Obsessão
O trauma era tão intenso que Doto esteve algum tempo parado, de pé em meio aos destroços e a cortina de fumaça que cobria o local. Sem rumo, ele começou a andar, tentando equilibrar-se em uma só perna, devido à perfuração de sua panturrilha. Porém, após deslocar-se poucos metros ouviu uma tosse. Surpreso, ele virou-se para trás e viu algo surpreendente: Irílio ainda estava vivo, tentando erguer seu tronco.
Imediatamente o camponês foi até ele e o ajudou a se virar de lado no chão. O rosto dele estava muito inchado e roxo, assim como o pescoço, devido ao estrangulamento que sofrera por Deplório. Sua vida esteve por um fio, sobrevivera à custa de um apagar abrupto de sua eustase, que fez com que Deplório achasse que o havia matado. Sua Elementarie o trazia à tona novamente para consumir suas últimas forças vitais. Com muita dificuldade, Irílio disse algumas palavras mal pronunciadas, entre tosses e cuspes de sangue:
- Tire-me daqui, Doto! Isto ainda não acabou, tenho acertos a fazer.
Doto o arrastou lentamente pelos braços, sob a sufocante fumaça do incêndio. Irílio, como qualquer outro absário, era pesado e difícil de ser carregado, ainda mais estando o camponês ferido. Andando sobre os destroços, o borveniano via a perna esquerda do cavaleiro alado dilacerada, presa apenas por um resto de músculo e carne; o osso da canela estava partido. A perna direita fora decepada.
Doto o levou para um bosque a cerca de trezentos metros das chamas e o deixou encostado a uma árvore. O absário ficou algum tempo ofegante, de olhos fechados, enquanto se formava uma poça de sangue próximo a suas pernas. Doto agachou-se para tentar ajudá-lo e viu que ele tremia muitos suas mãos.
- Doto, quero... - Tossiu. - Quero que me traga algo cortante e uma madeira com fogo.
O borveniano prontamente levantou-se e mancou até os escombros da casa, procurando algo útil no chão. Enquanto vasculhava o entulho, em meio às chamas e a fumaça asfixiante, encontrou um pano azul, o mesmo que cobria a criança no berço antes da casa desabar. Em uma sequência rápida de imagens, Doto lembrou-se do rosto angelical do bebê e sentiu remorso por não tê-lo salvado. Provavelmente, a criança já estava morta, esmagada por algum móvel ou carbonizada pelo fogo ardente. Não importava mais... era tarde. Insólito suspirou profundamente e se ajoelhou próximo ao pano, envolvendo-o nos dedos. Logo derramou algumas lágrimas, pois assumia a culpa para si.
O fogo começou a se alastrar com mais rapidez, isso o fez superar o momento de compaixão. Doto apanhou alguns pedaços de vidro e um entalhe afiado de madeira, mas continuou buscando. Certo instante, viu embaixo de um móvel quebrado uma lâmina negra. Era ela, a Viúva Negra. Sem questionar-se sobre aquilo, ele apanhou a arma e um mourão em chamas e voltou a posição de Irílio, colocando os materiais ao lado dele.
- Encontrei estes aqui!
O absário então, com perícia, prendeu a circulação com o pano que rasgara da própria roupa e cortou uma parte do couro de sua bota para colocar entre os dentes. Apanhou a adaga de lâmina preta e, em um golpe seco e rápido, decepou a própria perna, pouco abaixo do joelho. Diante da dor, apenas murmurou e rangeu os dentes mordendo o pedaço de couro. Com as chamas, cauterizou os ferimentos da amputação e os cobriu com outro remendo da roupa. Corridos alguns suspiros, ele disse:
- Doto, você precisa me ouvir. Agora que está livre do lapso mental, vou te esclarecer os fatos. Você tem vivido uma grande ilusão, engenhosamente arquitetada por Deplório e Tuí. Certamente eles te transmitiram inúmeras informações, muitas delas falsas! Eles trabalham para Ectus e a pretensão era conduzi-lo até ele para que sua Eustase pudesse agravar um grande desequilíbrio que está começando no mundo.
- Está falando do fator Ilounastia?
- Exato! O fator Ilounastia é uma grande desordem provocada pela interação descontrolada da Biostere e da Eustase. Ectus quer que isso ocorra para derrubar o sistema do Vale. Quer usar sua força mental para desestabilizar o mundo. Com processos de estímulos de sua raiva e de sua tristeza, ele pode fazer com que sua energia seja liberada e crie picos eustásicos, jatos de força que funcionam como iniciadores para o caos.
- Como assim?
- Você deve saber que o Vale é um mundo paralelo, espectral, para onde os seres vão após a morte. Existe um complexo sistema neste local que controla todo fluxo de energias existente nos dois mundos. Ectus quer provocar a Ilounastia para destruir o Vale e, assim, reerguê-lo sob sua égide. Os líderes do Vale estão há muitos anos tentando enfrentar Ectus, encontrar uma maneira de derrotá-lo. Hoje ele está aqui, no mundo material, ganhando força e poder. O Vale tentou se antecipar com a criação de seres com forte Eustase, os austeiros.
- Espere! Os austeiros? Enfrentei alguns deles!
- Doto, novamente você foi enganado por Deplório e Tuí. Talvez você não se conheça o suficiente para entender seu motivo aqui... O fato é que estes homens que você matou, na verdade, trabalham para o Vale, para destruir Ectus. São seres criados unicamente para essa finalidade.
- Está dizendo que não devia ter matado estas pessoas? Para mim tudo parecia tão claro... sentia a Eustase deles de longe se projetando sobre mim.
- Lamento dizer isto, mas você cometeu um grande erro ao matar os austeiros.
Doto sentiu um aperto no peito ao lembrar as tarefas que Deplório e Tuí o instruíram a fazer. Seu cérebro parecia lhe avisar que havia causado um estrago em tudo o que fizera. E era impossível não receber na mente a imagem das pessoas que matou. Refletiu por alguns segundos, deixando algumas lágrimas de remorso escorrerem pelo seu rosto sujo. E a mais nauseante lembrança veio quando remoeu o fato de ter matado os pais daquela criança, que nem mesmo eram austeiros. Eram apenas pessoas inocentes que queriam proteger o bebê.
- Acontece que existe mais um austeiro, Doto!
- Quem? - Perguntou ele, enxugando as lágrimas da face.
- É você, Doto! Lamento te dizer, mas você exterminou seres de sua própria espécie. Deplório e Tuí o fizeram limpar o caminho para esta jornada de armadilhas e emboscadas.
O coração de Doto disparou e, de repente, tudo fazia sentido sobre sua Eustase. Refletindo, levou a mão à testa empoeirada em um ato de repúdio e indignação.
- Note que sua existência não é um mero acaso, é uma sequência de eventos pré-determinados que convergem para seu destino. Sua vida foi minuciosamente programada, assim como a de qualquer austeiro. Você é um produto do Vale! Todos vocês foram criados por um único motivo: destruir Ectus!
- Está dizendo que não sou humano?
- Apenas em linhas gerais. A forma dos austeiros é exatamente igual a de qualquer ser humano, mas o interior de vocês guarda algo muito mais forte e destrutivo. Seu organismo tem uma forte propensão a desenvolver sua Eustase, de uma maneira que outros indivíduos não podem fazer. Muitos fatos de sua vida foram delicadamente projetados.
- Que fatos? Jamais notei isso... - Franziu o semblante e balançou a cabeça negativamente.
- Não acha estranho você ter tantas dificuldades para se relacionar com as pessoas? Desde pequeno, sua personalidade recaía para timidez, dificultando suas amizades e laços fraternais. Isso tudo tem um propósito: austeiros não podem estabelecer laços de sentimentos fortes, pois isso atrapalha o desenvolvimento da Eustase.
Doto digeria aquelas informações com dificuldade, indignado, tentando se lembrar de sua perturbada infância. E de fato recordou-se de seu excessivo constrangimento para encontrar amigos, sua forma estranha de conversar e agir e suas paranoias, permeada por frequentes pesadelos que o faziam ser diferente dos outros. Desde seu nascimento, as pessoas tinham medo dele, medo de suas atitudes, discriminando-o, mantendo-se afastadas. Porém, imerso nesse contexto de repúdio, um fato parecia correr desesperadamente no sentido contrário: o amor por Eliff.
- Espere! Se os austeiros não podem ter sentimentos pelos outros, por que meu amor por Eliff é tão forte?
- Você é o que podemos chamar de "projeto malsucedido". Eliff é como um contrapeso para evolução de sua Eustase. Ela é um grande bloco que está no caminho de seu desenvolvimento mental. O sentimento que tem por ela atrapalha e desestabiliza sua evolução, até mesmo fazendo-a regredir.
Os fatos pareciam encaixar-se, pois Doto lembrara-se dos altos e baixos vividos por seu organismo. Em síntese, sua Eustase fazia o movimento de uma grande sanfona, indo e vindo, avançando e regredindo. Cada vez que o camponês nutria pensamentos sobre Eliff, sua Eustase encolhia e se tornava fraca. Cada vez que ele a esquecia, sua Eustase o dominava, não deixando espaço para o sentimento.
- Certo, entendi. Mas se sou um projeto falho, por que Deplório e Tuí insistiram em me capturar? Eu não seria útil para Ectus!
- Doto, apesar de sua mente agir como a maré do oceano, avançando e retraindo a todo momento, existe um potencial gigantesco dentro de seu organismo. Neste sentido, entenda que você é um austeiro com energia adormecida, mas em quantidade absurda, capaz de provocar grandes mudanças na matéria. Dentre os milhares de austeiros que foram criados para destruir Ectus, você é quem tem maior probabilidade de êxito ao enfrentá-lo.
- E porque não criaram um austeiro forte e livre dos sentimentos, para acabar com Ectus?
- Acredite, não é tão simples quanto parece. A criação de um austeiro é sempre incerta. Não é como construir uma arma, em que podemos escolher cada detalhe e moldá-lo a nosso gosto. Austeiros são seres humanos, e seres humanos são imprevisíveis. Muitas vezes, sua espécie nem mesmo consegue se desenvolver e vive como um homem comum. O livre arbítrio, a natureza humana e os sentimentos que o envolvem esbarram nos princípios imutáveis do Criador. Muitos fatos de sua vida foram canalizados para seu desenvolvimento eustásico, como a morte de seus pais em meio à guerra, que foi consequência de uma indução superficial do Vale para evitar que criasse apego à família. Traços de sua personalidade sempre tenderam à auto reclusão e ao isolamento, para mantê-lo longe das pessoas. Sua timidez e quietude foram programadas para contribuir com sua Eustase. Apesar disso, não foi possível frear o sentimento que está no seu coração, que é o poderoso amor que sente por Eliff. Existem coisas que não se pode determinar.
E em meio àquela conversa, Doto começou a questionar o risco que estava correndo. Se o grande objetivo de um austeiro é se desenvolver para destruir Ectus, e isso é atrapalhado por sentimentos como o amor, o que seria feito para quebrar o bloqueio? Seria possível que tentassem matar Eliff? E essa ideia percorria o cérebro dele, deixando-o assustado, fazendo-o arregalar seus olhos. E pensou "o que queriam Irílio e Fisto?" Com medo, Doto lentamente afastou-se, ainda agachado, apanhando discretamente um retalho de madeira.
- Entendi, Irílio. Mas uma coisa não se encaixou ainda. Onde você e Fisto entram nesta história? - Perguntou desconfiado, apertando seu olhar sobre os do absário, comprimindo a estaca de madeira na mão.
- Não desperdice seu tom de ameaças! Solte este objeto, você está canalizando seu ódio para a pessoa errada.
E Doto foi pego desprevenido e afrouxou os dedos do retalho.
- Eu e Fisto, de fato, somos enviados do Vale. Nosso objetivo era fazê-lo com que desenvolvesse sua Eustase para destruir Ectus. Porém, chegamos tarde, pois Deplório e Tuí já o observavam há muito tempo, esperando você adquirir maturidade para enfrentar a jornada. Naquela noite em Borvênia, eles o capturaram e injetaram inúmeras drogas em seu corpo enquanto estava inconsciente. Levaram-no para longe e prenderam-no com correntes a uma maca de ferro, para que você não fugisse caso acordasse. Fizeram você acreditar que nós o capturamos. Tentamos disputá-lo por inúmeras vezes, nas florestas, no roseiral, nas cavernas, na fenda, em Trenália e em muitas outras ocasiões. Entretanto, nunca conseguimos fazê-lo sair do lapso mental. Essa influência, exercida pela Eustase de Deplório e Tuí, era tão forte que não conseguimos fazer com que você nos escutasse. Nossos inimigos estavam há tanto tempo monitorando-o que o processo de domínio mental foi completo. As situações de risco que eles planejaram na floresta Cavinal e no lago em Lirembeca serviram apenas para fortalecer a confiança neles, para que você buscasse proteção. Todo seu treinamento visava a destruição dos austeiros. Não se recorda de alucinações e pesadelos da infância? Lembra-se de ter visto, em algum momento de sua vida, vultos de guerreiros alados, vozes, contatos intuitivos? Pois bem, estes eram Deplório e Tuí, consumindo sua mente.
E vieram à cabeça do borveniano turbilhões de lembranças sobre estes fatos. Doto recordava-se de sua infância, de seres ocultos nas plantações, das aparições no roseiral, das alucinações que teve em Borvênia, enquanto esteve adoecido, de toda gama de falsas intuições e medos, das silhuetas de seres alados nas janelas e portas, do estereótipo imposto de um absário portando uma lança dourada, tal qual Irílio possuía. Tudo era parte do meticuloso plano de lapso mental, não só para convencê-lo da jornada, mas também para colocá-lo contra Irílio e Fisto, para fazê-lo acreditar que lhe fariam mal.
- Nunca foi nossa intenção matar Eliff, pois isso nunca faria com que você desenvolvesse sua Eustase livremente, pelo contrário... o sentimento da perda anularia toda sua força, fazendo-a adormecer para sempre. Deplório e Tuí também sabem disso, se não soubessem, Eliff já estaria morta há muito tempo.
Por alguns segundos, o coração de Doto se acalmava em meio às batidas rápidas. Ouvindo aquelas frases, ele se perguntava o que pretendia Deplório ao poupar sua vida, minutos atrás. E Irílio parecia ouvir seus questionamentos.
- Doto, sua vida foi poupada por um motivo muito claro para nós. Acompanhamos a jornada de vocês e sabemos pelo que passaram. Lembra-se do momento em que enfrentaram um austeiro no pântano de Trenália? Pois bem, Tuí fora contemplado com câncer, mas Deplório recebeu algo que o permitiu entender as minúcias humanas. Você já deve saber que nós, absários, somos limitados em nossas emoções. Nossas atitudes são sempre frias e calculadas, é difícil nos comover. A raiva e a indiferença tomam conta de nossas personalidades. Porém, aquele austeiro tratou de inserir na mente de Deplório um pouco de abertura para que pudesse entender os sentimentos do homem. Não sabemos por que ele fez isso, mas sabemos que este fato salvou sua vida.
- Como? Não estou entendendo...
- Deplório viu em você o sentimento que alimenta por Eliff. Lembre-se que nós absários podemos decifrar seus pensamentos, embora, muitas vezes, não possamos interpretá-los.
- E porque motivo Deplório pouparia minha vida ao perceber meu amor por Eliff?
- Esta é uma longa história, Doto. Por agora, basta você entender que Deplório busca segredos que nunca poderão ser descobertos. Ele é mais velho do que pensa... e nossos encontros aqui no mundo material não foram os primeiros. Se pudesse definir Deplório apenas por uma palavra, diria "oportunista". Ele busca decifrar o sentido da vida, mas esbarra na mente intransitiva e inerte dos absários. Talvez ele esteja tão entorpecido atrás destas informações que sua lógica já não funcione perfeitamente. A angústia de não poder absorver grandezas como o amor, a compaixão, o remorso e a alegria o deixou louco o bastante para negociar com Ectus. Havia um trato em questão. Pelo que sabemos, Ectus se propôs a dar-lhe uma das respostas que procura, desde que trouxesse você até ele. Se o lapso mental fosse desfeito, ele deveria matá-lo e abortar a missão. Mas pelo que vimos agora, no ato em que ele desistiu de esmagá-lo com aquela madeira, talvez tenha quebrado sua palavra, isso é do feitio dele. Provavelmente Deplório viu em seus sentimentos um caminho mais fácil, um atalho para encontrar essas tais respostas. Decidiu, pois, poupar sua vida para estudá-lo.
- Mas o que ele pretende agora?
- Não sei ao certo. Ele está alucinado, desesperado para encontrar respostas. Ele acha que vai encontrá-las no sentimentalismo humano. E parece que ele enxergou uma oportunidade ao notar o amor incandescente que você alimenta por Eliff. Não sei o que ele pretende neste estado desequilibrado e obsessivo. Precisamos matá-lo, aproveitar o momento de fragilidade dele. Está na hora de alguém impedi-lo de prosseguir nesta busca infundada que tem causado tantas mortes. Caso contrário, ele pode recuperar sua sanidade e prosseguir no plano de leva-lo até Ectus. Evitar que a Ilounastia ocorra ainda é o nosso grande objetivo, apesar de sabermos que Ectus encontrará outra maneira de provocar o estopim do desequilíbrio.
Então o coração de Doto voltou a bater como um terremoto, motivado pela raiva, pelo desejo de enfrentar seu inimigo. Sem pensar no que fazia, apanhou a adaga negra que estava no chão, ainda suja com o sangue de Irílio.
- Não faça isso, deixe-a aí! Nunca mais toque nessa adaga, ela vem te consumindo há muito tempo. É um artifício de Deplório e Tuí para medirem o nível de seu lapso mental, quanto mais negra a lâmina, mais cego você está.
Doto entendeu, então, que manchas escuras eram aquelas que apareciam a cada vez que executava um austeiro e soltou a arma.
- Não haja por impulso! Deplório é muito forte, você precisa se preparar. Como pretende enfrentá-lo com esta perna ferida? - Perguntou Irílio, olhando para a panturrilha de Doto ensanguentada. – Vamos! Sente-se aqui.
Doto se pôs ao lado dele e tentou imaginar o que ele faria. O absário apalpou a perna, analisando o ferimento, depois sacou de seu equipamento uma faca pequena e afiada e disse:
- Isto vai doer, Doto!
E antes que o camponês pudesse pensar a respeito, o absário enfiou a faca em sua ferida, girando a lâmina, como se tentasse alargar a abertura do machucado. Doto rangeu os dentes e murmurou, sentindo muita dor, mas o guerreiro não parou de inserir a faca, como se estivesse cavando sua carne. E certo momento ele puxou a ponta de um fragmento de madeira, ainda alojada na panturrilha.
- Existe um retalho de madeira encravado aqui. Aguente firme, vou puxá-lo!
E em um ato rápido e brusco, Irílio retirou uma estaca de cerca de sete centímetros que estava enterrada na perna do borveniano. Doto gritou e sentiu tanta dor que ficou com a visão embaçada e escura, em seguida, desmaiou. Irílio estancou o sangramento e tratou do ferimento enquanto ele ainda estava desacordado.
* * *
Insólito acordou no mesmo lugar onde estava, debruçado sobre o ombro do absário. Com o corpo frio e dolorido, viu que o incêndio ainda consumia os vestígios da casa. Recuperando sua lucidez, levantou-se e notou que o ferimento de sua perna estava enfaixado.
⸺ Irílio, você está bem?
O absário não respondeu, permanecia com os olhos arregalados e a respiração muito ofegante. Doto se aproximou para observá-lo e notou que ele tinha espasmos pelo corpo todo. Irílio o olhou vagarosamente e disse com a fala entrecortada:
⸺ Doto, não posso mais ajudar. Achei que suportaria, mas minha Elementarie está se esgotando depressa. Você está sozinho agora. Termine o serviço. Não deixe que Deplório prossiga com seu plano.
O absário reclinou a cabeça para o lado lentamente, com a boca entreaberta, de onde escorreu um fio de sangue. Ele estava morto e sua expressão parecia tranquila e serena, tal qual alguém que encontra a paz interior e sossega os ânimos na ternura do espírito. O borveniano dedicou alguns segundos de respeito ao cavaleiro alado, sentindo remorso por, de uma forma ou de outra, fazer parte de todo aquele caos.
Agora os pensamentos de Doto não conseguiam abandonar a imagem de Deplório, pois sua Eustase o deixava livre suficiente para manter-se arisco e determinado. Algo dentro dele ansiava ardentemente por destruição.
Sem pensar muito, Doto tirou do equipamento de Irílio um facão de lâmina curva e amolada, com cerca de cinquenta centímetros de comprimento, apropriado para cortar cana, e tentou sentir a Eustase de seu inimigo. Embora ele estivesse em um bosque qualquer, perdido nos arredores de Veleiros, não seria difícil encontrar Deplório. Ele podia ver um templo no alto de uma colina, perdido em meio às árvores da floresta. Era pra lá que seu instinto apontava. Alguns minutos de corrida seriam necessários para que ele chegasse à construção.
Sua Eustase o alertava sobre a presença de Deplório. Sabia que ele estava ali, escondido em algum lugar. Tentando não ser percebido, Doto deslocou-se silenciosamente por trás das árvores mais grossas. Para sua sorte, o som do vento fazia os galhos balançarem e abafar o barulho das pisadas nas folhas secas. Andou da maneira mais furtiva que era capaz, mantendo o tronco arqueado e os joelhos dobrados para diminuir a silhueta. Por fim, chegou a uma árvore frondosa já no alto do morro, a cerca de cem metros do templo. Aproveitou aquele local para retomar seu fôlego. Lá de cima, ele conseguia ver a cidade de Veleiros, com seus pequenos pontos de luz destacados na escuridão. Havia alguns barcos e navios atracados na praia. Doto olhou para a linha do oceano no horizonte e viu uma região do céu tomada por nuvens carregadas, tingidas de um tom avermelhado. "Talvez a Ilounastia já tenha começado...", pensou.
Passado o tempo para descansar, o camponês correu velozmente até recostar-se nas paredes de pedra do templo. Usando-as como anteparo, foi contornando o perímetro até chegar à frente da construção, onde podia ver a porta entreaberta. E logo uma forte manifestação de sua Eustase o fez sentir que havia alguém ali dentro. Por isso, forçou a porta até que o espaço fosse suficiente para ele passar. Discretamente, ele entrou.
Seu coração pulsava como nunca, na expectativa de logo defrontar-se com Deplório. Tudo estava muito escuro, não havia velas nem outro tipo de iluminação, a não ser o pouco brilho branco das luas, que adentrava o recinto pelas aberturas no telhado. Os bancos de madeira para assistência, as colunas de pedras, as estátuas espalhadas pelo ambiente... tudo estava encoberto pelo manto negro da noite. E Doto caminhou alguns metros em direção ao altar daquele ambiente religioso. Certo instante, forçando suas vistas, ele viu algo que o deixou perplexo.
Uma figura grande e obscura se mantinha nas sombras. Só se podia ver o brilho de seus olhos verdes, imersos na penumbra. Aquele era Deplório, longe de estar com sua habitual postura alva e serena, pois estava tomado por uma aflição nunca vista antes. Alguma coisa mexia com a cabeça dele e não seria surpresa que fosse sua nova percepção do sentimento humano. Ele estava curvado para frente, com os braços envolvendo o tronco, pressionando o peito. Não se mexia, apenas respirava ofegantemente, ocultando-se atrás dos contornos de uma banqueta.
Doto viu as pontas das asas dele serem ligeiramente tocadas pelos raios finos de luz que invadiam o local. Algo ali trazia arrepios em um misto de medo e ódio.
- Doto, não se aproxime! - Deplório tinha o tom de voz ofegante.
O camponês congelou sua caminhada, ainda se esforçando para enxergar aquela cena. E em um rápido relance viu o absário levar as mãos à cabeça e envolve-la com os dedos longos e ossudos. Seu ritmo cardíaco, então, acelerou e seus olhos inundaram de lágrimas. Deplório o observava sério, com a pálpebra esquerda tremendo, as pupilas dilatadas e os dentes cerrados em um ato de tensão.
Com o facão em punhos, as pernas abertas em postura de combate e o olhar perfurando aquele teatro de loucura, Doto hesitou. Ele não sabia que atitude tomar, mas não poderia simplesmente ficar parado.
- Que insensatez sua, Doto. Enfrentar-me não é uma boa escolha, você sabe disso.
Doto sentia como se uma pedra estivesse entalada na garganta e não disse nada. E então o absário ficou alguns segundos em silêncio e fechou os olhos. Com a cabeça baixa ele parecia remoer um sentimento latente em seu interior, como se sua percepção fosse açoitada por sofrimento e dor. Logo ele começou a ter espasmos e disse com a voz trêmula, gaguejando, de uma maneira que Doto nunca o havia escutado:
- Eu preciso... eu preciso entender! Não suporto mais tocar essa textura confusa do amor... – murmurou. - Consegue me explicar o que há de palpável neste sentimento desmantelador? Não aguento mais sentir esta falta de plenitude. É como sentir pela metade, como estar à margem da vida, como manter-se sempre na eminência e nunca no desfruto total.
Deplório estava inquieto, balançando o corpo para os lados, enquanto sua silhueta subia e descia devido à respiração profunda e intermitente. Certo instante, ele se posicionou ligeiramente à dianteira, sendo iluminado pela luz que emanava do alto. Ali Doto percebeu o corpo dele suado e sujo, com vários cortes e sangue seco, decorrência das últimas lutas. As veias saltavam pelos ombros e antebraços. Os olhos do absário assumiram um aspecto obsessivo.
- Gostaria de experimentar um pouco do que vem a ser a vida, imersa nessa obsessão absurda pelo conceito do sentir, permeada por ondas de hormônios inflamados e ardentes. É tortura tentar entender o desejo que alimenta a ânsia do existir. Será que deveria experimentar um pouco do sabor de Eliff para entender isso tudo?
E, naquele momento, não se podia distinguir qual dos dois portava loucura maior, pois Doto elevara sua raiva ao nível máximo, imaginando como dilaceraria o corpo de Deplório com os próprios dentes. Os dois tinham na forma de se encarar tipos de patologia semelhantes, em que se extraviava qualquer estímulo da normalidade. Tocar no nome de Eliff despertava em Insólito um sentimento de ódio.
Entretanto, em uma fração de segundos, os pensamentos de Deplório pareciam decolar para longe, deixando sua expressão inerte, com as pálpebras cobrindo metade dos globos oculares, em um semblante vazio e cansado. Aos poucos, ele afrouxou os braços, murchando sua silhueta, e ficou cabisbaixo.
Neste momento, Doto observou a figura depreciadora de Deplório desabar e ser iluminada por um facho de luz. Ele estava de joelhos no chão, com as mãos envolvendo a cabeça, tremendo e suando muito, como se estivesse em choque. Ainda olhando para o chão, ele gritou tão alto quanto pôde:
- Tire isto de mim!!!
Em seguida, ele levantou o rosto bruscamente para direção de Doto, com os olhos arregalados e uma expressão de fúria. Insólito notou as veias saltando na testa dele e o suor escorrendo pelo rosto em meio ao trepidar frenético e travado do corpo. Inconscientemente, o camponês sabia o que se sucederia.
E estavam os dois, agora, entre olhares previsíveis, pois a luta parecia a única opção. Embora o camponês o temesse, não fugiria; estava determinado a enfrentá-lo. Poucos segundos foram necessários para que Deplório se levantasse, expandindo as asas para o alto lentamente, aproximando-se dele em um andar desequilibrado, como se estivesse entorpecido e tonto.
O absário se aproximava, mas não esboçava agressão. Enquanto ele avançava, o camponês se afastava, recuando em passos curtos, até que ficasse encurralado, com a porta à suas costas. E quando estavam a uma distância de cerca de um metro e meio, Doto foi surpreendido por um salto de Deplório, que o prensou contra a madeira da porta, fechando-a. O movimento fora tão inesperado que Doto não conseguiu defender-se de imediato. Porém, era tarde para cogitar qualquer coisa que não fosse a morte na cabeça do camponês. Na busca desenfreada pela sobrevivência, Doto usou o facão e rasgou a lateral esquerda do tronco de Deplório.
O absário nem mesmo se contraiu ao ser cortado. A lâmina perfurou sua pele e atravessou o intestino grosso e o rim direito. Mas o cavaleiro alado apenas o abraçou, envolvendo-o por completo com seus braços compridos, pressionando-o contra seu tronco. Ficaram alguns segundos parados naquela posição, até que ele disse:
- Doto, não posso mais suportar isso!
E Doto ficou completamente inerte e chocado, sem poder reagir. Ele podia sentir o calor emanando do corpo do absário e ouvir as pesadas batidas do coração dele. Deplório, então, fez ecoar um grito melancólico e desesperador, que foi se arrastando e perdendo força até culminar com a falta de tom que anunciava um choro. Entre o zumbido intermitente e mudo do pranto e o apertar mais intenso daquele abraço, o absário pousou lentamente seu queixo sobre a cabeça de Doto. Depois ficou em silencio e estático, com o olhar vazio, esboçando o desabar dos ânimos. Não se sabia mais o que aquela criatura atordoada queria.
Entretanto, em um ato contínuo e lento, Deplório gritou intensamente e apertou o corpo de Doto com força, espremendo-o contra seu tronco, fazendo-o sufocar. Em poucos segundos, os ossos do borveniano cederam à pressão e quebraram, comprimindo e esmagando os órgãos internos. Doto, com o rosto junto ao tronco do absário, expeliu sangue pela boca e sentiu que estava na hora. A sensação de ouvir seus ossos quebrarem boicotava qualquer emoção, até mesmo as repercussões de dor e agonia, fazendo-o com que ficasse em completo silêncio. Aos poucos os olhos dele foram abandonando a vividez e se perdendo no infinito profundo de sua existência. Em um ato brusco, então, Deplório bateu suas asas com rapidez e tomou os céus agarrado ao camponês, rompendo o telhado do templo.
O cavaleiro subiu em movimentos rotacionais até atingir uma grande altura, depois parou de bater as asas e deixou o corpo despencar lá de cima, ainda girando, deixando-as frouxas para os envolverem. Eles caíram e sumiram no meio da madrugada até mergulharem no oceano, em uma porção do mar perdida, em qualquer lugar inóspito e esquecido. E os dois afundaram nas profundezas daquelas águas e não foram mais vistos. Doto carregou até o último segundo de sua lucidez, a imagem de Eliff, temperando seu pensamento, trazendo sentido à vida. Ali desmoronavam os pilares que sustentavam o conceito do existir.
* * *
Entretanto, resquícios dos sentimentos de Doto pareciam pendurar-se em uma nova forma de existência, em que o tempo se perdia na ilusão para replicar a vida. E, no fundo obscuro do oceano, sob a madrugada sem fim, olhos verde celeste se alimentavam na seriedade, piscando, desejando a mais sublime sensação humana.
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