Capítulo Doze
– Vamos! Continuem! Seus fracos! Imundos! – um dos agentes do lugar berra, portando consigo uma arma de choque, ao qual dispara aleatoriamente em alguns dos nossos.
Suor, sangue, choro e gemidos, é tudo que percebo, não sei diferenciar os meus dos deles. O estômago ronca de fome, os ossos estão tão moídos que parecem nem existir mais, como se tivessem colocado um metal flamejante no lugar. O ar permanece impregnado com uma mistura de odores resultantes desagradáveis de nossos corpos e mofo. As mãos tremem com o esforço físico colossal, isso que estamos empurrando em círculos é pesado demais até para nós e parece não ter um propósito claro. Para mim é uma espécie de dispositivo para retirar nossas forças e nos manter em um estado mais controlável. O olhar dos demais Zedar, os cem por cento obedientes, me fazem concluir. Olhando a multidão, é notório as razões de não encontrarmos tantos conterrâneos na Terra. Eles foram pegos. Alguns estão aqui há muitos anos, o estado esquelético generalizado, e as roupas sujas, aos frangalhos, denuncia o tempo. Um dos prisioneiros tem apenas uma órbita vazia no lugar de onde deveria ter um olho, outro, teve uma amputação forçada na metade do braço, pelos pedaços de pele pobre balançando é possível afirmar que não foi um procedimento cirúrgico limpo, com certeza foi um método de tortura.
Com o olhar cansado, desvio para John, e Joe, ambos sem camisa, e agora com marcas de surras que levaram por tentarmos uma rebelião. Apanhamos tanto que mal consigo enxergar com o olho direito, não sei se é uma cegueira temporária ou é por causa do enorme inchaço latejando em carne viva.
Freya está ao meu lado, e aparenta estar mais tranquila, ela se limita a empurrar a grande manivela sem emitir um som sequer. Seus cabelos grandes cobrem o rosto. Me pergunto o que deve ter vivido para não se assustar com a situação atual. Enquanto éramos surrados, foi a única a não gritar. Nada. Está assim desde quando fomos forçados a voltar a trabalhar.
Novamente, a ideia de tirar a vida flerta comigo. Não posso conceber que esse é nosso fim, servir como escravos da humanidade. Não podemos. Estou disposta a morrer em suas mãos, mas eles não estão dispostos a nos matar. Já chorei tantas vezes que agora as lágrimas cessaram. E nesse instante, continuar empurrando aquilo é menos doloroso que apanhar, por isso continuo.
Algo pingando no chão me chama a atenção, e vem da minha parceira. Não leva muito tempo para que eu identifique como sangue a substância, embora não perceba a origem exata. Seu vestido, agora não tão longo, me impede de tirar qualquer conclusão. Mesmo tendo meus próprios sangramentos para me preocupar, opto por tentar algum contato.
– Freya? – a garganta protesta, como se algo tivesse rasgando-a no meio, um resultado da falta de hidratação.
A mulher não dá ouvidos, não sei se não me ouviu ou se está em um estado de profunda dor. Então, sou ousada em afastar uma mão da madeira e sacudir seu ombro um segundo. O toque da minha pele nela arde, mas não há nada que possa fazer.
Nesse instante, sua cabeça ergue em minha direção, e sua expressão machucada entrega algo totalmente diferente do que estava esperando: em meio às feridas abertas no rosto, um sorriso. Não é como os sorrisos comuns, onde fica claro o sentimento transmitido, é anormal, floresce como uma árvore maldita em meio ao paraíso. Um filete intenso vermelho escapa de um corte em sua testa, mas parece não incomodá-la.
Nossa tentativa de comunicação não passa despercebida por um agente, e como respostas, somos açoitadas diversas vezes, enquanto profere injúrias a nosso respeito. A dor de cada chicotada é tão dura para mim que lágrimas que achei que não tinha mais escapam, ao passo que as mãos fraquejam. Tem alguma coisa nessas armas, penso que são fabricadas com um intuito de maximizar o sofrimento, a agonia ainda pulsa forte, lembrando de cada golpe. Percebo de novo que obedecer o que nos é ordenado causa menos dor. Talvez seja por isso que a maioria dos prisioneiros apenas aceita, pois suas mentes já foram educadas para executar sem questionar.
Em compensação, Freya se mantém muda. Quando a ardência nas costas diminuiu e olho para ela, vejo que a mulher mantém o mesmo sorriso macabro de antes. Ela me assusta.
Após muitas horas daquele trabalho inútil, somos finalmente reunidos ao ar livre. As fileiras são difíceis de contar, deve ter ao menos quinhentos aqui. A noite fria e ausente de luz lunar são as únicas coisas que aliviam a pele esfolada nas mãos. Não sei quanto tempo ficamos lá dentro, mas foi doloroso. Alguns dos prisioneiros caem e são castigados, enquanto outros se esforçam para se manter de pé. Trêmula pela exaustão, lanço um olhar para meu irmão, que embora esteja bastante escoriado nas costas e peito, continua concentrado durante o falatório do homem com uniforme militar de um partido, que desenvolve um monólogo estranho sobre raças, nos colocando como indignos de certos direitos pelo fato de não conseguirmos aniquilar a humanidade.
– Portanto o povo Zedar são seres sub-inteligentes, a sua incapacidade de superar obstáculos é o que os torna destinados a servir a única raça superior. A mente dos filhos de Zeda não compreende a lei da evolução. É como uma cadeia, onde o mais fraco serve ao mais forte, pois o mais forte é por direito o conquistador. A servidão dos Zedar é não apenas natural, é necessária. Qualquer espécie que se opõe a essa ordem deve ser reduzida, e apagada da existência. – Sua voz incha com orgulho, ao passo em que os subalternos entregam frases eufóricas de aprovação.
O resto do discurso não presto atenção, por me sentir fraca demais, as pernas bambeiam, e quando penso que vou cair, uma mão amiga me apara. Olho para a pessoa nas sombras.
– O que acha de tentarmos lutar? – a voz de Freya soa como um sopro suave.
– Já fizemos isso hoje. E não deu certo.
– Fizemos?
Um vigilante passa perto de nós, o que nos obriga a ficar em silêncio. Ajeito a postura depressa, torcendo para não ser castigada. A luz de sua lanterna ilumina nossos rostos, eu tento não demonstrar o incômodo que isso acarreta. Não ouso nem mesmo encará-lo. Vi o que fazem com quem o faz. Ele se aproxima, cospe em meu rosto e continua a patrulha pelo meio das fileiras. Dado o que vivi nas últimas horas, me pareceu uma punição razoável. Apenas limpo com a blusa esfarrapada.
– Temos que tentar – a mulher persiste.
– Fomos detidos! Não se lembra?
– Quando foi isso?
– Está mesmo falando sério? Não se lembra?
– Não.
– Não há nada que possamos fazer, nos pegaram – finalizo, pessimista.
– Nós lutamos desde o começo, não seja tola! Até agora não nos fizeram grande mal. Ainda temos chance.
Sua fala me faz ficar perplexa. As quatro surras generalizadas que levamos desde que chegamos aqui não foram suficientes? O trabalho ininterrupto, os humanos porcos berrando insultos em nossos ouvidos, nos humilhando. Tudo isso aconteceu!
– Mais cedo nos eletrocutaram, chicotearam até perdermos as forças. Estou fraca, com fome e sangrando. Ainda acha que temos alguma chance? E do que estava rindo afinal?
– Rindo? Quando?
Suspiro fundo, como uma forma de demonstrar o esgotamento da paciência, embora fazer isso doa os pulmões.
– Você é louca. Estava sendo maltratada e estava com um sorriso bizarro na cara.
Ao verbalizar a frase, um lampejo se manifesta na mente. No meio do falatório do comandante do campo, penso em como Freya era antes de se converter em nossa aliada. A menina que ajudou a torná-la "normal" de novo nos explicou que conseguiu extrair informações da mente de Freya, ela foi um dos primeiros experimentos da extra-humanidade, e que por isso métodos mais primitivos foram aplicados. Experimentos que envolviam o limite da dor humana. Nesse momento, penso que talvez exista uma chance, porém teremos que utilizar a nossa humana como cobaia.
– Como está se sentindo agora? – perguntei a ela, cochichando.
– Bem, eu acho. Estou com fome, mas não é nada demais.
Uma resposta impossível para qualquer um que seja minimamente são. É isso, devo induzi-la a se lembrar de sua verdadeira natureza, e quem sabe poderemos criar uma bagunça forte o suficiente para fugir.
– Qual é o seu nome?
A hesitação de sua parte é perceptível pelo movimento de seus lábios.
– Você sabe. Por que a pergunta?
– Quer realmente fugir? Então quero que se lembre quem é de verdade. Você é Freya, a bruxa da floresta.
Depois de sermos conduzidos em um comboio de veículos dos rebeldes dissidentes, chegamos a sua base, localizada em um ponto longínquo no meio do deserto. Homens descem do veículo para guiar os carros, enquanto outros observam os céus com uma espécie de binóculo modificado, talvez procurando por sinais de aeronaves inimigas.
Os combatentes se esvaem pelos túneis improvisados, levando consigo os feridos e os que foram libertados. O cheiro terroso suja o ar, mas ainda é melhor do que estar a mercê do clima lá fora. O calor é menos agressivo, embora ainda seja abafado.
– Obrigado pela ajuda. Estávamos planejando essa emboscada há tempos.
Alex é guiada até uma mesa velha e será inspecionada, pois suas gengivas não param de sangrar. Quando percebe que terá que se deitar, seus músculos travam, e uma verdadeira luta contra os adultos que tentam incentivá-la começa. A garota puxa para o lado oposto, gritando para que a soltem. Seus olhinhos se voltam para mim em um instante, transmitindo neles a insegurança, talvez seja o trauma de ter sido posta em muitas mesas cirúrgicas durante os experimentos. Dessa vez não parece algo banal, vê-la acuada dessa maneira me traz uma sensação ruim e então, intervenho.
– Está tudo bem. Não farão mal a você – digo, encarando-a de perto.
Nesse instante, suas pálpebras se encontram úmidas.
– Precisamos ver o que há de errado, meu bem – uma enfermeira diz, tentando tocá-la, sem sucesso.
Percebo sua respiração aumentando, ao passo em que o estresse parece modificar sua expressão inocente para algo mais agressivo. É como a antiga Alex retornando.
Eu me apresso em segurar sua mão com confiança, e me abaixo para ficar na sua altura. Isso de alguma forma a puxa de volta.
– Me tira daqui – seu olhar é resoluto e choroso ao mesmo tempo.
– Estou aqui, e nada vai acontecer. Vão apenas analisar você.
– É isso que sempre dizem.
– Dessa vez é diferente. Se machucarem você, mato todos aqui, sem pensar – faço questão de falar alto o suficiente para parecer intimidador, e julgando pela posição defensiva das pessoas na sala, funciona.
Apesar do receio, a criança suspira de olhos fechados, e depois sobe na mesa. Enquanto a examinam, continuo segurando sua mão. Embora acredite que não deva me envolver com humanos, entendo que talvez ela possa ser a única exceção. Não esqueço de como Alex me protegeu há algumas horas, aquele sorriso foi tão transparente que grudou na cabeça. Quando o pessoal médico a vira de bruços, e a suas costas, exibida depois de tirarem a blusa, a reação comum é o choque. A placa metálica de circuitos, presa ali cirurgicamente, explica a insegurança vista antes.
Volto meu olhar para Jayden, o Zedar ao meu lado, e seu olhar carrega decepção, talvez tristeza, mas não a surpresa, mesmo sendo também a primeira vez que vê as costas de Alex.
– Precisamos conversar, em particular – ele se adianta, tocando meu ombro.
– Não. Agora você vai me dar todas as respostas que quero, ou terei que tirar à força.
– E você terá. Mas, o que vou te dizer é um assunto...delicado – aponta com o queixo discretamente para Alex.
Observo a única enfermeira entregar uma pelúcia à criança, o que de alguma forma a tranquiliza, o bastante para esquecer suas preocupações e soltar minha mão. Incerto, deixo a sala e acompanho o homem até outra ao lado, menor, com uma mesa modesta de madeira e mapas pregados nas paredes, cheios de marcações das mais diversas. O líder do grupo se senta numa das cadeiras ao redor da mesa e me convida para fazer o mesmo. Enquanto ele organiza o local, tirando papeis e os guardando, parte de mim ainda suspeita de que esse cara é apenas um humano com poderes de manipular a terra, mas a forma que ele pronunciou seu próprio nome alien e também as tatuagens no punho esquerdo me dizem que ele é de fato um de nós. Quando o ataquei antes de chegar aqui, Jayden se mostrou bastante familiarizado, e conseguiu me evitar com a destreza de um Zedar.
– E então, o que quer saber, exatamente? – cruza os braços em uma posição confortável.
– Quem é você de verdade? O que está fazendo aqui? Como entrou na Terra se não veio conosco?
– Garotos, sempre muito ansiosos – sorri.
Sua mão alcança uma série de pastas em uma gaveta embaixo da mesa. Elas me chamam a atenção imediatamente, por conta do material escuro e opaco que a compõe. Eu a seguro tão rápido quanto posso, apenas para confirmar, através da sua aspereza, que é feita de xenorite, um polímero tão comum entre nossos planetas como o plástico na Terra. Nesse instante, toda a dúvida a seu respeito deixa os pensamentos. Abro um dos arquivos e começo a folhear, e neles, escritos em nosso idioma, o detalhamento completo de uma missão que traduzida seria "Operação Alvorada Oculta", algo assim.
– Você é de alguma força especial? Ehhr, perdão, o senhor. – O solavanco apalpa o coração, é a felicidade de encontrar um conterrâneo.
– Aqui na Terra sou o Major Jayden Perri, da Legião Fantasma, talvez já tenha ouvido falar – sua voz faz um contorno grave antes de continuar. – Estamos infiltrados neste planeta há quase quarenta e cinco anos. Nós preparamos o caminho para que vocês viessem reencarnados nos humanos. Furamos o bloqueio, e pousamos aqui. Sabotamos as comunicações, o que permitiu que as naves com os fetos encapsulados chegassem.
– Incrível – tento não parecer eufórico, mas é impossível. Estar diante de um Zedar legítimo e não um Zedar encarnado torna tudo diferente. – E como... como tudo aconteceu?
– Após a concepção e aprovação do plano Gênesis, o Conselho Militar Supremo determinou que exércitos de forças especiais deveriam penetrar o território inimigo, e estabelecer a comunicação. As Valkar foram a opção mais óbvia, porém se uma delas fosse identificada, acreditaram que chamaria muita atenção, e então as forças menores foram selecionadas para a tarefa. Éramos três mil quando chegamos, agora, não tenho certeza se somos duzentos. Tivemos de nos espalhar pela Terra, cortar a comunicação dos Yagen e eliminar alvos-chave. Depois, veio o primeiro contingente de encarnados. Ajudaríamos eles a voltar ao que eram, com poderes e tudo. E em seguida, vieram vocês. Mas não pudemos ajudá-los, estávamos sendo caçados também.
– Está dizendo que existiu mais um grupo de exércitos? Não fomos os únicos?
– Não. Vocês são o contingente principal, mas não os únicos. Os primeiros chegaram anos antes, eram soldados de elite altamente treinados e selecionados para escoltar todo o tipo criminoso. Estupradores, assassinos, serial killers. Até mesmo a besta de Faun foi libertada e veio para cá. Eles estavam soltos por aí, porém tivemos de contê-los. Não estavam seguindo o plano.
– Por que o governo enviou essa gente?
– Bom, não tinha muitos a quem recorrer. O custo em vidas dessa guerra obrigaram o exército a recrutar qualquer um que estivesse disposto. Pelo menos no começo eles serviram. Nos ajudaram a cortar a comunicação da Terra com a humanidade exterior e estabelecemos a nossa com o comando central. Depois, nós eliminamos nossos criminosos, um a um.
– Espere: então significa que ainda existe uma forma de falar com o Planeta-mãe?
– Não mais. Mesmo que vocês não tenham descido fisicamente para a Terra, as naves aos quais estavam encapsulados chamaram a atenção deles, e com isso, mandaram reforços. Não foram muitos, mas eles conseguiram destruir nosso equipamento, ficava no monte Fuji. O que podemos fazer agora é nos juntar a resistência, e junto com os terrestres, derrubar esse governo. Temos que decapitar a Federação, porque não sabemos se conseguirão mandar mais pessoal para nos ajudar. Agora que os extra-humanos sabem, as chances são mínimas.
– Então o plano fracassou mesmo – concluo.
– Ora, não perca a fé – ele ralha, otimista. – Dê uma boa olhada nesses papéis e me devolva depois. Tem informações aí que vão te ajudar a entender melhor tudo isso.
– Certo – aceno com a cabeça e me levanto.
– Um momento – o Major Jayden brada e eu me volto para ele. A sua mão roça a barba grisalha. – Ainda não terminei. É sobre a menina.
Como um estalo, a mente volta a focar na trama atual, as pastas com os arquivos em minha posse fizeram os pensamentos flutuarem. Estava tão determinado a descobrir mais detalhes sobre essa arriscada missão ao qual fomos designados que esqueci de Alex.
– Ela vai ficar bem? Como eu disse, a gengiva não para de sangrar.
– É justamente sobre isso, garoto. Sei exatamente o que ela é. Já lutamos contra várias delas, e tentamos ajudar muitas outras. Mas longe daquelas máquinas, essas crianças não têm a menor chance. Elas sempre morrem, Benjamin.
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