Berço de luz
Intuições fortes alarmavam a mente de Doto, tornando claro quais seriam seus próximos passos. Sentia como se seu organismo fosse independente e ditasse as regras. No seu subconsciente, uma série de imagens sequenciadas alternava como um álbum de fotografias, trazendo lembranças do grande roseiral. Ele havia fugido ainda de madrugada, sem avisar ninguém. Trouxe consigo um velho saco de pano que Ordero usava para colher milho e recheou-o com frutas e outros alimentos. Também teve o cuidado de encontrar um cantil para transportar água e calçar as botas de seu padrasto. Minutos antes de pular a janela, ainda revirou o baú do quarto e encontrou a adaga que Deplório e Tuí o deram; Ordero havia guardado ali dentro sem ater-se muito ao objeto em si.
Sua condição física não era das melhores, pois os últimos ataques de convulsão o tiraram a disposição. Entretanto, sentia-se capaz de prosseguir, parecia que quanto mais ele se afastava de Borvênia, mais seu corpo se recuperava. Aos poucos ele estava se conformando com sua complicada situação. Começou sua viagem pelas estradinhas de acesso da vila, tomando o cuidado de não fazer barulho para não ser percebido. Quando amanhecia, apanhou aquele antigo mapa de pano que achara junto da adaga, que era seu único método de orientação.
"Estou deixando Eliff... E por quê? Seguindo esse mapa velho sem ter um objetivo definido, sem ter explicações. Sou apenas eu, meu instinto e meus ressentimentos por deixar a garota que eu amo para trás. Devo estar ficando louco..." – Pensava. – "E a recompensa para tudo isso pode ser descobrir que essa jornada pode gerar minha própria morte." Refletia Doto enquanto caminhava. Mesmo aflito com os pensamentos, não se deu ao luxo de desistir. No fundo sabia que precisava continuar. Só não sabia exatamente por quê.
O mapa o guiou perfeitamente, indicando o caminho do roseiral com nitidez, de forma que, ao meio dia, ele chegava, já sem forças, a um bosque onde apareciam as primeiras rosas. Sentou-se na sombra, ao pé de uma árvore grande e comeu algumas frutas da mochila para repor suas energias.
O calor estava ameno e trazia um ambiente próprio do outono, com muitas folhas secas se desprendendo das árvores e o vento soprando forte e frio. Doto descansava sentado e, ainda enquanto mastigava uma laranja, viu nascer do horizonte um cavalo. Por precaução, levantou-se com dificuldade e empunhou a adaga na mão direita, aguardando o animal; era raro encontrar equinos na região. Doto não sabia manejar uma arma como aquela, mas preveniu-se.
Sobre o cavalo, um cavaleiro erguia a mão, sinalizando enquanto chegava.
- Olá camponês!
Doto não respondeu e, desconfiado como um animal sob ameaça, deu alguns passos para trás até esbarrar na árvore. Não era comum o trânsito de cavaleiros pelas proximidades, exceto à Oeste de Borvênia, onde ficava Bálagos e a grande Planície da Laguna.
- Não se assuste, não vou te machucar. - Disse o homem descendo do equino.
Ele era alto, robusto, de cabelos lisos e sobrancelhas grossas. No corpo trazia um colete de ferro e uma espada grande embainhada; nas costas levava um escudo retangular de madeira e uma lança de tamanho médio. Seu cavalo estava coberto com um material de couro em que se penduravam garrafas de vidro e uma faca.
- O que você quer? - Perguntou Doto rispidamente.
- Venho do Sul, de uma cidade muito distante. Estou em busca de um lugar para pousar. Sou um soldado de reconhecimento, meu exército está a três dias daqui. Sabe onde eu posso encontrar suprimento e local protegido?
- Não sei! – Disse-lhe receoso.
Insólito notou sua própria voz lenta e baixa, pois seu organismo estava debilitado; suas pernas começavam a estremecer. O soldado ficou surpreso pelo tom agressivo de Doto, observando-o por mais alguns segundos. Logo depois virou as costas e ia montando no seu cavalo, mas resolveu parar e voltar-se para ele. O cavaleiro o analisou dos pés à cabeça e disse:
- Você está bem? Parece estar doente.
- Sim. - Disse Doto com os olhos cansados.
- Para onde está indo?
- Preciso atravessar este roseiral. - Disse ele apontando imprecisamente no mapa.
- Deixe eu ver isto.
O viajante pegou o mapa, o estudou durante alguns instantes e discretamente olhou para o saco que Doto deixara no chão.
- O que tem neste saco? - Perguntou, colocando a mão sobre o cabo da espada.
Doto o encarou morbidamente por alguns instantes, depois se agachou, pegou o saco e mostrou o que tinha dentro. Com certa solicitude o guerreiro perguntou:
- Este caminho não foge muito de minha rota. Quer que eu o leve até o final das roseiras? Posso te ajudar se você me guiar...
As palavras do soldado foram diminuindo de tom até se extinguirem. Doto apagou, estava tendo uma nova crise convulsiva em que saiu de si e apenas sentiu o cenário a sua volta girar infinitamente e culminar em um súbito desmaio.
Muitas horas se passaram e Doto acordava. Estava em um movimento rápido e galopante, já sob o céu escuro e nublado. O guerreiro o segurava em cima do animal em uma cavalgada veloz. Tudo ocorrera muito rápido e quando ele deu conta de si, percebeu que eles estavam sendo perseguidos por lobos, que a todo o momento tentavam abocanhar as patas do cavalo.
- Segure-se! - Exclamou o guerreiro.
E tudo sacudia como um turbulento furacão, pois o cavalo corria muito rápido e obedecia a cada comando do guia. Doto, desorientado, apenas se segurou firmemente, buscando recolher as pernas mais para cima. O cavaleiro fazia ziguezagues no caminho para tentar despistar os lobos. Com uma mão ele segurava a rédea do cavalo e com a outra, usando a espada, golpeava os lobos, que surgiam alternadamente de um lado e outro, mordendo o ar na tentativa de abater a presa.
Os golpes a seco assoviaram várias vezes até atingirem o focinho de um lobo. A criatura uivou longamente e ficou para traz com a mandíbula ensanguentada, enquanto os outros continuavam a caça. Em um novo corte, o cavaleiro acertou outro, dessa vez, na pata dianteira, de forma tão violenta que espantou os demais predadores e o cavalo partiu desenfreado pelo corredor entre as rosas.
Era madrugada e o risco havia passado, porém, Doto agora se sentia arriado, pois o último intempere convulsivo arrancara todas as suas forças de modo que ele mal podia raciocinar sobre o que exatamente estava acontecendo. Algo que ele percebeu foi que a noite estava muito escura, fria e úmida; provavelmente havia chovido, pois eles cavalgavam sobre uma lama escorregadia.
A viagem prolongou-se até que começassem a surgir árvores frondosas, espalhadas pelo roseiral como ilhas mergulhadas nas flores. O homem, então, parou o deslocamento e desceu do cavalo. Em seguida, apanhou Doto no colo, o levou até uma parte gramada do terreno e o deixou deitado.
- Força, meu jovem! Coma isto e recomponha-se. - Deu-lhe uma raiz comestível.
Doto sentia-se esquisito e confuso, seu raciocínio estava mais lento que o normal e parecia que estava sofrendo grandes influências dos cavaleiros do Norte, por mais que ele ainda não entendesse como isso acontecia. Seus olhos estavam fundos, inchados e somavam-se à febre alta, que o desmanchava em dor. Sem forças para falar, apenas mastigou a raiz e escutou o cavaleiro.
- Esta raiz possui um alto poder energético, você perderá o sono e ganhará disposição para avançar por um bom tempo a pé. Vou deixá-lo aqui, pois as árvores estão tornando-se fechadas sobre o caminho e não posso passar com meu cavalo. Espero tê-lo ajudado.
E o soldado partiu, deixando na cabeça de Doto aquela memória incompleta e dolorida. Após alguns minutos, ele ganhou forças para se levantar e prosseguir; deu-se conta de que estava sozinho. Ao olhar para os lados percebeu que a região onde estava já tinha características próximas as que ele presenciara ao abandonar as ruínas, semanas atrás. O terreno se inclinava para a direita formando uma colina bastante suave que se perdia na escuridão, enquanto à esquerda o relevo era mais acidentado e trazia vegetação mais densa.
Na medida do possível ele avançou entre as árvores. Os largos troncos foram tornando-se mais numerosos e as rosas ocultando-se numa vegetação mais fechada e emaranhada até que o caminho ficasse escuro e estreito. Em poucos minutos, Doto havia penetrado em uma trilha extremamente hostil.
A ultrapassagem daquele trecho foi tão árdua quanto os momentos que vinha passando, pois havia muitos galhos espinhosos e secos que o arranhavam e o cortavam conforme ele se embrenhava na trilha. Havia locais onde ele não conseguia sequer andar sem que se enroscasse em cipós e folhas ásperas, daí fez-se necessário o uso da adaga para abrir o caminho. A ideia funcionou e seu trabalho foi facilitado, pois a lâmina da arma partia com facilidade aquela grade vegetal.
Esse cenário prevaleceu durante um bom tempo e se prolongou até o dia amanhecer, constituiu uma tarefa extremamente cansativa, mas Doto não podia pensar em nada, apenas em seguir e seguir, na esperança de encontrar novamente Deplório e Tuí, pois era isso que seu instinto dizia. No irradiar da luz, ele chegou ao fim da parte fechada da trilha e começou a reconhecer o cenário rosado novamente.
A disposição que há pouco sentia dizimou-se nos numerosos golpes contra a vegetação. Sua força aparente se foi e deu lugar ao seu estado fraco; o efeito da raiz havia se esgotado. Pouco a pouco, ele caminhou na grama tendo seu corpo levado algumas vezes ao chão, pois quase não podia manter-se de pé. Nesse deslocamento consumiu toda água e todo alimento que trouxera.
No meio da manhã, então, chegava um borveniano extremamente apático e cansado na estrada. Nesse momento, apesar de enfraquecido, ele reconheceu o local. À sua frente estavam as ruínas por onde esteve, na subida de uma suave colina que se rebaixava para direita. Para a esquerda, o terreno subia mais íngreme e longo até esconder alguns arbustos no horizonte.
O céu estava ensolarado e o clima relativamente quente. Um silêncio provocante dominava o local, pois nenhum pássaro cantava, nenhum grilo assoviava e nem sequer o vento soprava. Doto recebera em sua mente a lembrança vaga de Deplório e Tuí, seus guardiões. Ele não sabia porque exatamente os procurava, mas sua intuição tratava de conduzi-lo. Tudo o que ele queria era parar de sofrer aqueles surtos horríveis e voltar à sua vida de camponês.
Primeiramente, ele olhou ao seu redor, caminhou e entrou na arena em busca de vestígios, mas nada encontrou. O cenário continuava da mesma forma, somente havia crescido mais mato e o sol imprimia um aspecto calmo e abandonado. Doto, então, perdeu seu objetivo, pois, naquele instante, a excitação mental que invadia seu ego havia morrido. Foi como acordar por intermédio de um banho gelado, como despertar de um sonho de forma repentina. Sua capacidade intuitiva diminuiu drasticamente e ele não via mais finalidade naquela viagem. Era como esperar por alguém que talvez não existisse. Ele teve dúvidas a respeito da existência de Deplório e Tuí e até mesmo dos fatos ocorridos no passado.
"Não é possível que aquela sensação tenha desaparecido. Onde está toda a intuição? Quando as primeiras evidências dessa loucura ficaram claras, eu deveria ter desistido. Arriscar a vida nessa jornada foi burrice. Onde eu estava com a cabeça?" Ele pensou enquanto circulava pelo lugar. Insólito buscou um sentido lógico para justificar sua vinda, mas não encontrou. Sentia-se tolo por ingressar naquela jornada confusa.
Doto ficou um tempo indeciso no centro da arena e ajoelhou-se, por causa de uma dor forte no peito. De repente, uma sequência extraordinária de eventos começou a ocorrer: sua visão turvou-se e, logo a seguir, todo o ambiente a sua volta escureceu, de tal forma que superava o ofuscamento de qualquer noite. Aquilo não parecia exatamente um sonho, talvez estivesse mais próximo de uma alucinação.
A iluminação havia acabado e, aos poucos, começavam a surgir luzes amareladas flutuantes. Doto, muito confuso, levantou-se e olhou para seus pés, que pareciam flutuar, pois nem mesmo o chão podia ser visto. As luzes multiplicaram-se e vieram a juntar-se com um zumbido agudo que muito incomodava sua audição.
Segundos depois, as luzes uniram-se duas a duas adquirindo um aspecto muito semelhante a pares de olhos, que iam se completando por rostos e depois por asas. Enfim, formavam-se muitas pessoas que o observavam. Olhavam sorridentes, compenetrados, como raposas em cobiça a sua presa.
Tudo parecia vibrar, enquanto o círculo de cavaleiros alados fechava-se sobre seu corpo, cada qual com as mãos estendidas, na intenção de tocá-lo. E a loucura se transformou em pavor, pois Doto estava certo de que aquilo era real.
Os indivíduos bloquearam qualquer rota de fuga e encostaram as mãos no corpo dele. Cada toque lhe provocou uma forte sensação de queimadura e, em poucos segundos, a ardência arrastou o pânico, o medo e o desespero, unidos às chamas que incendiavam seus braços e afloravam a dor e a contração.
O fogo abrangeu seu tronco, cabeça e braços antes que ele pudesse pensar. Assim, ele sentiu queimar sua carne na incandescência mortal, derreter sua pele e carbonizar seus ossos. A resposta de seus reflexos foi lançar-se ao chão e debater-se para tentar apagar as chamas, mas era inútil.
Em um segundo instante, Doto gritou fechando os olhos, como alguém em desespero para sair de uma prisão. Um estalo alto surgiu do além e, inesperadamente, o fogo cessou. Seu corpo estava no solo, intacto! Os raios de sol nasceram como se estivessem saindo de traz de uma camada espessa de nuvens, não havia dor, somente uma sensação extremamente desagradável, esculpida em pessimismo e medo.
Doto abriu os olhos. À sua frente estava Deplório, altivo e concentrado. Aquela situação o fez experimentar um surto depressivo que o levou ao chão em lágrimas. Era como se estivesse protegido da tortura, como se Deplório o tivesse tirado de um abismo de dor gigantesco e, assim, Doto o abraçou como um filho abraça o pai, imprimindo-lhe o alívio daquela presença.
- Me tire daqui, por favor. - Implorou.
- Fique calmo, estou aqui, nada mais acontecerá a você. - Respondeu Deplório pacientemente.
- Não posso suportar mais. - Choramingou.
- Você está seguro agora, conseguiu concluir seu objetivo, tranquilize-se. - Disse ele envolvendo-o com os braços e acariciando sua cabeça.
Doto sentiu-se libertado e calmo, mas muito exausto, muito mais do que em qualquer outro momento, por isso, adormeceu instantaneamente nos braços de Deplório e por ele foi carregado. O sono intenso deixou em branco os momentos seguintes.
* * *
Doto Insólito acordou. Viu um céu muito estrelado e decorado por duas belíssimas luas vizinhas. Daquela região podia-se vê-las melhor. Eram exuberantes, muito bem iluminadas e a menor sobrepunha um quarto de área da maior. A população de Borvênia, bem como a de muitas outras cidades das redondezas, as chamava de Gêmeas do Brilho, ou, às vezes, de Mãe e Filha. O posicionamento delas indicava a estação do ano, alertando sobre as épocas de clima adequado para o plantio de cada cultura vegetal.
Muitos grilos e sapos faziam ruídos. Doto estava deitado sobre uma rocha grande rodeada por alguns pinheiros. Olhou ao redor e notou que havia uma vegetação rasteira e seca, com árvores bastante separadas umas das outras e muitas pinhas espalhadas pelo chão. A claridade das luas permitia que ele enxergasse razoavelmente bem os contornos do terreno e das copas das árvores e percebesse que estava em uma ladeira não muito íngreme.
Ele sentia frio nas mãos e nos pés enfiados nas botas, o que lhe causava certo desconforto. Também o ar gelado o deixava mais incomodado, pois vestia apenas uma blusa fina e uma calça de fios de algodão já surrados por conta da viagem.
Deplório surgiu caminhando entre as árvores, carregando na mão direita uma espada grande e refletiva, que aparentava ser bastante pesada. Suas asas destacavam-se por serem tão incomuns. Antes que ele chegasse, Doto sentou-se sobre a pedra.
- Como se sente, Doto? - Perguntou Deplório.
- Me sinto bem – Esfregou os olhos. – Mas... estou com uma sensação esquisita. O que está acontecendo? Sinto meu corpo formigar.
- Você acaba de iniciar seu amadurecimento mental. Aquela fraqueza que sentiu na arena pela manhã foi o primeiro sinal de reação que sua mente sofreu. É normal sentir alguns sintomas corporais como falta de sono, formigamento e dores de cabeça.
- Como assim? Do que está falando?
- Vou esclarecer alguns fatos.
Doto acomodou-se em cima da pedra e ficou atento.
- A face anormal de sua mente está começando a agir. Desde o momento em que conseguimos tirá-lo das mãos dos cavaleiros do Norte e levá-lo para aquela caverna até o último surto, seu poder estava adormecido, inclusive enquanto esteve em Borvênia. Você sofreu forte domínio dos cavaleiros do Norte durante o tempo em que esteve longe de nós, mas está tudo bem agora, pois quando desmaiou na última vez, na arena, você atingiu o que nós chamamos de Berço de Luz, o início de seu esforço espiritual, quando seu dom começa a responder às adversidades externas.
Houve uma pausa e Deplório embainhou sua espada, fazendo assoviar a lâmina, enquanto seu parceiro surgia à esquerda e se aproximava. O olhar castanho e apertado de Tuí faziam com que Insólito sentisse medo.
- Vou explicar o que vem ocorrendo com você. - Deplório sentou-se ao lado dele.
- Preciso mesmo entender isso tudo... Estou confuso.
- Em primeiro lugar, algumas considerações sobre mim e Tuí devem ser feitas. Pode perceber que somos um tanto quanto diferentes, por possuirmos estas asas ou, se preferir, articulações. Somos assim porque pertencemos a um seleto grupo do Vale, de onde viemos. Fomos treinados em um lugar remoto do mundo espiritual e honrados com o signo de absários. Os absários são criaturas como nós, com asas, desenvolvimento em altura avantajado e grande capacidade física. Existem algumas peculiaridades sobre nós que você entenderá com nosso convívio. No presente momento, basta que saiba que fomos enviados para este plano com o objetivo de ajudar a desenvolver sua mente para que possa destruir Ectus.
Doto começava a reparar a maneira séria de Deplório ao pronunciar as palavras. Tinha certo receio de dizer algo e ser retaliado, por isso apenas escutava.
- Agora, explicarei algo muito importante, que, apesar de complexo, precisa ser entendido por você. Caso não consiga absorver tudo, fique tranquilo, sua mente está evoluindo e, junto com ela, sua capacidade de entendimento.
- Tudo bem, me esforçarei. – O camponês tinha receio do que ouviria.
- Bem... Comecemos pela base de tudo: a energia! Certo dia, eu lhe disse que toda matéria é formada de energia. Isso é verdadeiro e define o que somos. Ela é dividida em duas partes, as quais chamamos de Biostere e Eustase. Biostere refere-se à energia bruta e estática que forma a matéria e que dá estrutura a tudo o que se pode tocar. Em contrapartida, a Eustase é a parte efêmera e nebulosa, difícil de ser percebida, que forma a consciência, os sonhos, os pensamentos e outros tantos sentidos íntimos dos seres. Em suma, a Biostere é imutável, por sua rigidez e aspecto morto, enquanto a Eustase constitui uma carga de energia maleável que pode ser despedaçada e reconstruída, assumindo outras perspectivas.
Deplório agachou-se e apanhou uma pinha. Começou a manuseá-la apertando-a, fazendo soltar seus gomos. Nesse momento, retomou sua fala.
- A energia é como uma nuvem, ou líquido, que se agrega, concentra, desconcentra, esparge e massifica. Os dois tipos de partícula trabalham juntos para dar ao mundo esse aspecto tão ímpar. Vê esta pinha? Nela está contida uma quantidade de Biostere e outra de Eustase. Normalmente, existe uma gradação que explica o nível de cada energia presente na matéria. De forma simplificada, a rocha possui pouca Eustase, mas grande Biostere; os animais irracionais e os vegetais possuem quantidades mais ou menos equilibradas das duas forças; o homem, especificamente, possui maior grau de Eustase do que de Biostere. Assim, pode-se dizer que a quantidade de Eustase está relacionada à capacidade intuitiva e de pensamento, racionalidade, enquanto a Biostere está mais presente em objetos brutos, rígidos e sem vida.
- Isso é um pouco confuso. De onde vieram essas ideias? - Doto sentia incômodo nos olhos.
- Não se espante, com o tempo se acostumará com esses termos e significados. Outro ponto que preciso tocar refere-se à mistura dessas duas energias. A Eustase é uma forma de partícula em movimento desorientado que muda de sentido a todo momento. Por isso, às vezes ela cria uma espécie de barreira ao redor dos objetos, que bloqueia a entrada de Biostere e da própria Eustase, quando em condensação diferente. A isso chamamos de esteio de luz, pois ela funciona como uma proteção aos elementos próximos. Outra característica dela é poder atuar, em caráter excepcional, sobre a Biostere, o que você provavelmente já experimentou.
- Eu? Como assim? Nunca senti nada sobre isso.
- Calma, camponês! Farei um retrocesso de seus últimos dias, ressaltando os fatos a isso relacionados. Você compreenderá.
- Certo...
- Sua história começou em uma noite de outono. Os cavaleiros do Norte, que também pertencem à classe dos absários, vale ressaltar, o capturaram na madrugada, injetando no seu corpo diversas drogas. Eu e Tuí travamos uma luta com eles e conseguimos salvá-lo. Naquela fuga rápida e nauseante, o levamos para a arena, onde você recuperou sua visão. Oferecemos duas alternativas, prosseguir conosco, ou voltar para casa... Você, como era esperado, optou por voltar e, para isso lhe entregamos um mapa e a adaga. Fizemos isso porque sabíamos que os cavaleiros do Norte estariam por perto e que tentariam te prejudicar; você precisaria de algo para se defender. Resolvemos não impedi-lo de partir.
- Por que não me impediram? Queriam que eu fosse pego?
- Isso foi necessário. Sua mente estava fechada. Você mal acreditava em nossa existência e somente o sofrimento mostraria sua necessidade. Além disso, seu Berço de Luz só ocorreria se você amadurecesse e passasse a acreditar no que vinha acontecendo. Tínhamos certeza de que uma hora você compreenderia e retornaria para a arena. Levá-lo naquele estado não seria útil para nós.
- Hum... entendi. – disse, desconfortável. – Você falou que os cavaleiros do Norte estariam por perto. Acho que os vi me observarem algumas vezes.
- Esteve mais próximo deles do que pensa! Os absários do Norte queriam capturá-lo novamente, mas não conseguiam tocá-lo, pois tomamos o cuidado de induzi-lo a seguir pelo roseiral; as rosas formam um esteio de luz natural que te protegeu, impedindo que eles o atacassem. Sabíamos que eles estariam nos arredores para sondá-lo.
- Como você pode dizer que eu estava protegido? Sofri surtos horríveis e quase morri! - Disse Doto, indignado.
- Bem, os absários que nos perseguem são muito mais astuciosos do que pensamos. Infelizmente, eles conseguiram penetrar na proteção que as flores ofereciam e te desviar do caminho. Atuaram na sua mente provocando surtos corporais.
- Como isso é possível?
- Os absários são seres com acentuada quantidade de Eustase, ou seja, em nós existe mais energia espiritual do que em um ser humano, por exemplo. Mesmo entre nossa espécie há divergências, isso quer dizer que os cavaleiros do Norte podem possuir Eustase em grau diferente do nosso, apesar de pertencermos ao mesmo grupo. Este tem sido nosso maior medo, pois vêm demonstrando uma capacidade gigantesca de manipular a Eustase com perfeição. Esta é a causa de suas fortes dores de cabeça e convulsões, e também do estado inerte em que esteve.
- Como sabe desses detalhes? Não contei sobre isso...
- Durante muitas horas eu estive rastreando sua energia. Nós temos a habilidade de sentir os picos de Eustase que se destacam no ambiente. Sua mente é fácil de ser sentida, devido ao dom crítico que você possui. Dessa forma, trabalhamos constantemente na interpretação dos altos e baixos de sua exaltação espiritual. Com base nisso, deduzi seu trajeto, seus momentos de dor, de paixão, de ódio, de medo e outros sentimentos que se evidenciam no seu interior.
Doto ficou impressionado com tantas informações. Muitas delas não entendeu e, como era de costume, não se esforçou para tal, insatisfeito com sua situação. Deplório calou-se por um instante, mas logo começou novamente sua explanação interminável.
- Por isso sei pelo que você passou, Doto. Sei das dores que sentiu; sei que os viu inúmeras vezes, observando-o; sei que ficou doente e sei a quem ama. De todos meus esforços, apenas um aspecto causou-me medo em relação aos cavaleiros do Norte. Como disse, eles parecem ter pleno controle sobre a Eustase, foi por isso que perdi o controle sobre você, sempre que tentava aliviar suas dores, os absários me impediam, criando esteios de luz gigantescos sobre seu corpo. Com muita sorte e empenho, consegui me comunicar com você através de seus sonhos. Manipulei sua mente para que você compreendesse que precisava voltar.
- Por que agora não sinto mais tanta dor? - Perguntou o rapaz.
- Você está seguro ao nosso lado. Nós somos como esteios de luz ambulantes, pois carregamos está nuvem de energia à nossa volta. Enquanto estiver próximo das nossas asas, terá proteção, ao menos de invasões mentais.
Doto começou a desviar sua atenção com tantas explicações alucinantes. Deplório, ao perceber, fez uma pequena pausa, depois retomou o assunto.
- A última coisa que você precisa saber é que você entrou em um período ímpar de sua evolução. Perceberá algumas mudanças no organismo, como falta de sono e grande disposição. Sua capacidade de absorver informações e tirar rápidas conclusões aumentará. Isso tudo é reflexo de sua patologia crescendo. Talvez não devêssemos deixar seu dom evoluir, mas você precisará dele para sobreviver. Alimentaremos sua Eustase e a deixaremos crescer, para que suporte as dificuldades que estão por vir. Precisamos impedir as tropas de Ectus e, com isso, evitar o Fator Ilounastia. Quando tudo isto for feito, você terá sua vida de camponês novamente e o objetivo estará concluído. Nós prometemos!
⸺ Assim espero. Só estou aqui para recuperar minha saúde e poder voltar para casa.
⸺ Bom... – Titubeou. – Sua saúde não é o problema, acredite. Talvez a saúde das pessoas que você encontrará seja mais problemática.
⸺ Como assim? Do que está falando? – Doto tinha o tom preocupado.
⸺ Hum... Deixe isso pra lá. Se prepare para partirmos. – Deplório parecia omitir alguma coisa, desconversando.
Insólito se perguntava o que ele quis dizer com relação às pessoas que ele encontraria, mas resolveu deixar isso de lado e levantar-se para iniciar a viagem. Quando Deplório acabou de falar, arrumou os equipamentos e prosseguiu seu caminho com Doto e Tuí, sem dizer novas palavras. Optou por agir dessa forma porque percebeu que o camponês não conseguia mais compreender sobre aquilo, eram muitas informações. O jovem notava a presença de Tuí, que até ali não havia dito uma palavra sequer.
Então subiram em ritmo moderado a inclinação do terreno. Estavam em uma floresta chamada Cavinal, localizada bem a nordeste de Borvênia, que acompanhava um afluente do rio em que Doto se acidentou, semanas atrás. A viagem tinha recomeçado e novamente os passos tornaram-se numerosos. Logo o cansaço tomou conta do borveniano, que reduziu o ritmo da caminhada.
⸺ O que houve agora? – Deplório parou e virou o pescoço para ver Doto ficando para trás.
⸺ Vocês estão andando muito rápido.
⸺ Vamos, você consegue. Já te carreguei demais nessa jornada. Você precisa fortalecer os músculos.
⸺ Não existe um atalho? Para onde estamos indo?
⸺ Este é o caminho mais curto. Poderíamos voar, mas essa prática nos torna vulneráveis, pois despende grande quantidade de energia eustásica. Isso denunciaria nossa posição para os cavaleiros do Norte. Infelizmente, faremos todos os deslocamentos a pé.
Doto calou-se desanimado e voltou a andar para acompanha-los. Moveram-se por cerca de vinte quilômetros, a maior parte do caminho feita no período noturno. Não demorou muito para que amanhecesse; foi uma manhã atípica para eles, mas comum para a região. Nada podia ser visto, pois uma densa camada de neblina pousava sobre o ar. Doto seguia Deplório e quase o perdia de vista quando ele se afastava por mais de um metro, isso os obrigava a andar devagar.
Naquelas condições de visibilidade, todo cuidado era pouco. Deplório e Tuí pareciam pressentir algo ruim, pois apenas cochichavam. Determinado momento, os absários pararam, congelando todos os movimentos - Doto o imitou. O silêncio caiu devagar sobre a situação e, inesperadamente, uma flecha se projetou no ar, passando a poucos centímetros da cabeça de Tuí, que seguia na frente.
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