One Shot: More To Life
n/a: tinha postado isso como livro independente, mas não achei que valesse a pena ser uma história à parte, então resolvi adicionar aqui uma vez que o IMAGINE estava parado faz tempo e MTL é uma história pequena demais para solo.
_____________
I
Nunca há um tempo ou um lugar certo para se apaixonar por alguém. Definitivamente nunca há uma pessoa certa. Esta é uma daquelas coisas que não temos controle em nossas vida. Afinal parece que não temos tanto livre arbítrio quanto gostaríamos. As decisões são nossas, mas os sentimentos não. Situações levam a emoções que não conseguimos explicar e das quais não conseguimos sair quando nem como queremos.
Eu tinha a vida perfeita. Ok, não era perfeita, mas era boa o bastante. Trabalhava num bairro suburbano de babá, morava num anexo de favor, trabalhando para um casal com quatro crianças que precisavam dos meus serviços noturnos semanalmente e ainda fazia voluntariado na universidade local em troca de poder assistir algumas aulas. De quebra eu tinha o melhor namorado que alguém podia pedir. Atencioso, carinhoso, divertido, lindo, rico – ok isso não é uma qualidade, mas com certeza ajuda – e que me amava independentemente do meu status financeiro. Porém, para uma garota como eu, isso era bom demais para ser verdade. Eu cresci numa família disfuncional, num bairro pobre, numa vida de merda onde eu era tratada que nem lixo. Ninguém me amava, ninguém se importava comigo. Ter tudo o que eu sonhava algum dia ter era surreal para mim. Agora eu sentia que minha vida estava em minhas mãos e o meu futuro estava encaminhado, então porque eu fui me apaixonar logo por ele?
Aquilo era errado. Eu sabia disso. A decisão estava em minhas mãos. Eu nunca mais precisaria olhar na cara dele se eu não quisesse. Mas sabem aquele livre arbítrio que todos dizem que o ser humano tem? Bom, eu começo a duvidar que ele de fato exista. Toda essa coisa de destino, vidas interligadas e várias outras lenga-lengas românticas me soam perfeitamente a uma clara inexistência de livre arbítrio.
Tudo começou no que era para ser apenas uma pequena reunião de casais. Patrick aproveitou uma das minhas noites de folga para me levar para uma cabana que os pais de Jonathan possuíam perto do lago e passar uma noite romântica com Alexia, Daniel e Iris. Não todos juntos como polisal ou uma suruba é claro, mas cada um com o seu par romântico. Jonathan e Daniel eram melhores amigos de Patrick e Alex e Iris suas respectivas namoradas. As duas já eram melhores amigas antes de namorarem os rapazes. Já eu era a única que parecia a intrusa, a deslocada. Apesar de todos os esforços de Patrick, eu sempre me sentira assim. Não importava que fizessem dois anos que eu conhecia a todos, eu sempre seria a serviçal que se deu bem. Ninguém dizia isso em voz alta, mas eu conseguia escuta-lo em seus olhares. Na frente de Patrick todos eram simpáticos e amigáveis, mas isso não durava por muito tempo.
Até que todos passaram a me ver com outros olhos depois de eu ter salvo a vida de todos.
Duke surgiu sem convite na cabana naquela noite. Ele era irmão de Jonathan e cresceu com Patt e Dan como melhores amigos, até que se disvirtuou e caiu no vício das drogas. Enquanto os outros mantinham o controle, apenas usando em festas, Duke não foi tão forte e perdeu o controle. Vício era outra coisa que anulava o nosso arbítrio. A decisão de parar é nossa, mas não é fácil nem tão simples quanto a simples vontade. Sentimentos conseguiam ser como um mau vício.
-- Você não devia estar aqui Duncan! Ninguém te convidou. -- Alexia gritou irritada, jogando seus cabelos loiros ondulados por sobre o ombro.
Ela odiava quando as coisas saiam fora dos planos e Duke definitivamente era um furo na sua noite milimetricamente planejada.
-- Relaxa gatinha, eu vou ficar no meu canto quieto e vocês nem vão perceber que eu estou aqui.
Mas isso não aconteceu. Pelo contrário. Duke tinha aparecido na cabana pois estava fugindo de uma gangue de mafiosos a quem devia dinheiro. Ele achara que se escondendo ali ninguém o acharia, mas não tinha percebido que um dos capangas o tinha seguido e chamado toda a horda para encurralar o playboy e arrancar o dinheiro que ele devia. Minutos depois todos estávamos de joelhos no chão com as mãos atrás da nuca e armas apontadas às nossas cabeças.
-- Esse é todo o dinheiro que temos conosco, por favor vão embora! -- Jonathan pediu após esvaziar todos os bolsos e cofres da cabana.
-- Isso não é nem um terço do que o vosso amigo me deve. -- O chefe da gangue murmurou com uma calma precedente e um sorriso de canto indestrutivel.
Ele estava adorando ver todos se borrando de medo, implorando por suas vidas e eu sabia que ele seria capaz de matar qualquer um ali sem pestanejar. As garotas choravam histericamente tremendo enquanto os rapazes tentavam se fazer de fortes e peitar os capangas com armas carregadas. Eu só torcia para nenhum deles se armar em herói e tentar desarmar algum deles, porque aí era certo que um de nós morreria.
-- Eu acho que eu não me fiz bastante claro. -- O líder murmurou sério.
As tatuagens espalhadas por seu corpo davam a ele o ar clichê de qualquer membro de gangue a quem devemos temer.
-- Por favor Gabriel, me dê mais um dias para conseguir o restante do dinheiro. Eu prometo que quitarei todas as dívidas do meu irmão. -- Jonas apelou, olhando Duke com ódio.
-- O que você pensa que isso é? Um banco que aumenta as taxas por cada dia de atraso? Ou uma instituição de caridade? -- indagou retórico e carregado de ironia, olhando para um dos seus capangas e dando autorização para ele eliminar Duke.
-- Você é estúpido. -- Eu me atrevi a acusar, olhando o tal de Gabriel nos olhos e tomando a sua atenção para mim, a desviando assim de dar a ordem final para matar alguém.
-- O que você está fazendo?! -- Patrick arregalou os olhos chocado com a minha ousadia e nervoso que isso pudesse me fazer um alvo rápido. -- Ela não quis dizer isso. -- Ele rapidamente se corrigiu, tentando limpar nossa barra, mas agora as armas apontavam para nós.
Eu continuei olhando firme nos olhos do cabeça da gangue, ainda que por dentro estivesse tremendo e sentindo meu coração na garganta, querendo pular pela minha boca. No entanto eu precisava de continuar. Só assim nós teríamos qualquer chance de sobreviver.
-- Eu quis dizer exatamente isso. Você vai ser muito estúpido se nos matar. Você está acostumado a lidar com galera que ninguém dá a mínima se está vivo ou morto, mas nós não somos essa galera. Nós somos a galera que aparece em todos os posters e anuncios se algo de ruim acontece. Somos as pessoas que todo mundo torce para ser o futuro do país. Somos os jovens que o mundo se importa e se mobiliza para ajudar se desaparecermos. Matar um playboyzinho branco dos subúrbios é um tiro no próprio pé. Mate um de nós e você terá cada um dos moradores dessa cidade indo atrás de você. E acredite, não será a polícia a lidar do nosso assassinato. Isso se tornará um assunto nacional e você terá o FBI te caçando até o inferno até desmantelar toda a sua gangue. Então seja inteligente.
O cômodo se calou num silêncio sufucante enquanto todos aguardavam uma reação de Gabriel. Ele me encarava de olhos semi-cerrados, pensativo, com um leve sorriso que eu achava ser permanente no canto dos seus lábios. Seus capangas o olhavam na espera de um aval para nos aniquilar, enquanto meu namorado me encarava com lágrimas, abanando a cabeça em negativa.
-- A dívida dele passará agora para você. Tem dois dias para pagá-la na totalidade. Agradeçam a amiga de vocês por poderem viver mais um dia. -- Ele decretou, se ajeitando para ir embora e ordenando com um simples meneio de cabeça para que os seus capangas o seguissem.
O alívio após o som dos veículos se afastando foi imediato. Daniel e Iris se abraçaram enquanto Jonathan se colocou em pé e alcançou Duke, o esmurrando sem parar até que Patrick e Alexia precisaram intervir. Eu deixei que minhas pernas perdessem a força e me levassem ao chão enquanto respirava pesadamente, me recuperando da adrenalina.
Assim que Duke foi expulso a pontapés da cabana e todos já estavam mais calmos, Alexia correu até mim e me abraçou com força, agradecendo ininterruptamente por ter salvo sua vida. Um a um todos me agradeceram, menos Patrick.
-- O que você tinha na cabeça? Você podia ter piorado as coisas! – Ele brigou assim que nos vimos sozinhos em nosso quarto.
-- Mas não piorei. -- Suspirei sem força na voz, me jogando sentada na cama para arrancar as botas dos pés.
-- Foi demasiado arriscado Melody.
-- Um risco que eu precisava correr. Porque você não faz que nem os outros e me agradece por ter salvo sua vida? -- questionei sem entender toda essa reação exagerada de Patrick, o olhando sobre o ombro enquanto ele caminhava furioso de um lado para o outro.
-- Porque não cabia a você fazer a salvação! -- gritou, parando na minha frente.
Eu arqueei as sobrancelhas por um segundo após escutar aquelas palavras, para logo em seguida revirar os olhos e fechar a cara numa expressão desagradada.
-- Por favor, não seja um desse caras que acha que precisa ser o herói para a mulher. Eu não sou nenhuma donzela precisando de salvação. -- Retruquei igualmente irritada, me levantando num rompante e cruzando os braços enquanto o encarava de olhos semi-cerrados.
-- Não você não é, Mel. Você não é como nenhuma outra garota e é por isso mesmo que eu não quero perder você. – Patrick diminuiu o tom de voz e relaxou sua postura dura com o intuito de terminar aquela briga estúpida e desmanchar a minha guarda, o que, como é claro, resultou.
-- Bela maneira de reverter essa discussão. Você sempre parece ter as palavras certas para me dizer. -- rebati, descruzando os braços e sorrindo involuntariamente enquanto ele se aproximava para me abraçar.
Fazer as pazes depois de uma briga era uma das melhores coisas de um relacionamento, mas daquela vez nada parecia tirar do meu peito a sensação de haver algo errado entre nós dois que não dissiparia nunca mais. Por algum motivo eu repassava em minha mente nossa discussão e via tantas coisas erradas, coisas que anteriormente eu simplesmente ignorava. Sem eu perceber como, quando ou porquê, algo tinha mudado entre nós aquela noite. Talvez fosse a experiência de quase morte que me tivesse feito abrir os olhos ou então era apenas a adrenalina ainda fazendo efeito em meu corpo. Eu esperava que fosse apenas a última opção e que tudo voltasse ao normal no dia seguinte.
Pelo restante da noite eu não consegui pregar o olho. Em minha mente a única imagem que surgia era de tudo o que tinha acontecido e principalmente o olhar misterioso e o sorriso presunçoso do líder da gangue.
II
Semanas se passaram desde o incidente na cabana. Alexia e Iris tinham virado minhas melhores amigas da noite para o dia. Todo o meu tempo livre elas o passavam comigo, me levando em passeios de garotas, comprando coisas para mim, me fazendo companhia nos corredores da universidade e me levando para todas as festas que eu pudesse comparecer.
Por um tempo isso parecia legal, exatamente tudo o que me faltava para ser completamente feliz, mas nada era a mesma coisa para mim desde aquela noite. Psicologos poderiam dizer que eu estava traumatizada, mas não era o caso. Eu tinha passado por coisas muito piores quando eu morava na zona pobre da cidade. Aquilo não chegava perto de me abalar. Sim, tinha sido um tanto assustador, mas eu não tinha de fato medo da morte.
Eu sei que isso era algo estúpido de se falar. Não era como se eu desejasse a morte ou não quisesse mais viver, mas crescendo no mundo que eu cresci, você aprende a não temer aquilo que se torna um hábito quase diário na sua vida.
Era algo diferente que eu não conseguia explicar na altura, mas que hoje eu consigo claramente ver como o primeiro passo da minha auto-sabotagem.
As crianças corriam pelo jardim da casa enquanto eu estava deitada na grama com um livro nas mãos, tentando fazer alguns exercícios. Eu não precisava de fato fazê-los porque eu não seria avaliada. Eu não era uma universitária oficial e assistir as aulas em nada mudavam o fato de que no fim do ano eu não concluiria cadeiras ou passaria a todas com mérito.
Um dos principais motivos para ter me mudado para os subúrbios foi para conseguir juntar grana para fazer faculdade. O outro grande motivo foi poder fugir da vida miserável que levava. Assim que a oportunidade surgiu depois de vários turnos seguidos trabalhando para sustentar os meus irmãos e os vícios do meu pai, desde os meus 16 anos, eu finalmente consegui juntar uma grana para pegar minhas coisas e ir embora. Eu não queria ter de deixar meus irmãos para trás, mas só daquele jeito eu conseguiria fazer minha vida para poder dar a eles uma melhor. Além de que meu pai estava há mais de seis meses desaparecido sem possibilidades de voltar e meus irmãos tinham a mãe deles para cuidar deles.
Eu ainda matinha contato com Michael que era apenas cinco anos mais novo que eu. Nós eramos muito chegados quando eu vivia nos bairros porque só nos tinhamos um ao outro e se ele era o mínimo de pessoa decente foi porque eu o eduquei.
Todos os dias que eu passava longe dele e de Angela eu dizia a mim mesma que valeria a pena, mas naquele dia eu me culpei por todos os dias que eu não estive presente. A fim de me proteger e de impedir que eu largasse a boa vida que levava, Michael nunca me contou que a madrasta dele tinha ido embora dois anos após a minha partida. Bem como escondeu de mim o fato de que papai tinha voltado depois de quatro anos sumido e levado meu irmão para o caminho das drogas. Tal não foi meu choque quando Michael me ligou pedindo ajuda porque precisava pagar as drogas que tinha usado e não tinha grana com ele.
Sem nem pensar duas vezes eu chamei um uber até a estação de trens e peguei um que me levaria para a zona Oeste da cidade. Voltar a ver aquela paisagem depois de cinco anos me deixava imediatamente com uma sensação de angústia. Caminhar por aqueles bairros onde a qualquer segundo eu poderia ser assaltada ou violentada era assustador, mas se eu demonstrasse medo, os predadores perceberiam. Eu tinha de caminhar como se pertencesse. Peito estufado, cabeça erguida e olhar atento. Mas meu olhar não foi tão atento quanto eu desajava que tivesse sido.
Quando você passa perto de um grupo de homens, seu olhar não deve cruzar com o deles pois isso pode soar como um convite silencioso para coisas que você definitivamente não quer. Você simplesmente segue em frente rápido, mas não rápido demais para parecer que está fugindo. Os passos têm de ser confiantes e largos e em nenhum momento você deve desviar o rosto do seu foco frontal. Isso nunca é 100% garantia que não será seguida ou importunada, mas tem chances de ser ignorada e é nessa fé que você deve se agarrar. Morar nos bairros é viver com essa sensação de perigo toda a vez que você caminha sozinha pelas ruas.
Eu segui em frente por mais umas ruas até finalmente parar no edífício em ruínas e desabitado onde Michael me dissera que estava. Engolindo em seco eu dei o primeiro passo para o interior, subindo os vários andares, olhando cada espaço repleto de viciados se drogando ou apenas dormindo jogados em qualquer canto. Quando cheguei ao último andar minhas esperanças de que meu irmão ainda estivesse ali eram quase nulas, mas foi em um dos quartos que eu o encontrei caído no chão, aninhado e completamente machucado. Corri em seu socorro, mas um homem me intercedeu e me agarrou pelos braços, me jogando contra a parede ao mesmo tempo que agarrava minha bolsa e a arrancava do meu braço. O homem vasculhou o interior, jogando tudo no chão enquanto procurava pela minha carteira e tirava do interior todo o dinheiro que ainda me restava.
-- Isso não chega! – Gritou, chutando a barriga do meu irmão.
-- Foi todo o dinheiro que consegui trazer. – falei com a voz trêmula, me agachando enquanto erguia as mãos numa súplica para ele parar de bater em Michael.
-- Eu quero o meu dinheiro. Ele me deve muito mais que isso pelo que consumiu. Me pague agora! – Exigiu, caminhando até mim em passos largos e me agarrando pelo pescoço.
-- Eu já falei que não tenho o dinheiro. Assim que eu puder eu pago o restante. – Falei a custo, empurrando o homem para me soltar do seu aperto.
-- Não! Se você não pagar agora, nenhum de vocês vai sair daqui vivo. – ameaçou, sacando de uma arma no cós traseiro das suas calças e apontando-a para nós.
-- Baixe a arma Allan. – Escutei uma voz grave e baixa falar atrás de mim.
Meus olhos se arregalaram de leve ao reconhecer aquele rosto que por tantas noites atormentou meus sonhos. Era claro que ele era o novo rei do crime da redondeza e aquele antro de drogas só podia ser mais uma de suas tantas fontes de rendimento.
-- Não se meta nos meus negócios que eu não me meto nos seus. – o traficante falou, deitando por terra minha teoria.
-- Vai mesmo querer me encarar? Percebe que está em desvantagem numérica? – retrucou no seu típico e assustador tom calmo, apontando para os homens que o rodeavam que imediatamente exibiram as armas escondidas em coldres de tronco ou cintura. -- Quanto eles te devem? – questionou, o que me fez franzir o cenho.
-- 300 pratas.
-- 300 pratas? – repetiu com um sobrolho erguido desconfiado.
-- O pai dele já me devia dinheiro. – Explicou, baixando a arma ao notar que de fato estava em desvantagem e talvez ainda pudesse sair dali no lucro de qualquer das formas.
-- Tome 500. Pelo incomodo. – Gabriel sacou de um masso grosso de notas enrolado em um elástico, selecionando algumas e as entregando para Allan.
-- Eu não preciso do seu dinheiro. – Falei imediatamente antes do traficante aceitar o que lhe era pago.
-- Você com certeza precisa. – Anuiu com um aceno de cabeça e um sorriso debochado.
-- Dever para você soa pior do que dever para um traficante. – respondi séria, ainda que eu não tivesse tantas certezas assim do que falava.
-- Então certifique-se que me paga a tempo. – retrucou com um sorriso de canto. – Nos vemos por aí.
Assim como surgiu, Gabriel se foi com os seus capangas. Meus olhos arderam com lágrimas de nervosismo enquanto o traficante sorria feliz com a grana que tinha ganhado. Agora eu devia pelo menos 500 dólares para um mafioso e eu não sabia onde iria arrumar essa grana em tão pouco tempo. Na verdade eu tinha uma ideia e ainda que contrariada era a minha única opção se quisesse continuar viva.
Com todo o cuidado eu levei meu irmão de volta para casa e cuidei de suas feridas. Meu pai não estava em casa e eu agradecia não ter de reencontrá-lo. Angela brincava no pátio com algumas amiguinhas da vizinhança e assim que me viu veio correndo para os meus braços. Meu coração morreu um pouquinho por reencontrá-la. Aquela noite eu cuidei dos dois até precisar regressar a casa. Chamar os subúrbios de casa parecia tão errado naquele momento. Tudo o que menos queria era regressar, ainda que tudo o que mais desejasse fosse sumir dali. Apenas parti depois de Angela estar dormindo, não sem antes Michael segurar minha mão e me olhar com o queixo tremido.
-- Me perdoa por ter desiludido você. – um nó se formou em minha garganta e eu puxei meu irmão para um abraço não muito apertado para não o machucar ainda mais.
-- Me prometa que vai parar de se drogar. Angela precisa de você. – murmurei perto do seu ouvido, beijando seu rosto e partindo o abraço. -- E por favor, nunca mais minta para mim ou esconda o que está acontecendo. Qualquer coisa que precisar, me diga e eu virei correndo. – Falei segurando seu rosto e olhando em seus olhos.
-- É exatamente por isso que eu escondi a verdade de você. Você não devia voltar para cá nunca mais. – argumentou e grossas lágrimas cairam por meu rosto. Por tantos anos eu o protegi e agora tudo o que ele queria era retribuir. -- Agora vá antes que ele volte. – ainda que contrariada em deixá-los para trás, eu fui embora.
III
Depois de mais uma madrugada mal dormida e uma manhã passada correndo e sem prestar atenção em nada na universidade porque estava demasiado preocupada com os meus irmãos, Patrick insistiu para que fosse com ele em uma pool party que estava decorrendo na casa de Jonathan. Ele percebia que havia algo de errado comigo, mas não insistiu para que eu contasse nada para ele. Aos poucos e poucos nós estávamos nos afastando cada vez mais e eu sentia que era inevitável e irreversível. Ele conhecia a Melody dos subúrbios e eu não sei o que ele acharia da Melody dos bairros. Meu passado era demasiado tenebroso para partilhar com ele e eu não me sentia nem um pouco confiante de fazê-lo. De alguma forma eu sentia que ele podia me julgar ou me considerar demasiado quebrada para querer continuar comigo. Enquanto ele me visse como a doce, reservada e perfeita Melody, eu nunca me sentiria confortável sendo eu mesma do lado dele.
Ainda que contrariada, eu aceitei ir nessa festa. Eu teria aquela tarde livre e talvez com algum esforço conseguisse ir embora mais cedo para levar a grana que devia para Gabriel antes do jantar. Eu sentava em uma espreguiçadeira do lado da piscina quando o vi chegar na festa. Meu coração pulou na garganta no mesmo instante e um frio percorreu o meu corpo. Gabriel estava sozinho, desacompanhado dos seus campangas e exibia um sorriso alegre no rosto, cumprimentando Duke que o tinha vindo receber.
-- Que merda aquele bandido está fazendo aqui? – Patrick questionou irritado quando viu o mesmo que eu via e então encarou Jonathan com interrogação e exigência de explicação.
-- Duke achou que seria bom convidar Gabriel para amenizar o clima que ficou depois do dia na cabana.
-- E você concordou? Você realmente trouxe o cara que quase nos matou para dentro de sua casa?
-- Se ele tentar de novo, usaremos a Mel como escudo. – Daniel brincou se aproximando de mim sorrateiro.
Eu estava demasiado distraída analisando Gabriel com atenção para perceber as intenções do rapaz. Foi tarde demais para mim quando ele me pegou no colo e me jogou na piscina de roupa. Soltei um grito alto que chamou a atenção de todo mundo e afundei na água por alguns segundos, lutando para rapidamente vir à superfície.
-- SEU IDIOTA! – Gritei furiosa, batendo com a mão na água e fuzilando os rapazes com os olhos.
Eles gargalhavam divertidamente. Patrick esticou a mão para me ajudar a sair da água, tentando ao máximo conter os risos ao prender os lábios entre os dentes. Semi-cerrei meus olhos para ele e sentei na borda da piscina, espremendo meu cabelo e roupas. Eu não tinha trazido nenhuma roupa extra e muito menos um biquini ou maiô, então eu simplesmente teria de ir para casa trocar de roupa. Aquela seria uma ótima desculpa para ir embora mais cedo e assim que explanei meu plano, Alexia choramingou em negativa, falando que pegaria uma roupa sua que tinha ali na casa para eu vestir. Após muita insistência, acabei aceitando a proposta dela e a acompanhei para o interior da casa. Assim que ela me deu um vestido veranil seu e uma calcinha, eu me troquei no banheiro do quarto de Jonathan.
A porta estava entre-aberta e eu me fitava no espelho enquanto terminava de retirar minhas roupas molhadas. Foi pelo reflexo que eu vi aqueles olhos negros me fitando com minúcia. Imediatamente cacei uma toalha minúscula e cobri meu corpo, me virando de frente para fechar a porta. Ainda o escutei pedir desculpas, mas eu não tinha tantas certezas se ele realmente falava com sinceridade. Algo me dizia que sua presença ali não era casual e meu peito batia mais rápido pensando na possibilidade de ele estar me encurralando ali para me fazer medo e perguntar sobre o dinheiro. Terminei de me vestir o mais depressa que pude e saí do banheiro apressada, ainda o encontrando do lado de fora do quarto, me esperando.
-- Eu vou pagar tudo o que devo, eu juro. – Me apressei a dizer, respirando com dificuldade.
-- Eu sei. Não vim aqui te cobrar. O banheiro do corredor estava lotado. – Se explicou com um sorriso brando, erguendo as mãos como bandeira branca. – Seu irmão está melhor?
-- Você conhece Michael? – Questionei surpresa. Talvez fosse por já conhecê-lo que ele se ofereceu para quitar a dívida dele.
-- Todo mundo dos bairros se conhece. – Elucidou com um encolher de ombros, me olhando como se ele de fato me conhecesse.
Eu sei que fazia apenas cinco anos que eu tinha saído dos bairros e que eu nunca fiz questão de fazer amizades com ninguém no tempo que lá estive, mas eu não conhecia Gabriel como ele afirmava.
-- Eu não lembro de você. – respondi com o cenho franzido e ele soltou uma risada breve e baixou o rosto.
-- Você sempre caminhava sem olhar para ninguém, como se não pertencesse. Aqui você olha para todos, mas você não se encaixa nesse mundo. – acusou e eu fechei a cara numa careta irritada, cruzando os braços defensiva.
-- Você não sabe nada sobre mim.
-- Sei o suficiente para saber que pertencemos ao mesmo mundo. – murmurou, me olhando daquele mesmo jeito que ele me olhou na noite da cabana. Olhar misterioso e profundo, como se lesse a minha alma.
-- Uau, essa cantada funciona com alguém? – indaguei nervosa, tentando quebrar o contato visual entre nós dois.
Gabriel enrugou o cenho numa carranca irritada e se aproximou de mim em duas passadas, me olhando pelo canto dos olhos.
-- Só porque agora vive nos subúrbios isso não te faz melhor do que eu.
-- Não, mas pelo menos não sou bandida. Estou lutando por um futuro melhor para mim e para a minha família. – retaliei.
É, eu definitivamente não devia ter amor à vida. Eu estava peitando um bandido, chefe de uma gangue que poderia me caçar e acabar comigo em três tempos e eu não poderia fazer nada. Porque ao contrário do discurso que dei para proteger o meu namorado e os seus amigos, eu não pertencia aos subúrbios como tinha falado. Se eu morresse, ninguém iria se importar. Não por muito tempo.
-- Sua família lá na miséria e você aqui. – torceu os cantos dos lábios para baixo e abanou a cabeça positiva e ironicamente.
-- Foi um sacrifício necessário. – me defendi, unindo os sobrolhos.
-- Sacrifício apenas para eles.
Gabriel estava querendo me fazer sentir mal por estar ali nos subúrbios enquanto meus irmãos lutavam para sobreviver todos os dias e ele estava conseguindo. Meus olhos ardiam por lágrimas que ameaçavam surgir e eu baixei o rosto e descruzei os braços cansada de brigar.
-- O que você quer de mim? Me humilhar? Tentar diminuir os meus esforços só porque eu estou me dando bem? – questionei, o olhando com os olhos embaciados e tentando entender o que ele de fato queria de mim.
Gabriel desfez a pose durona de segundos atrás. De alguma forma eu também tinha ferido o seu ego e agora ele parecia arrependido de me ter peitado. Ele agia de fato como se me conhecesse e não como se fossemos apenas dois estranhos e aquilo era confuso para mim.
-- Só quero abrir seus olhos, Melody. Você nunca irá pertencer a esse mundo, não importa o quanto tente. – murmurou enquanto se afastava lentamente de costas até a porta do quarto.
-- Nem nunca irei pertencer ao seu mundo também. – decretei sentindo uma lágrima cair pelo meu rosto. --Talvez eu não pertença a lado nenhum. É tão errado assim eu querer uma vida melhor para mim? – perguntei, genuinamente interessada em saber se eu estava tão errada de estar ali.
-- Não. – negou parado de costas para mim.
Só então ele abriu a porta e saiu, me deixando ali sozinha com os meus pensamentos e a minha culpa. Patrick entrou no quarto logo em seguida, me vendo chorar preocupado. Ele tinha se cruzado com Gabriel e ver-me naquele estado deu a ele uma ideia errada do que tinha acontecido. Sem nem me deixar explicar, Patrick correu atrás de Gabriel e eu corri atrás dos dois, tentando evitar uma briga, sem sucesso. Quando cheguei ao exterior, os dois já estavam caindo no soco enquanto Jona e Dan tentavam separá-los e afastar o amigo do marginal.
-- Você cometeu um erro enorme, playboy. – Gabriel falou, cuspindo o sangue em sua boca.
-- Nunca mais chegue perto da minha namorada. Eu não me importo quem você é, se você ousar encostar em Melody de novo eu acabo com sua raça! – Patrick ameaçou, apontando o dedo para o mafioso e fazendo todos petreficarem de medo da reação dele.
-- PARE COM ISSO PATRICK! – Eu exigi irritada, o empurrando para longe de Gabriel e me virando para ele. – Vá embora e nunca mais volte. Você não pertence aqui. – Falei determinada e Gabriel riu sarcástico, abanando a cabeça em negativa e indo embora por fim.
IV
Aquela noite eu e Patrick discutimos o tempo todo. Eu contara para ele praticamente tudo sobre o que tinha se passado. Desde minha relação complicada com o meu pai drogado, sobre ter ido resgatar meu irmão no dia anterior e sobre Gabriel ter emprestado dinheiro para pagar as dívidas do meu irmão e do meu pai com o traficante. Os dois últimos temas deixaram Patt furioso. Ele não compreendia porque não tinha pedido dinheiro para ele nem porque não o chamei para me levar aos bairros e me ajudar com o meu irmão. Quando tentei explicar que sua aparência de riquinho acabaria por nos trazer mais problemas, foi o estopim para a nossa briga. Furioso ele sacou da sua carteira, tirou algumas notas e jogou no meu colo, falando que ele não seria problema para mim e que eu devia pagar logo Gabriel se não queria acabar morta.
Eu odiava o seu complexo de herói, me tratando como se eu fosse indefesa e precisasse de sua proteção. Já ele odiava não poder ser o meu defensor de todas as horas e principalmente odiava que eu fosse tão auto-suficiente e independente.
No dia seguinte eu peguei o primeiro trem que saiu aquela manhã rumo ao zona oeste. Passei primeiro por casa para levar Angela para a escolinha. Assim que Mike me viu, olhou por sobre o ombro preocupado e logo eu entendi que nosso pai estava em casa. Ele veio em minha direção apressado e juntos caminhamos os três até a escola municipal onde nossa irmã estudava. Mike me contou que tinha voltado para o seu emprego de zelador na escola e que iria fazer todos os esforços para largar das drogas, mas não seria algo fácil. Sua maior motivação era não me desiludir novamente e estar saudável para cuidar de Angela. Ele sabia como essa última tarefa era importante para mim.
Acariciei o seu rosto emocionada e o abracei forte antes de seguir caminho para o bar onde a gangue de Gabriel costumava frequentar. Michael ficou nervoso por eu ir sozinha, mas eu sorri para ele e garanti que estaria segura. Novamente ele me pediu desculpas pelo problema que me causou e então entrou no serviço.
O bairro onde o bar ficava era um dos piores da zona oeste. Era exatamente o mesmo pelo qual trilhei caminho dois dias antes para resgatar meu irmão. Assim que parei em frente ao Del Inferno meu corpo estremeceu e minhas pernas fraquejaram. Engoli em seco e decidida marchei para o interior.
Por ser demasiado cedo, o bar estava praticamente vazio. Apenas alguns bêbados dormindo em cantos estratégicos e um funcionário limpando o recinto. Assim que notou minha presença, o homem me olhou de alto abaixo até que perguntei se Gabriel estava. Após alguns segundos de silêncio, o homem se ausentou por um corredor e sumiu por alguns minutos. Nervosa eu esperei pelo seu retorno, olhando sempre por sobre o ombro para não ser pega de surpresa por ninguém. Eu só queria logo pagar a dívida e ir embora dali para sempre.
-- Você veio. – Escutei a voz de Gabriel soar rouca atrás de mim, quase como se estivesse surpreso. Não compreendi aquilo direito, mas decidi ignorar.
Me virei rapidamente de frente para si e engoli em seco, apertando a bolsa em minhas mãos de forma nervosa. Abri a mesma e retirei do interior um envelope com o dinheiro que precisava devolver e Gabriel olhou das notas para mim com desdém e me mandou seguí-lo. Eu não queria fazê-lo, eu só queria que ele pegasse o dinheiro e me deixasse ir embora.
-- Venha, eu não mordo você. – Ele brincou com um sorriso de canto e contrariada eu o segui.
Passamos por um banheiro público unisexo e viramos em mais um corredor onde haviam inúmeras portas. A última era a do seu escritório e eu o segui. Após eu entrar, ele fechou a porta e caminhou até um cofre e o abriu. No interior tinha várias armas e inúmeros massos de notas. Gabriel pegou o dinheiro que eu ainda segurava e jogou no interior com descaso, fechando o cofre rapidamente. O seu silêncio foi como uma brecha que eu encontrei para ir embora, mas antes que eu pudesse sair, ele bloqueou a porta com a sua mão, a impedindo de abrir. Meu coração parou de bater por alguns milésimos de segundo. Eu sentia seu corpo perto do meu, me fazendo sentir todos os músculos tensos com a proximidade. Ergui o rosto lentamente para olhar o seu e engoli em seco. Gabriel fechou a cara e respirou pesadamente, se afastando de mim imediatamente e se encostando na sua mesa de negócios.
-- Você tem medo de mim – murmurou um tanto furioso, mas não sabia se eu era de fato a causadora daquele sentimento.
-- Eu só não quero estar aqui. – Decretei firmemente, relaxando o meu corpo no mesmo instante.
Eu definitivamente não estava sentindo medo de Gabriel, contudo eu não conseguia decifrar ao certo o que estava sentindo com a sua presença. Apenas sabia que era algo que eu não conseguia controlar.
Gabriel suspirou com a minha resposta e demonstrou alguma frustração ao coçar a nuca e manter seu rosto e troncos baixos. Ele parecia querer dizer alguma coisa, mas estava em algum dilema interno. O vendo naquele estado eu nunca diria que ele era o líder de uma gangue mafiosa dos bairros. Ele parecia tudo menos alguém perigoso no momento. Pelo contrário, ele parecia vulnerável. Eu já tinha olhado nos olhos de monstros de verdade e Gabriel não era um.
-- Desculpe se ontem arrumei confusão com o seu namorado. – Por fim voltou a falar e a me encarar e eu franzi o cenho.
-- Patrick tem complexo de ser meu salvador. Ele achou que eu estivesse com problemas ou que você tivesse feito alguma coisa comigo. – expliquei, encolhendo os ombros e revirando os olhos pela atitude do meu namorado.
-- Você não precisa de um herói. – Gabriel negou firmemente, soltando uma risada sarcástica por aquela ideia e eu assenti.
-- Não, eu não preciso.
-- E eu nunca faria mal a você. – completou me olhando com seu mar negro de um modo que conseguia roubar meu raciocínio.
-- Nem se eu demorasse a pagar? – questionei tentando parecer jocosa.
-- Você não é caloteira. – atalhou com um sorriso
-- Mas isso não responde minha pergunta. – retruquei, cruzando os braços e esperando uma resposta concreta e séria.
Gabriel revirou os olhos e tornou a soltar o ar pesadamente. Ele parecia sempre fazer isso quando precisava dizer algo que o fazia pensar duas vezes antes de falar. O analisei atentamente e o vi descruzar as pernas e empurrar o corpo para a frente com as mãos apoiadas na mesa. Gabriel caminhou novamente em minha direção, anulando aos poucos e lentamente o espaço entre nós e meu corpo voltou a ficar tenso.
-- Você nunca olhou para os lados quando morava aqui. Todas as vezes eu via você levando seu irmão de um lado para o outro sem nunca olhar para as outras pessoas. Você achou que assim ninguém notaria você, mas eu notei. Todas as vezes que eu te via eu me perguntava o que seus olhos tentavam esconder. – ele discursou enquanto caminhava até mim, me olhando de uma forma indecifrável.
Me ver pelos seus olhos me fazia lembrar porque eu sempre me fechei para o mundo quando morava nos bairros. Essa recordação me fez engolir em seco e baixar o rosto, mas rapidamente o ergui novamente e me forcei a focar em outra coisa.
-- Isso continua não respondendo minha pergunta. – murmurei em resposta, quase perdendo a força na voz e no corpo quando notei que ele estava a apenas dois passos de distância de mim.
-- O que você acha? Acha que eu sou tão ruim assim? – perguntou, apoiando sua mão na parede e se mantendo à distância de um braço do meu corpo, porque eu agora definitivamente estava colada à porta.
-- Acho que você é capaz de tudo o que quiser. Eu vejo a morte em seus olhos. – respondi com sinceridade, olhando em suas orbes sem conseguir piscar os meus cilios.
-- E você tem medo? – tornou a questionar. Saber minha resposta sincera parecia ser importante para ele.
-- A morte já foi minha companheira, eu não tenho medo dela. Ou de você. – respondi sentindo cada vez mais dificuldades em respirar quando o percebi se movendo sobre mim quase imperceptivelmente.
-- Você não pertence a este mundo, Melody. Você merece o melhor e os subúrbios estão te oferecendo isso. Eu estava errado em dizer que você não se encaixava lá. – suas palavras eram sinceras e havia um certo pesar em sua expressão de cenho enrugado.
-- Não, você não estava. Eu não me encaixo em lado nenhum, mas pelo menos nos subúrbios eu me sinto segura. – confessei, descaindo os ombros.
-- Eu nunca deixaria que ninguém aqui fizesse algum mal a você. – murmurou e suas palavras me fizeram soltar uma risada irônica. Se ele ao menos soubesse...
-- O que você quer de mim? – eu indaguei cada vez mais confusa com as verdadeiras intenções de Gabriel.
-- Será que não entende depois de tudo? Você, eu quero você Melody. – confessou, aproximando seu rosto do meu com o intuito de me beijar, mas imediatamente eu espalmei minhas mãos em seu peito e o travei de continuar.
-- Isso é errado. – falei num tom tão baixo que se não fosse nossa proximidade eu duvidava que ele escutasse.
-- Porquê? Porque eu não sou bom o bastante para você? Porque eu nunca te darei o futuro que você merece? – Gabriel proferiu as questões com raiva e se afastou novamente em passadas largas enquanto eu comprimia os olhos num misto de alívio e saudade.
Eu não sabia porque estava me sentindo assim. Eu mal o conhecia e o pouco que conhecia era o suficiente para me fazer fugir a sete pés. Todavia, por algum motivo que eu não conseguia compreender, tudo tinha mudado em tão pouco tempo. A versão de si que ele me mostrava deitava por terra tudo aquilo que eu achava sobre ele e um fato era inegável. Ele era hipnotisante.
-- Porque eu não sei se conseguirei me controlar. – confessei assim que abri os olhos e o encarei com lágrimas.
O silêncio que se seguiu foi sufucante. Gabriel me encarou com espanto e só então ele se moveu tão rápido que foi impossível eu reagir quando ele agarrou o meu rosto e colou nossos lábios num beijo vibrante e apaixonado. Por alguns minutos eu correspondi. Aquilo parecia a coisa mais acertada no momento, até que deixou de ser. Eu não era aquela pessoa. Eu não era descontrolada ou muito menos traíra. Eu tinha um namorado e quer quisesse quer não, Gabriel não era bom o bastante para mim, como ele próprio o dissera em uma pergunta retórica.
Assim que a razão voltou a mim, eu empurrei Gabriel com força e abri a porta do seu escritório apressada, me escapando daquele bar o mais velozmente que podia.
V
Ponto De Vista: GABRIEL
A vida é uma ironia quando nos faz acreditar no livre arbítrio, mas nos tira as primeiras escolhas que definem toda a nossa vida. Desde o momento em que nascemos nosso futuro é escolhido para nós. Nosso único trabalho é lutar contra ou se deixar vencer.
Para mim a vida nunca foi fácil. Minha mãe era uma toxicodependente que vendia o corpo por drogas. Por conta disso deu à luz inúmeros filhos e perdeu outros tantos; eu já lhe perdera a conta. Não sou o mais velho de todos nem o mais novo, mas tive de crescer rápido para me tornar responsável por muitos. Ainda que isso nunca durasse tanto uma vez que minha mãe selecionava as crianças a dedo.
Se viessem com defeito por conta das drogas ou outros problemas, ela os jogava em contentores de lixo ou abandonava em qualquer matagal para morrerem. Se fossem bebés muito bonitos ela os vendia para casais ricos e os que sobravam ela jogava para os mais velhos criarem.
Toda essa transação tóxica e desinteressada dela durou apenas até o meu 13º aniversário quando ela por fim sofreu uma overdose deixando os seus 5 filhos sozinhos no mundo. Cinco dos que ficaram com ela. Ao mesmo tempo que sua morte foi um alívio para mim e Joaquin, os mais novos dos irmãos, foi igualmente um pesadelo. Quincito tinha apenas três e precisava de cuidados que nenhum dos nossos outros três irmãos mais velhos queriam dar. Um deles era viciado como nossa mãe. O outro andava com gangues e foi pego roubando uma loja, acabando seus dias na cadeia. E o terceiro não queria ter nada a ver com a gente e botou o pé na estrada para nunca mais voltar.
Coube a mim cuidar de Joaquin, mas não foi uma tarefa fácil. Eu tinha de me dividir em garantir que ele estava alimentado, continuar frequentando o ensino obrigatório e fingir que eu tinha um adulto responsável cuidando de nós dois. Eventualmente o corpo estudantil descobriu a verdade através de outros pais e vizinhos e acabamos caindo no Sistema Juvenil e essa foi a última vez que vi meu irmão mais novo. Por ser o mais velho eu nunca fui recebido em casa temporárias e muito menos fui adotado, já Quincito teve mais sorte.
Quando completei 18 anos eu já tinha aprendido tudo o que precisava para sobreviver no meu mundo. Eu tinha poucas opções. Meus estudos eram fracos, eu nunca conseguiria fazer um futuro para mim. Por conta da minha aparência eu também nunca seria confiado 100% e tudo o que me restava era uma vida de bandidagem. Mas eu era inteligente, eu tinha certezas daquilo que eu não queria para a minha vida e isso era me meter com tráfico de qualquer estirpe ou roubos mesquinhos.
Dinheiro sempre seria a raiz e a solução de todos os problemas então aos poucos e poucos eu montei um negócio com outros parceiros do Sistema e construí uma reputação na zona Oeste. Com esforço, dedicação, carisma e honestidade eu me tornei um dos líderes de gangue de bairro mais poderoso e respeitado. Eu emprestava dinheiro a qualquer pessoa que precisasse, fazia lavagens também para outras gangues e mantinha a paz entre os meus mais fieis clientes. Porém se alguém demorasse a pagar, uma de duas coisas poderia acontecer. Ou tomaríamos tudo o que a pessoa possuía ou o faríamos de exemplo para outros caloteiros. Em filmes de mafiosos chamavam ao meu tipo de "profissão" de agiotas, mas eu preferia um termo menos formal e ameaçador, então todos na comunidade me chamavam de El Banquero.
Atualmente, com a expansão do negócio, eu não tratava mais pessoalmente de todos os empréstimos nem de todas as cobranças, mas fazia questão de participar das mais importantes. Quando um riquinho dos subúrbios veio ao meu encontro pedir grana emprestada para comprar drogas, eu fiz do seu empréstimo uma aposta. A ideia de brincar com o playboyzinho que se achava superior e o assustar era divertida então quando a oportunidade surgiu eu juntei uma trupe para o caçar mesmo que o prazo de pagamento não tivesse de fato terminado. Mas disso ele não sabia.
Aquele foi o dia em que uma simples brincadeira me levou até ela. Melody, a garota que me fez passar muitas noites em claro quando ainda morava nos bairros. Depois de quatro anos tentando começar o meu pequeno império por entre um grupo espécifico de pessoas, eu finalmente consegui botar o meu nome na boca do povo. Ainda era algo bastante precário para o que hoje eu tenho, mas já me permitia firmar um ponto fixo onde as pessoas vinham ao meu encontro, ao invés de ser eu correndo atrás dos clientes.
Melody todos os dias passava por aquela mesma rua levando e buscando seu irmão mais novo na escola. Quatro vezes ao dia por três anos eu me habituei a vê-la passar enquanto eu me escondia nos becos esperando o próximo cliente. Eu percebia seu corpo se arrastar cada dia mais, como se suas pernas afundassem na terra batida. Seu rosto mantinha a mesma expressão sem emoção de olhos perdidos, como se ela não pudesse ver nada nem ninguém. Eu sabia que a vida dela não era fácil. A vida de ninguém ali era fácil, mas de alguma forma ela parecia estar desistindo enquanto todos nós lutávamos para ver mais um dia.
Quando ela parou de passar por aquela rua eu temi o pior. Foi inevitável para mim não procurar por ela, saber o que tinha acontecido. O alívio foi grande quando soube que ela estava bem, mas a tristeza foi da mesma proporção quando descobri que ela poderia nunca mais voltar. Era um misto controverso de sentimentos que eu tentei enterrar em mim por todo esse tempo.
Naquela noite ver os riquinhos de joelhos implorando por suas vidas seria um sonho virando realidade. Em minha mente eu pensava que eles teriam um pequeno gostinho do que os moradores da zona oeste passavam todos os dias. Quando invadimos à cabana onde Duke tinha se escondido e eu a reconheci, quis desistir de tudo e vir embora, mas eu tinha uma reputação e uma aposta para manter. Cinco anos se passaram e ela não tinha mudado quase nada. O mesmo ar doce e inocente, mas seu olhar agora tinha vida. Me custou vê-la de joelhos, rendida e talvez amedrontada. Ela não o demonstrava como os outros, provavelmente porque ela era da zona oeste como eu e estava acostumada com aquele tipo de violência.
Suas palavras para limpar a barra dos seus amiguinhos foram imprudentes. Se eu fosse qualquer outro bandido ela podia ter arriscado sua própria vida para proteger os riquinhos, mas ainda assim eu admirei sua coragem. Depois daquele reencontro, eu voltei a passar as noites em claro pensando nela. Em minha mente eu tentava arrumar mil motivos para reencontrá-la, mas nenhum era bom suficiente. Eu achei que aquela tinha sido a última vez que a reveria. Ela levava uma boa vida nos subúrbios, uma vida que nenhum de nós tinha conseguido. Mel tinha lutado contra o seu destino e mostrado ao livre arbítrio que quem decidia sua própria vida era ela.
Então, tal não foi meu espanto quando a revi, caminhando do mesmo jeito que costumava caminhar pelos bairros. Eu jurava que era uma miragem, mas eu não estava tão bêbedo assim para ser enganado por meus sentidos. Preocupado eu decidi segui-la e foi o melhor que pude fazer no momento. Aquela decisão me levou ao que aconteceu dois dias depois no meu escritório, algo que há muito eu desejava e nunca achei que fosse possível. Pela primeira vez na vida, o destino sorriu para mim e continuou sorrindo, ainda que por circunstâncias menos felizes.
Aquela tarde eu estava revendo a lista de caloteiros quando um nome saltou aos meus olhos, Joseph Rivera, pai de Melody. A data de coleta tinha passado e a intervenção seria àquela mesma tarde, em poucos minutos. Mais rápido que pude, corri para fora do bar e montei minha moto, dirigindo até a morada onde a família de Mel morava. Meus capangas já tinham arrombado a porta e quando eu entrei Michael estava caído no chão convulsionando.
-- O que aconteceu? – Perguntei num tom alterado.
-- Arrombamos a porta quando vimos Joseph tentar fugir pelas traseiras e o encontramos assim. – Um dos meus homens respondeu enquanto eu me aproximava do rapaz e segurava seu rosto para evitar que batesse com a cabeça no chão.
-- Michael! Mike? – O chamei, mas ele não conseguia me responder.
-- Eu acho que ele está tendo um ataque epilético. Vi muito disso acontecer em galera que estava largando as drogas. – Um dos meus capangas informou e eu o olhei sério.
-- Então está esperando o quê? Faça algo para o ajudar! – Ordenei e rapidamente ele se aprontou ao pé do rapaz. – Onde está Joseph? – Questionei para os outros.
-- Ele fugiu.
-- Cacem-no e tragam-no até mim vivo. – Ordenei e eles assentiram.
-- Ok, chefe.
Assim que os três sairam, eu peguei meu celular e liguei para Duke pedindo o número de Melody. Eu precisava avisar a ela do que estava acontecendo e não confiava no riquinho para passar o recado. Ele me passou o número sem levantar questões e quando Mel por fim atendeu a chamada após vários toques, eu engoli em seco.
-- Mel? Sou eu Gabriel. Não desligue! É sobre o seu irmão.
VI
Eu tinha arruinado tudo. Não importava que aquele beijo tivesse sido roubado. Eu o quis no mais íntimo do meu ser e me odiava por isso. Me odiava por ter traído Patrick, por não ter impedido antes que aquilo acontecesse e principalmente me odiava por não conseguir controlar o que sentia. Eu não queria me apaixonar por um marginal, um criminoso, um cara que pertencia ao inferno do qual eu queria escapar! Eu estava me auto-sabotando e agora não tinha mais volta. Eu nunca conseguiria fugir do meu passado por mais que tentasse e eu sabia que não merecia estar no paraíso quando as pessoas mais importantes da minha vida ficavam para trás.
Minha cabeça girava e grossas lágrimas caiam por meus olhos. Eu não sabia como iria encarar Patrick depois do que tinha acontecido, mas eu não poderia fugir dele para sempre. Assim que desci do terminal, minhas mãos caçaram meu celular no bolso traseiro das calças e meus dedos tremiam enquanto eu buscava pelo contato de Patt. Eu só esperava que ele me perdoasse e me aceitasse exatamente como eu sou. Após longos minutos de espera, Patt surgiu com o seu carro e me levou até um Dinner não muito longe da estação. Sentamos de frente um para o outro e foi inevitável não chorar quando comecei a contar tudo o que eu tinha escondido dele. Patrick me escutou calado, mas suas expressões diziam muito mais que palavras. Eu vi espanto, raiva, nojo e pena em seu rosto e todas elas me machucavam profundamente. Quando terminei de falar o silêncio permaneceu entre nós. Ele estava processando tudo o que tinha dito e eu sabia que não seria fácil para ele aceitar toda a minha bagagem, mas eu esperava que ele me amasse o bastante para pelo menos tentar.
-- Eu lamento muito por tudo o que você passou, mas eu...
-- Patt por favor pensa direito antes de tomar uma decisão. – O interrompi quando ele por fim tomou coragem para dizer algo, ainda que seu rosto não me encarasse.
-- Eu não posso, é demais para mim Melody. O que você precisa de mim eu não posso te dar. – Argumentou me encarando com um olhar triste e de cenho franzido.
-- Mas que merda Patrick! Não é você que vive querendo ser meu herói, meu salvador? Agora o fardo é demasiado grande para você lutar por mim? – Briguei incrédula, me forçando a limpar as lágrimas que teimavam em escorrer.
-- Me perdoe Mel.
-- Não, tudo bem. Eu já esperava. – Falei não querendo mais ficar ali na sua frente e me erguendo do combinado.
-- Mel, espere...
-- Adeus Patrick. – Decretei, não dando mais chances a ele de continuar aquela conversa.
-- Então é isso? Vai terminar comigo? – Questionou e eu me travei de continuar andando para olhá-lo séria.
-- Você decidiu isso por nós.
Meu mundo perfeito estava desmoronando aos poucos e não havia nada que eu pudesse fazer para impedir. Eu só podia me deixar levar pela correnteza e esperar que no fim de tudo eu conseguisse sobreviver e chegar viva a porto seguro.
Estar rodeada de crianças sempre foi minha alegria, minha distração, mas naquele momento eu estava demasiado abatida e submersa em meus problemas para conseguir dar a eles a devida a atenção. Apesar de pequenos, as crianças eram perceptivas e inteligentes e tentaram me animar de todos os modos possíveis. As meninas cuidavam de mim penteando meus cabelos, fazendo desenhos em meu corpo e me colocando bonita com seus produtos de beleza infantil. Já os rapazes tentavam me distrair com jogos ou histórias mirabolantes inventadas por eles. Por um tempo isso resultou, até que a noite chegou, a casa ficou silenciosa e eu me vi novamente sozinha com os meus pensamentos.
Não seria um exagero dizer que eu chorei a noite inteira e que isso despertou a atenção do casal, assim que ambos chegaram em casa de mais uma madrugada de trabalho. Os dois tentaram me consolar e me fazer desabafar, mas o pouco que disse foi o suficiente para eles saberem que eu precisava de um tempo. Ainda que contrariada eu aceitei essas pequenas férias. Talvez fosse bom mesmo eu sair daquela cidade, mas logo me dei conta que estaria fugindo de novo. Aquele era o meu maior defeito. Quando as coisas ficavam ruins demais eu não ficava para as resolver, eu simplesmente sumia e esperava que os problemas não me seguissem. Mas se eu aprendi alguma coisa nessas últimas semanas é que não importa o quanto eu corra, o passado sempre me alcança.
Quando eu recebi aquela ligação na tarde do dia seguinte eu compreendi que era tempo de voltar. Eu estava apavorada, mas eu precisava deixar os meus medos de lado e tomar responsabilidade pelas únicas pessoas que não mereciam meu distanciamento. Entrei correndo no bar levemente lotado de homens, desnorteada e olhando ao redor em busca de Gabriel ou Michael. Quando tentei passar pelo corredor em direção ao escritório do líder, um brutamontes me segurou pela cintura enquanto eu me debatia e gritava para ele me soltar.
-- Deixem-na passar! – Gabriel vociferou a ordem para se fazer ouvir e para demonstrar igualmente sua fúria pelo modo como eu era tratada.
-- Onde está o meu irmão? – questionei caminhando a passos largos pelo corredor até Gabriel e ele me apontou para uma porta de onde ele tinha saído.
Assim que entrei vi Mike deitado em um sofá, dormindo. Me agachei ao seu lado e segurei sua mão na minha, acariciando seu rosto com a outra mão. Aos poucos Michael acordou e me fitou confuso.
-- O que aconteceu? – Perguntei para meu irmão, mas quem respondeu foi um outro homem que ali estava.
-- Convulsões por conta da abstinência. – Explicou e eu continuei acariciando o rosto do meu irmão. Pelo menos aquilo me dava certezas que ele estava mantendo sua promessa.
-- Angela... – Mike murmurou a custo, me encarando preocupado.
-- Onde está Joseph? – Questionei para meu irmão, mas Gabriel se antecipou em responder.
-- Meus homens foram na sua casa e só encontraram seu irmão. Seu pai já tinha fugido.
-- Me perdoa Mel. – Mike implorou lavado em lágrimas, agarrando minha cintura e eu estava demasiado incrédula para conseguir processar tudo.
-- O que ele fez? – Perguntei retoricamente e assim que minha mente congeminou a resposta eu me afastei de Mike. -- Não.... Eu preciso encontrar Angela.
-- Eu te levo. – Gabriel murmurou, colocando a mão nas minhas costas para me guiar para fora dali, mesmo que ele não conseguisse entender o que eu e meu irmão conversávamos sem palavras.
-- Ela deve estar em casa de uma amiga da vizinhança, ela vai ficar bem. – Gabriel me garantia enquanto dirigia seu conversível pelas ruas dos bairros até a minha morada.
Antes mesmo dele parar o carro, eu já estava pulando para fora e correndo escadas acima do prédio, entrando pela porta do meu antigo apartamento e olhando em volta em busca dela.
-- Angie? Ang sou eu, Mel. Angela, apareça eu sei que você está aqui. – Chamei por ela enquanto Gabriel batia na porta dos vizinhos perguntando se tinham visto Angela Rivera pela vizinhança.
Mas eu sabia que ela estava em casa. Tinha sido eu a ensiná-la a se esconder quando as coisas se tornassem assustadoras demais e apenas saísse quando ou eu ou Michael surgissem. Por fim escutei ela sair de um esconderijo na cozinha e corri até o cômodo vendo seu corpinho todo encolhido se erguendo e tremendo de medo.
-- Eu estou aqui baby, me perdoa ter demorado tanto. – Cantarolei a apertando em meus braços e lutando para não desabar ali.
Gabriel surgiu pouco depois e esperou que nosso momento tivesse terminado para nos levar de volta ao seu bar. Angela não largava de mim um único momento e eu não a forcei a fazê-lo. Quando por fim chegamos ao bar e encontramos Mike já mais recuperado e em pé, Angie se desprendeu de mim e correu até o irmão, o abraçando forte. Aquilo me doeu, mas eu compreendi. Eu tinha falhado a ela.
-- Chefe, nós encontramos Joseph Rivera. – Um dos seus capangas anunciou e eu segui Gabriel quando ele se ausentou após aquela informação.
Quando a porta de outro cômodo foi aberta e eu vi Joseph amarrado a uma cadeira eu não me controlei e adentrei a sala me jogando nele e o esmurrando com o restante de forças que ainda me restavam.
-- O QUE VOCÊ FEZ COM ELA SEU IMUNDO!? O QUE VOCÊ FEZ? – Gritei assim que me separaram dele.
Não olhei quem ainda me agarrava abraçando minha cintura, mas sentia pelo perfume que era Gabriel. Apertei minhas mãos em seus braços, tentando me desprender, mas foi inútil.
-- Nada. – Joe respondeu colérico, se remexendo na cadeira com violência na tentativa de se soltar.
-- Você está mentindo! – Acusei sentindo meu peito se afundar.
-- Ele não está. – Mike surgiu atrás de nós e eu o encarei.
-- Então... eu não entendo. Você falou... eu entendi... – Minhas palavras se embolavam enquanto eu tentava fazer sentido de tudo.
-- Ele não fez nada com ela. Eu nunca permitiria que ele a tocasse, Mel. Eu prometi a você que a protegeria de todos os modos possíveis. Porque você acha que eu comecei me drogando? – Meus olhos se arregalaram quando Michael se explicou e o meu chão se abriu debaixo dos meus pés.
Gabriel também entendeu de imediato o que meu irmão falava e o nojo tomou conta da sua calmaria e no mesmo segundo ele foi até Joe e o encheu de porrada. Eu não ia ficar ali assistindo aquilo, então puxei meu irmão e Angela de volta para a outra sala e abracei Mike com força, murmurando inúmeros pedidos de desculpa. A certo momento, depois de muito choro, Angela adormeceu no meu colo e Mike também apagou deitado no sofá. Meu olhar estava perdido num ponto fixo, encharcado de lágrimas e de culpa, sem perceber o tempo passar nem nada acontecer ao meu redor. Foi só quando senti a mão de Gabriel em meu ombro e sua voz chamando o meu nome que eu despertei. Olhei para o lado e percebi os nódulos da sua mão com feridas abertas e completamente ensanguentados, mas isso não me incomodou.
-- Vem, tem dois quartos nos fundos onde você e os seus irmãos podem ficar. – Ele murmurou.
Me levantei a custo, mantendo Angie nos meus braços e acordando Mike. Sonolento ele me seguiu até um quarto com duas camas, se jogou numa e eu deitei Angela na outra. Eu estava para deitar do seu lado quando Gabriel segurou minha mão e me puxou para fora do cômodo, fechando a porta atrás de nós e me levando para outro. Eu estava demasiado entorpecida para lutar contra. Assim que entramos no quarto em frente, Gabriel envolveu seus braços em torno do meu corpo delicadamente e ao mesmo tempo forte o suficiente para me amparar. Foi naquele instante que eu senti tudo dentro de mim vir à tona como um vulcão em erupção. Minhas pernas perderam as forças e o meu choro se tornou audível e quase histérico.
Em nenhum momento ele me largou, em nenhum momento ele me questionou nada ou ficou demasiado perturbado com as coisas que ele tinha tomado conhecimento sobre mim. E foi naquele instante que eu percebi que não é o local que tornam as coisas num inferno ou num paraíso e sim as pessoas.
VII
Acordei lentamente vendo Gabriel à minha frente ainda dormindo. Meu coração feito de cacos se preencheu um pouquinho naquele instante. Era surreal perceber que a única pessoa que você não esperava te ajudar a catar os estilhaços o fizesse. Gabriel era muito mais do que um bandido, um líder de gangue ou um mafioso. Ele era um coração puro. Ainda assim eu não podia me permitir apaixonar por ele. Cuidadosamente me levantei para não acordá-lo e fui até o quarto dos meus irmãos, o encontrando vazio. Por um segundo meu coração parou de bater, até que escutei a risada de Angela vindo de não muito longe e a segui até a sala de convívio. Mike estava sentado em uma mesa jogando cartas com alguns capangas de Gabriel e Angela entrançava a barba comprida de um outro brutamontes, rindo divertida com a aparência do homem. Me encostei no batente da porta cruzando os braços e analisando a cena com um sorriso. Eles iriam ficar bem e era isso que importava.
-- Melody! – Angie gritou feliz assim que me viu, correndo até mim.
A recebi num abraço carinhoso e beijei o topo da sua cabeça, erguendo o olhar em seguida para Mike que me encarava triste. A culpa me corroeria todas as vezes que eu olhasse para ele e lembrasse que eu permiti que nosso pai o arruinasse como me arruinou. Percebendo isso ele veio até mim e me puxou para o quarto onde ele e Angie estavam hospedados. Gabriel ainda dormia e eu deixei que ele assim ficasse.
-- Mike eu... – Comecei por falar, mas ele me interrompeu colocando a ponta dos seus dedos nos meus lábios.
-- Eu não quero que se culpe pelo que aconteceu, ok? – exigiu com um sorriso carinhoso e pacífico, retirando sua mão da minha boca.
Suspirei pesadamente e deixei meus ombros descaírem. Aquilo que ele me pedia era impossível. Eu era a mestra em remoer a culpa. Eu conseguia lidar bem com a dor que eu sentia, mas saber que essa mesma dor agora pertencia ao meu irmão era insuportável e inesquecível.
-- Não tem como eu não me culpar. Se eu não tivesse ido embora e abandonado vocês... – Comecei por falar, mas novamente Michael me interrompeu.
-- Se você tivesse ficado não iria sobreviver. – Declarou impreterível e eu engoli em seco não tendo como contestar.
-- Eu devia ter matado aquele desgraçado quando tive a chance. – Murmurei olhando para outro ponto no quarto na tentativa de dispersar as lágrimas.
-- Você não é esse tipo de pessoa, Mel. Eu devia ter sido mais forte e lutado contra ele, mas Joseph me garantiu que nunca importunaria Angie se eu... – A voz do meu irmão falhou antes de conseguir terminar a frase e o meu peito foi esmagado pela dor que ele sentia.
Imediatamente o puxei para os meus braços e acariciei sua nuca, o mantendo seguro ali. Ele tinha feito o que eu por tantas vezes fiz para o proteger. Pensar numa pessoa fazer esse tipo de maldade numa criança era surreal, mas saber que um pai faria tal coisa com os próprios filhos era ainda mais perverso.
-- Se eu não tivesse ido embora vocês estariam a salvo. – Eu nunca pararia de me culpar por aquilo e Michael sabia disso.
-- Foi por isso que eu não falei que ele tinha voltado Mel. Eu sabia que você se sacrificaria por nós. Por favor, não se martirize mais por esse assunto. A culpa não é sua nem minha, a culpa é daquele monstro. E eu e você vamos ficar bem. – Declarou ao mesmo tempo que se afastava do meu abraço apenas o suficiente para olhar em meu rosto.
Suas palavras faziam sentido e por isso eu concordei. Tudo o que precisávamos agora fazer era seguir em frente, ou pelo menos tentar. Não haviam quaisquer hipóteses de eu abandonar meu irmão e Angela de novo e se eu não pudesse regressar aos subúrbios com eles, os bairros teriam de me receber de volta.
-- Você tem razão.
Depois daquela conversa voltamos para a sala de estar. Angie tinha abandonado o primeiro homem e passado para outro a quem agora fazia tranças também. Briguei com ela para parar de importuná-los, mas eles falaram que não se importavam. Angie então pediu que eu cantasse para ela uma música como eu costumava fazer quando ela era pequena. Perceber que ela ainda lembrava disso era assustador porque eu não conseguia imaginar o que mais ela lembrava ou até mesmo do que ela se tinha apercebido. Afundei minhas preocupações momentaneamente enquanto Mike pegava em um violão que um dos seguranças tinha ido pegar e me ajeitei no sofá com as pernas cruzadas à índio começando então a cantar.
Meus olhos focavam apenas na minha pequena e no seu rostinho atento e encantando pela minha voz. Mike me sorria como se nada no mundo o afetasse e naquele momento eu senti paz. Pelo canto do olho eu percebi Gabriel chegando e se encostando no batente da porta me encarando com um brilho nos olhos e um breve sorriso no canto dos lábios. Pelo restante da breve versão da música eu o encarei de volta sem conseguir cortar contato visual. Era inacreditável como sua simples presença conseguia deixar tudo melhor do que antes e eu não sabia mais como lutar contra isso ou muito menos se sequer queria. Quando a música acabou, Angela correu até mim e me abraçou forte.
-- Eu amo você mami.
O silêncio foi imediato após suas palavras. Meus olhos se arregalaram e eu engoli em seco encarando todos ali com receio de suas reações. Michael baixou o rosto e suspirou pesadamente, alcançando a minha mão e a segurando firmemente enquanto eu digeria aquilo. Angela lembrava da verdade e agora ela estava lançada no mundo e não podia ser retida. Um passo de cada vez eu teria de aceitar aquela realidade também de que Angela não era só minha irmã como também era minha filha. Realidade essa que eu tentei esquecer por muito tempo para o bem dela e porque eu era apenas uma criança que não estava preparada para tomar conta de outra criança. Agora eu tinha crescido e eu precisava dela tanto quanto ela precisava de mim.
-- Eu também te amo baby girl. – murmurei beijando o topo da sua cabeça
Com o pouco de coragem que ainda me restava, ergui o olhar em busca do rosto de Gabriel, mas ele não estava mais presente. Aquilo me inquietou por um tempo e quando percebi que não iria descansar enquanto não soubesse onde ele tinha ido, eu me levantei. Uma parte de mim temia que sua reação ao que tinha descoberto o fizesse tomar uma decisão errada. Quando parei em frente à porta da sala que eu sabia que meu pai ainda estava aprisionado eu estagnei com medo de a abrir e achar algo que eu não poderia desver. Então me travei. Meu coração batia pungentemente no meu peito e minhas respiração era pesada e ofegante. Depois de alguns minutos completamente paralisada, Gabriel saiu do interior da sala com um olhar aliviado. Assim que me viu, ele se apressou em fechar a porta atrás dele enquanto eu recuei para trás até minhas costas baterem contra a parede.
-- Mel...
-- Não. Não fale nada. Eu não quero saber. – Falei entrecortadamente, tentando acalmar minha respiração.
Eu de fato não queria ter a confirmação do que ele tinha feito porque isso mancharia a minha visão perfeita de quem eu achava que ele era. Mesmo que a confirmação me pudesse trazer alívio e paz tanto quanto lhe trouxe. Gabriel suspirou nasaladamente e baixou o rosto. Lentamente me aproximei e segurei sua face em minhas mãos o forçando a me olhar e o encarando por segundos infinitos. Eu não podia tomar uma decisão porque eu não tinha mais esse poder. Sabia que se me entregasse ao que sentia isso poderia dar em duas situações: tragédia ou nirvana. Meu foco agora seria minha família e tudo o que não pertencesse teria de sumir ou esperar. Gabriel percebeu a minha hesitação e encostou sua testa em meu ombro pousando suas mãos delicadamente em minha cintura. Aquele simples toque, sua proximidade, tudo nele fazia meu corpo perder uma batalha que não tinha pedido para participar.
-- Eu espero por você o tempo que for preciso, Melody. Esperei por 8 anos, esperarei por mais 8 se preciso for. Eu não vou a lugar algum. – garantiu
Aquilo foi tudo o que eu precisava para saber que ele me merecia um pouco mais do que antes e algo me dizia que dali por diante ele faria tudo para me merecer cada dia mais.
FIM
Bạn đang đọc truyện trên: Truyen247.Pro