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Primeiro ato


    Um rapaz jovem voltava de um encontro com a morte, concentrando sua visão em um único ponto da parede no interior da caverna. Aqueles olhos distantes que se perdiam no espaço eram predados pelo sofrimento e deles subtraíam-se todo brilho e vividez. Doto emergiu do lago e foi carregado até o abrigo pelos absários. A sensação que seu corpo oferecia o fazia lembrar-se de seus momentos de surto, doença e desespero, vividos no roseiral, meses atrás. Insólito, por fim, entendera que se ele não tivesse deixado a imagem de Eliff para trás, teria morrido.

    Estava débil, disperso e calado, deitado no chão como uma folha seca. Nas adjacências, Tuí e Deplório o observavam, haviam cuidado dos ferimentos dele e aguardavam uma resposta orgânica. Doto demorou ainda alguns segundos para dar-se conta de onde estava, quando então moveu-se e sentiu os arranhões arderem. Ao se revitalizar, ele se sentou e perguntou:

    - O que aconteceu?

    - Você conquistou sua sobrevivência, agora está pronto para traçar seu destino. A memória do afogamento ficará para sempre na sua consciência e essa cena alimentará seu ódio e estimulará seu dom. - Disse Deplório com seriedade.

    Decorria uma pausa para reflexão, vinham à tona vagas lembranças, lembranças efêmeras que provocavam dúvidas inexplicáveis de como ele havia se esquivado da morte.

    - Algo de estranho me ocorreu embaixo da água...

    - Creio que você ainda não tenha conhecimento para entender isso. Nós o vigiávamos naquele momento e sabíamos até que ponto seu corpo suportaria, não o deixaríamos morrer, mas provocamos seu instinto para que ele trabalhasse na sua sobrevivência, aplicando seu dom de alguma forma. A maneira que seu organismo utilizou para escapar da morte foi simples, mas eficaz. Você utilizou sua Eustase para gerar alterações naquelas correntes, rompendo-as. A Eustase arrastou a Biostere presente no metal fazendo-o despedaçar.

    A este tipo de explicação Doto, normalmente, não absorvia bom entendimento, mas sua constante evolução permitia sintetizar as palavras e extrair delas algum sentido. Eustase e Biostere já não lhe soavam com dificuldade, também compreendia o que essas forças representavam, pois seu dom permitia senti-las.

    A conversa refrescou a memória dele, lembrava brevemente do que havia acontecido no pico Lirembeca, um fato que o marcou, que ele jamais esqueceria. Entretanto, o rosto de Eliff não deixou mais registros em sua consciência, era como se ele não se lembrasse dela. A superação física do momento trouxe também a quebra de seu instinto de superioridade, servindo para tirá-lo da ilusão e trazer-lhe certa humildade. Entendia, portanto, a finalidade da tortura a que os absários o submeteram e parecia, por mais estranho que parecesse, consentir com aquilo. Sentia-se preparado e seguro de si, além de mais maduro para enfrentar seus objetivos.

    Finalmente amanhecia. Os raios de sol invadiram a caverna pelas frestas como na primeira vez em que estiveram nas montanhas de Lirembeca. Doto levantava-se para se espreguiçar, enquanto Tuí e Deplório preparavam uma fogueira para aquecer algum alimento. Enquanto isso, conversavam.

    - Doto, estamos no sexagésimo dia nessas montanhas, devemos partir. - Disse Deplório, com o olhar desviado.

    Doto virou-se para ele de forma surpresa, quase não percebera o correr do tempo.

    - Para onde vamos? - Perguntou.

    - Desceremos destas alturas e viajaremos até onde o oceano nos encontra. Os mares nos levarão para o Norte seguindo para onde a terra toca nossos pés. Além da linha do horizonte, você será conhecido por sua força, um dia entenderá. Creia em suas capacidades! Rumaremos ainda por muitos dias.

    - Ainda temos que encontrar Ectus, certo?

    - Sim. Porém, chegar até ele não é uma tarefa fácil. O seu esmagador exército já está partindo para fora da ilha onde teve início. Antes de enfrentá-lo, teremos de combater alguns de seus servos.

    - Aprenderá a matar, garoto! - Disse Tuí sarcasticamente.

    Deplório olhou para Tuí com ares discretos de advertência e calou-se, depois retomou o assunto da seguinte forma:

    - Bem, há uma coisa que deve saber. Em primeiro lugar, tenha ciência de que você não é uma pessoa normal, que possui um organismo distinto. As duas energias que regem o mundo, a Eustase e a Biostere, são interligadas, dependem uma da outra para existirem. Como já explicado, uma é responsável pela matéria e sua composição, ao passo que a outra administra a força vital dos seres vivos e dá nitidez aos sentimentos. Sua mente é uma anomalia que tem a capacidade de alterar a Biostere através da Eustase, ou seja, você pode transformar a matéria pela força mental. Não se esqueça que você é um projeto, Doto, um alguém criado unicamente para destruir Ectus.

    - Onde quer chegar?

    - Todos sabemos que se os cavaleiros do Norte quisessem mata-lo, já o teriam feito. Algo me leva a crer que eles pretendem submetê-lo à vontade de Ectus para servi-lo e dar força a seu exército, já que possui uma mente tão potencialmente agressiva. Se os cavaleiros do Norte o levarem até ele, sua força será usada como iniciador para provocar a Ilounastia. Veja, Doto... Sabemos que o Fator Ilounastia é inevitável, que ocorrerá com ou sem sua Eustase. Porém, temos de ganhar tempo para encontrarmos uma forma de impedi-la. Se Ectus te dominar, provavelmente conseguirá desencadear a fagulha pioneira para o caos. Imagine que você é a primeira peça de uma reação em cadeia terrível. Basta que sua Eustase seja canalizada para o desequilíbrio e ondas de destruição se desdobrarão sobre o mundo.

    - Porque vocês não enfrentam os cavaleiros do Norte e acabam com isso?

    - Eles são muito fortes e audaciosos. Creio que ainda não somos capazes de matá-los. Entretanto, não podemos fugir deles para sempre, o conflito final inevitavelmente ocorrerá. Quando isso acontecer, provavelmente você estará sozinho e terá de chegar a Ectus por si só.

    - Como saberei para onde ir? O que devo fazer se isso ocorrer?

    - Bem, os absários do Norte trataram de montar uma emboscada para nós. Na certa deduziram nosso trajeto e colocaram indivíduos para destruírem a mim e a Tuí. - Disse Deplório, virando-se de costas e caminhando para fora da caverna.

    - Que indivíduos? - Perguntou o borveniano seguindo-o.

   - São chamados de austeiros. Em suas aparências físicas eles não apresentam anormalidade, porém, em suas sensibilidades mentais equiparam-se a você, ou seja, possuem certo domínio sobre as forças que regem a matéria. - Explicou.

    Doto, logo atrás de Deplório, ao vento moderado daquele dia, raciocinava sobre as palavras, enquanto Tuí saía também da caverna. As proposições do absário continuaram:

    - Austeiros são difíceis de rastrear, a Eustase deles fica adormecida durante muito tempo, alguns deles nem sequer sabem que possuem essas capacidades e encontram a morte antes de descobrirem que são diferentes.

     - Quantos são?

     - Como disse, não é uma tarefa simples identificá-los. No entanto, pude localizar quatro deles, que, por uma coincidência absurda, localizam-se em nosso principal trajeto, em cidades pelas quais teremos que passar para atingirmos os mares. Certamente estes, por terem suas energias expostas, já detém conhecimento de suas peculiaridades e nos esperam a comando dos absários do Norte.

     - Então eles trabalham para os cavaleiros?

     - Diria que são súditos de Ectus, que estão a mando dos absários do Norte. Confie em mim, eles não hesitarão em destruir-nos e capturá-lo.

    - E vocês não podem matá-los? Observei que são bastante hábeis. - Disse Doto com tom ingênuo e esperançoso, já imaginando o que lhe proporiam.

    - Os austeiros são extremamente fortes, são preparados para aniquilar seres como nós, que possuímos a Eustase vulnerável. A Eustase de um absário é extremamente frágil perante a mente de um austeiro. São formas de lapidação da energia diferentes. Embora em termos de potência tenhamos mais força do que eles, em termos de hostilidade eles são superiores. Isso quer dizer que a mente de um austeiro é extremamente nociva à Eustase dos absários. Alguns deles ainda estão aprendendo a utilizar a mente, outros, porém, possuem domínio completo sobre as forças que os circundam. Eu e Tuí vamos nos concentrar em proteger seu caminho dos cavaleiros do Norte. Esta é hora em que você deve agir!

    - Eu? Como?

    - Você pode não ter percebido, mas é muito mais forte do que eu e Tuí, possui uma Eustase em processo de expansão e logo se tornará um mestre na arte destrutiva.

    - Querem que eu mate estes... "austeiros"?

    - Isso mesmo! Por mais que momentaneamente eles não representem perigo. Austeiros são treinados para impedir que cheguemos a Ectus e quando se depararem conosco o instinto deles se aflorará e eles tentarão nos impedir.

    - Certo, vamos direto ao ponto. Como devo fazer isso?

    - Você precisa desenvolver sua Eustase e agir sozinho! Nós o orientaremos para onde estão, mas é você quem deve exterminá-los. Acostume-se com nossa ausência, pois frequentemente deixaremos que trabalhe na solidão. Entretanto, quando necessário, tentaremos intervir. Estaremos protegendo suas ações das vistas dos cavaleiros do Norte. Mas cuidado! Você precisa ser furtivo e rápido, não pode ser percebido.

    Nesta situação, Deplório já caminhava por uma das trilhas estreitas formadas pela erosão das chuvas. Tuí, calado como sempre, seguia a coluna atrás dele, carregando uma tocha. Após andarem certa distância, pararam e voltaram-se para a parede esquerda, que se erguia, assim como a direita, em cinco metros de altura.

    - Bom, agora que já conhecemos nossa missão secundária, devemos nos preparar. - Disse Deplório colocando as mãos na cintura.

    Tuí, achegando-se à parede, deixou suas mãos correrem sobre a rocha áspera como se estivesse buscando alguma brecha. Logo, encontrou entalhes bem pequenos, ranhuras finas na vertical que eram camufladas pelo pó. Encaixou os dedos a elas e, utilizando uma força brutal, puxou aquela parte da parede, que se soltou das laterais como uma porta. Entraram os três naquela passagem.

   Doto os seguiu para o fundo do túnel. Por essa passagem, eles percorreram não mais que dez metros e chegaram a um cantinho confortável, pequeno, em forma circular, que trazia um grande baú de madeira encostado na parede. Tuí depositou a tocha que carregava em um suporte da parede e abriu o baú liberando uma grande quantidade de poeira. De dentro dele, Deplório retirou um colete que, visto melhor à luz das chamas, impressionou Doto por ser tão bem trabalhado.

    Feito em couro preto com detalhes de prata que formavam a figura de uma pantera. À cobertura dos ombros, atrelava-se uma pequena capa, também em cor preta. Enquanto Doto admirava a armadura em suas mãos, Deplório retirava outros objetos do baú. Deu-lhe um par de sapatos leves de pano e grevas escuras que cobririam toda canela, além de luvas de couro na mesma tonalidade.

   - A cor escura ajudar-te-á na manutenção do sigilo. - Disse o sábio.

    Em seguida, retirou mais utensílios do baú, dentre eles uma muda de roupa de algodão, meias, agasalho, uma pequena mochila de pano, duas facas pequenas e um cinturão com encaixes para alguns equipamentos. Doto, meio atrapalhado, checou superficialmente os materiais e os enfiou na bolsa de pano, agindo como um mendigo diante do alimento.

    Após ter seu material guardado e assegurado na bolsa embaixo do braço, Doto observou cobiçosamente o interior do baú. Viu algumas armas cortantes as quais desejou. Deplório interpretou o olhar tentado de Doto, mas manteve-se calado e imóvel, como se esperasse ele pedir.

     - Minhas armas são apenas estas duas facas?

     - Não, você precisa de armas profissionais, não deve mais utilizar aqueles trapos que lhe concedemos durante o treinamento. Neste baú existem novas armas, com lâminas bem amoladas e em excelente estado de conservação.

     Doto então se achegou próximo ao baú e buscou alguma arma, fascinado por todas elas. Logicamente, este desejo por armas foi gerado por seu treinamento, que alimentou a curiosidade de utilizar novos modelos e testar suas habilidades com eles. Apanhou um machado de lâmina curva, bem trabalhada e brilhante, com excelente empunhadura, mas, quando pretendia manuseá-lo, Deplório tomou-o de suas mãos e fechou o baú dizendo:

     - Para você acho adequada essa aqui.

    E mostrou-lhe aquela pequena adaga de ponta arredondada que havia ganhado junto com o mapa, há muito tempo, na arena. Doto nem sequer lembrava-se da velha arma, pois pouco a utilizou e ela esteve, durante muito tempo, aos cuidados de Tuí. Por fim, agora, ela estava lá, de posse de Deplório, tão simples e afiada como sempre esteve.

    Doto sentiu-se um pouco frustrado, achava aquela arma, a Viúva Negra, repugnante perante a gigantesca espada que Deplório conduzia antes do confronto na fenda. A adaga tinha apenas cinquenta centímetros de lâmina e sua única peculiaridade era sua escritura, que Doto não entendia porque não sabia ler. Isso o fez perguntar:

    - O que significam estas letras?

    - Está escrito no idioma do Vale, de onde ela veio. Esta adaga foi a única coisa que conseguimos trazer conosco de lá. O significado da frase é "Domine quem te domina!". Ela foi especialmente esculpida para você, meu caro! Sinta-se honrado em empunhar a Viúva Negra.

    Doto se impressionou com o fato de ser ele alguém tão importante, mas ainda assim menosprezava a adaga, não via nela nada de especial. Ele queria, na verdade uma arma nova, forte e resistente, mas notou que Deplório não o entregaria outro modelo e preferiu ficar calado. Houve um breve momento de silêncio, depois Deplório tornou a abrir o baú e retirou outros equipamentos, destinados a ele próprio e a Tuí. Depois da luta na fenda, a maioria dos utensílios foi jogado fora, pois estavam sucateados e inservíveis.

    Deplório vestiu uma armadura bastante pesada, feita de aço, que tinha ombreiras feitas de lâminas metálicas sobrepostas que recaiam sobre os braços. Na região abdominal ela modulava-se em várias peças de encaixe também sobrepostas. Além disso, pegou uma espada tão grande quanto a que tinha antes, de gume duplo e bastante afiada na ponta. Na base da arma havia pequenas garras que se assemelhavam a um serrote. Nenhum dos objetos tinha brilho, pois isso refletiria luz e dificultaria a ocultação quando necessária; assim, a superfície dos utensílios era áspera e fosca.

    Tuí pegou um colete de correntes que lhe cobria dos ombros até metade das coxas, leve o suficiente para permitir rápida movimentação, já que ele era um especialista no manuseio de arcos. Colocou também um cinturão de couro, uma aljava carregada de flechas e novas botas. Apanhou um arco feito de um material parecido com fibra plástica, em formato próximo ao de um trapézio, com um cordel extremamente tenso. Após pegarem o material, eles voltaram ao abrigo.

    Doto em muito mudara sua maneira de ser, tornou-se maduro e questionador, características que surgiam de sua constante evolução mental. Algumas sensações tornavam-se frequentes para ele, dentre elas uma leve tristeza e certa confusão sobre o caminho que sua vida estava tomando. Por vezes tinha a impressão de que tudo aquilo era um sonho e que a qualquer momento deveria acordar. As memórias de Eliff pareciam estar adormecidas, abafadas pela rapidez dos fatos.

    E tudo foi rápido como tinha de ser, como sempre fora, desde o início da jornada. Era como se Deplório, Tuí e Doto corressem contra o tempo, temendo algo que nenhum dos três jamais presenciara. A partida foi rápida, eles prepararam bagagens com alimentos e água, tirados do próprio abrigo Lirembeca. Doto trajou pela primeira vez uma armadura e equipamentos de guerra, sentiu-se poderoso.

    O sol já incidia forte quando partiram pela estradinha apertada da direita, que sucedia o abrigo. O caminho descia íngreme nos primeiros momentos, de onde se podia avistar um enorme vale verde, ainda coberto em parte por algumas nuvens. Lá embaixo, os rios corriam como pequenas linhas costurando as florestas.

    Depois de algumas horas de caminhada, o itinerário foi moldando-se de um lado para o outro, recortando o declive da montanha. A vegetação foi surgindo rasteira, depois em pequenos arbustos de raízes curtas que se agarravam nas pedras. Conforme a estrada acompanhava a descida, ia alargando-se e tornando-se mais suave.

   Quando já haviam saído da região fria de altitude elevada, o cansaço começou a surgir e logo era esquecido, pois a paisagem amaciava os olhos de quem visse. Os detalhes e dobras do terreno tornaram-se nítidos, apresentando um belíssimo campo com várias elevações, que ao fundo mostrava outra região montanhosa, tão alta como Lirembeca. Entre as duas cordilheiras, viam-se pequenos focos de construções e estradas que ligavam cidades e vilarejos do vale compreendido entre as cadeias rochosas, região conhecida como Trenália.

    - Veja, Doto. Este gigantesco vale é Trenália, cruzaremos algumas cidades desta região até que encontremos o mar, ele se esconde atrás daquelas grandes elevações. - Disse Tuí.

    - Aquela cidade mais próxima contém nosso primeiro objetivo, garoto. Ainda hoje chegaremos a ela, chama-se Pedriata. - Disse Deplório apontando para uma pequena região construída, relativamente próxima ao sopé da montanha.

    Doto felicitava-se em admirar a paisagem, mas isso lhe provocava momentos nostálgicos em que ele refletia sobre o passado. Por mais que sentisse saudades de Borvênia, não se sentia livre para sonhar com sua volta, pois algo o induzia a pensar que se frustraria. Sentia-se compromissado em cumprir sua missão. Era como se houvesse um bloqueador mental para suas lembranças. Apesar de tudo, ele não sabia efetivamente o que encontraria nesta jornada, mas prosseguia porque a única coisa que queria era voltar a ser um camponês simples, pobre e feliz, mesmo que sua mente não aceitasse esse caminho.

   Os passos trouxeram a distância e o cansaço. Como modo de distração, os três guerreiros conversaram muito sobre diversos assuntos, importantes ou desperdiçados. Tuí, como sempre, restringia-se em suas palavras, mas Doto se acostumou com seu jeito, deixou de vê-lo desconfiadamente, percebeu que o absário era mesmo bastante fechado e grosso, isso fazia parte de sua personalidade. Alguns temas Deplório omitia, dizia ser de difícil entendimento para Doto, principalmente no tocante a detalhes sobre o Vale, ou sobre como eles vieram parar daquele lado do mundo.

    Por fim, ao término da tarde, eles chegaram às proximidades de Pedriata. Era uma cidade pequena construída sobre uma extensão rochosa antiga, geologicamente resistente, sobre a qual se erguiam casas simples de barro e madeira, ou de pedras sobrepostas, reforçadas por cimento. As construções eram dispersas e pequenas, abrigando não mais que três pessoas por residência. Não havia os muros nem as decorações que se encontravam em Borvênia.

    Os três viajantes abandonaram a estrada ao chegarem perto da vila, ocultando-se na margem arbústea ao lado esquerdo. Contornando a parte plana e pedregosa, eles desbordaram a região abrigada através de um matagal, que subia levemente por um pequeno barranco de terra e de grama. Adentraram a mata até encontrarem uma clareira, onde pararam para se recompor e se alimentar, enquanto o crepúsculo iniciava. Nessa situação, procuraram falar pouco e manter a voz em baixo tom, pois poucos metros separavam a localidade das moradias mais próximas.

    - Doto, atente-se para minhas palavras - dizia Deplório. - Austeiros são imprevisíveis e perigosos, jamais os subestime. A respeito de suas distinções, devemos entender que podem manipular a Eustase com magnificência e não podemos deduzir de que forma farão isso. Seu objetivo é matá-los.

    O borveniano sentiu-se responsabilizado, pois o tom de voz de Deplório depositava toda expectativa em seus ombros.

    - Nós, absários, somos facilmente identificados pelos austeiros, eles sentem nossa Eustase quando nos aproximamos e isso nos torna muito vulneráveis. Se algum deles possuir forças desenvolvidas, poderão destruir-nos. Austeiros possuem energia potencial muito superior à dos absários. É por isso que só você pode enfrentá-los... É tão poderoso quanto eles, mesmo que sua mente não esteja esculpida em seu estágio máximo.

    - Como eles são? - Perguntou Doto.

    - Possuem aparência perfeitamente normal, à semelhança do ser humano, mas ocultam suas habilidades quando as descobrem. Um austeiro declarado preserva sua identidade mental até que cumpra a finalidade para qual foi presenteado com seu dom.

    - O que exatamente eles pretendem?

    - Não se pode generalizar a pretensão dos austeiros, mas os indivíduos que identifiquei existem para destruir a mim e a Tuí. Possivelmente irão matá-lo também, caso você abra essa chance. Mas é importante que você não os encare como seres vazios, sem emoção e engessados por seus objetivos, como disse, são pessoas normais que nascem, vivem e morrem.

    Ao fim dessas palavras, a noite já havia tomado o céu e expunha suas estrelas com imponência. A baixa temperatura do sereno tratou de substituir a calmaria e constância pela tensão e nervosismo. Estava chegando a hora. O ato iniciou com um curto deslocamento pelo matagal, por poucos metros, até que os três guerreiros pudessem ver, de cima do barranco, a lateral de uma casa. Deitaram-se então, aproveitando a folhagem para se camuflar.

    Luzes amarelas de velas saiam de duas janelas abertas, pelas quais se podiam ver alguns cômodos. Grilos e cigarras reproduziam juntos um som altamente dispersivo, que deixava difícil o entendimento das baixas palavras de Deplório ditas a Tuí:

    - Dê a volta, desapareça na folhagem e atente-se para meus sinais.

    Tuí, sem pronunciar nada, deslocou-se rapidamente pelo mato e contornou a casa ainda ocupando o barranco de terra. De sua nova posição, Doto apenas enxergou o brilho dos olhos dele e viu a ponta de uma flecha preparada no seu arco. Deplório pedia a Doto que ficasse quieto e imóvel.

    - Doto, vê esta casa?

    - Sim.

    - Nela reside um homem jovem, o primeiro austeiro. Andei estudando o comportamento dele, creio que ele ainda não tenha descoberto sua essência, mas há alguns dias tem reparado a presença de minha energia.

    Nesse momento, surgiu um homem na janela da esquerda. Era de meia idade, aparentemente morava sozinho, trabalhava em colheitas e tinha condições humildes de vida. Estes dados todos haviam sido levantados pelas observações de Deplório.

    - Veja Doto, olhe como nossa presença o deixa confuso. - Disse Deplório estranhamente fascinado.

    O homem parecia incomodado, franzia a testa e constantemente olhava para trás, como se tentasse encontrar alguém. Certo momento apoiou-se no parapeito da janela, colocando a cabeça para fora e observando o terreno de um lado ao outro, depois começou a abrir as gavetas de uma cômoda, em busca de algum objeto.

    - Ele sente que estamos aqui, mas não sabe exatamente de quem se trata, está perturbado, sente-se ameaçado. - Cochichou Deplório.

    O homem abriu todas as gavetas, mas delas nada tirou, então se dirigiu a uma caixa de madeira e tornou a vasculhar. Determinado instante, ele ergueu a cabeça olhando para parede, como se estivesse surpreso, na intenção de flagrar alguém. Em seguida, voltou a mexer na caixa até encontrar uma ferramenta. De posse dela, deslocou-se para fora do quarto, a um local onde a parede bloqueava o rastreamento.

    - Doto, é agora. Aproveite esta oportunidade, entre pela outra janela, mate-o com a adaga. - Disse Deplório exaltadamente.

    Nesse momento o estômago de Doto embrulhou-se. Seus movimentos foram rápidos e silenciosos. Ele desceu o barranco deslizando na grama até acostar-se na parede de fora da casa, feita de pedras. Sua respiração estava acelerada, mas era abafada pelo canto das cigarras. Ele estava ao lado da janela e podia ver a luz tingir o chão pedregoso.

    Na situação, ele trajava parte dos equipamentos concedidos pelos absários, calçava os sapatos com grevas e vestia o colete com a capa, além de uma cinta de couro que sustentava a adaga passando pelo ombro direito dele. As cores escuras tornavam-no invisível na sombra. Nos segundos seguintes, ele observou rapidamente o interior do cômodo e pulou silenciosamente a janela, escondendo-se atrás da porta, em seguida.

    De onde ele estava, não se podia mais avistar Deplório nem Tuí. Agiria, então, por sua própria astúcia. Primeiramente, ele buscou ouvir os ruídos, identificando passos. Resolveu logo desembainhar sua adaga. Os sons sugeriam perfeitamente a movimentação do austeiro, ele andava para um lado e outro do cômodo seguinte, que dava acesso àquele quarto. Em sua avaliação sonora, percebeu logo uma aproximação crescente que cessou a cerca de dois metros da porta. O austeiro estava lá, parado, na eminência de adentrar o quarto e ser apunhalado por Doto, mas a surpresa mudou a cena.

    O inimigo sabia da presença de Doto e entrou no quarto atacando-o com uma ferramenta pesada de ferro. O primeiro golpe atingiu Doto desprevenidamente na cabeça, fazendo com que ele se sentisse tonto e se arriasse ao chão encostado a parede. O segundo golpe atingi-lo-ia no rosto, mas Doto pôs sua mão na frente, recebendo todo impacto nos dedos.

    A confusão e o encurralamento impediam que ele pudesse raciocinar, então apenas deixou sua adaga correr da esquerda para a direita, passando de raspão nas canelas do austeiro. Apesar de lento, o movimento assustou o inimigo, fazendo-o recuar cerca de dois metros, o que abriu chance para Doto pôr-se de pé e atacá-lo.

    Nesse instante, Doto agiu por seu instinto de defesa, empurrando o austeiro na parede oposta com brutalidade. Em um ato trêmulo e inseguro, Doto furou-o a barriga desengonçadamente, pressionando-o contra parede. A lâmina mergulhou no corpo do homem em uma inclinação que permitiu atravessar do intestino grosso ao pulmão.

    E o cenário se configurou, como se tudo tivesse paralisado naquele instante. Não havia nada que pudesse arrancar a atenção de Doto àqueles olhos de espanto do inimigo. Doto entrou em choque, ficou desorientado ao ver o sangue espirrado em sua armadura e na parede. Jamais havia matado uma pessoa e agora entrava em transe, observando os últimos suspiros do homem, que cuspia sangue ainda tentando respirar. O olhar esbugalhado do austeiro enchia Insólito de culpa. Pelas luvas de couro de Doto, escorria o líquido vermelho carregado de dor, brilhando à luz da vela.

    Em um último ato reflexo, Doto puxou rapidamente a adagapara fora do ferimento, fazendo com que o corpo do austeiro caísse ao chãotrêmulo, ainda lutando para sobreviver, para respirar. Nada tiraria o pavor doborveniano, que agora mergulhara em um ímpeto traumático paralisador.

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