especificamente Roma.
— E no que consiste?
Voltam a olhar um para o outro, e pergunto-me sobre o que será. Nunca se sabe o que esperar de um trabalho, já que podemos fazer de tudo, só precisa de cumprir a ética dos assassinos.
— Como é que te saíste nas aulas de controlo de armas? — pergunta-me discretamente o meu pai.
— Vão diretos ao assunto! — ordeno por não perceber aquelas divagações.
— Será o teu primeiro homem — sussurra-me a minha mãe com um olhar preocupado.
Percebo imediatamente que terei que matar uma pessoa. Aquilo que temia irá acontecer, pois será o meu primeiro.
— Achas que, hum... estás preparada?
— Um assassino não deve sentir medo — respondo-lhe, enquanto tento ignorar tudo o que estou a sentir.
É esta uma das funções mais importantes de um assassino, não sentir nada. As ordens que recebemos são rigorosas, diretas e obrigatórias: Jamais devemos deixar que uma emoção afete o nosso trabalho.
Se terei que matar alguém, assim o farei, pois acredito na justiça da ética de assassinos. Se a Sociedade aceitou este pedido é porque há motivos por trás que deverei confiar serem justos.
Todas aquelas aulas e missões com os meus pais treinaram-me para este dia. Deverei ser capaz de criar o meu plano com o auxílio dos gadgets disponíveis e pô-lo em prática.
Nasci uma assassina, e tal como os meus antepassados serei-o até ao final dos meus dias. Espero de mim a perfeição, assim como também os outros a esperam de mim.
— Eu aceito.
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