Capítulo 6
Bushido (武士道) literalmente, "caminho do guerreiro", é um manual e modo de vida para os Samurai. Ele possui 7 grandes virtudes; dentre elas:
礼
[Rei: Polidez e cortesia, amabilidade]
Aurora encostou as costas na porta. Aquela conversa estava sendo mais longa do que ela esperava. Lutava consigo mesma, segundo após segundo, para não abrir a porta e entrar no meio do assunto.
Desde que Tadashi entrara por aquela porta e lhe lançara um olhar sério, ela havia sido despachada para o quarto. Marie Louise e Marie Claire pouco pareciam se importar, brincando de fazer penteados malucos uma na outra, na cama da direita.
Assim que ouviu o barulho agudo de uma cadeira arrastando no chão, entendeu que a conversa havia terminado e já estavam se levantando da mesa. Agiu o mais rápido que pôde e abriu a porta de supetão, atraindo a atenção dos homens na sala.
Ela se pôs a sair do quarto, na direção do samurai, mas ele recuou mais rápido que ela e, saindo da casa, fechou a porta atrás de si. Quando ela estava a tocar na maçaneta, ouviu Frederic dizer em tom firme:
— Por que você não me contou, Aurora?
Ela fechou os olhos. Não havia mais motivos para ir atrás de Tadashi para saber o motivo da conversa: ele havia falado. E devia ter falado tudo e mais um pouco.
— Eu não sabia como você iria reagir — falou sem se virar.
— Você tem ideia do que poderia ter acontecido? Eu já não tinha te dito para não ir sozinha à floresta? Você ainda não entendeu que a Alsácia-Lorena está em guerra?!
— Foi exatamente por isso que eu fui — Virou-se. — Eu não aguento mais ver desgraça. Dor é tudo que eu vejo nessa cidade!
— É por isso que você não pode mais ficar aqui — Frederic se levantou da mesa. — Está perigoso demais. Você vai para Paris e vai levar suas irmãs com você.
—Não... — falou quase que inaudível, aproximando-se dele.
— Isso não está em discussão — impôs a ideia firmemente. — Quando trocarem os soldados do front, vocês partirão com a comitiva que volta para Paris. Vocês ficarão na casa de sua tia Océane. O samurai fará a segurança pessoal de vocês.
— E o senhor?
— Essa cidade precisa de médicos.
— Pai, o senhor tem que...
—Essa guerra não será eterna, Aurora! — falou com a voz já alterada. Parecia extremamente frustrado e tentando abafar uma mistura de sentimentos negativos. — Isso é temporário — abaixou o tom, voltando a si.
— Quanto tempo?
— Até que eu diga para que vocês voltem — impassível, moveu-se para o lado, empurrando a cadeira para baixo da mesa novamente. — Vá arrumar suas coisas, outro ataque pode acontecer a qualquer segundo.
Ela apenas concordou com a cabeça. Em silêncio e com um nó na garganta, cruzou a sala até o quarto sem olhá-lo novamente. Assim que entrou, fechou a porta e ergueu o olhar para Louise e Claire, que haviam começado a chorar antes dela. Pelo menos não precisaria lhes contar o que iria acontecer e chorar também, vez que haviam ouvido tudo.
— O papai não vai? — Claire perguntou.
Aurora apenas mordeu a parte interna das bochechas, engolindo o nó na garganta que ainda lhe doía. Balançou a cabeça negativamente, tentando não pensar em qualquer coisa que não deveria naquele momento.
— Arrumem suas malas agora — falou o mais firme que podia e foi até o armário de madeira, puxando uma grande mala de couro marrom de cima dele. — Nós vamos para Paris.
— Mas — Marie Louise se levantou da cama — eu não...
— Isso não está em discussão — lançou-lhe o olhar mais duro que tinha, repetindo as palavras do pai.
Não poderia chorar. Não poderia encorajar medo ou qualquer tipo de pânico. Precisava transparecer força para que Louise e Claire tivessem algum referencial de coragem. Precisaria engolir o próprio choro se quisesse evitar o das irmãs.
E, céus, como aquilo era difícil.
***
Ela pisou nos paralelepípedos da rua. Virou-se para seu pai, que tinha uma expressão indecifrável no rosto. Talvez fosse mágoa, tristeza, frustração... mas tratava de manter um leve sorriso. Aquele era o único sinal à sua volta de que as coisas voltariam, um dia, a ser como eram.
Envolveu o pai em um abraço apertado, ambos tentando permanecer fortes e engolindo o choro que agora parecia vir com a força de mil bombas. Afastou-se, dando tempo para as pequenas poderem fazer o mesmo enquanto ia até a carruagem. Ajudou o cocheiro a carregar as malas antes de voltar para perto do pai.
— Eu te amo — voltou a abraçá-lo. — Não se esqueça.
— Como poderia? — Frederic devolveu abraço. — Você sempre será minha garotinha, não se esqueça. — Afastaram-se. — Eu te amo.
Aurora levou as garotas até a carruagem, ajudando Claire, a mais nova, a subir. Logo em seguida também entrou, fechando a porta. Da pequena janela, observou enquanto Tadashi apareceu ao lado do pai dela, falando algo. No momento seguinte a uma breve conversa, despediram-se e ele subiu na carruagem, sentando-se com o cocheiro, na parte da frente.
Ao som de um comando gritado, um solavanco foi causado e a carruagem disparou. Ela apertou as cortinas com as mãos, cerrando os dentes antes que perdesse o controle. Puxou as cortinas, tapando a pequena janela da porta, recostando a cabeça e pensando em todas as pessoas das quais não pôde se despedir.
Havia deixado uma breve carta para Joana, na qual explicara o acontecido e passara o endereço de sua tia Océane. Havia pedido que seu pai a entregasse quando tivesse a chance, para que pudesse se comunicar com a amiga.
As crianças à sua frente se permitiram soltar choros baixos e controlados, mas doloridos. Aurora fechou os olhos com força e depois olhou para o teto da carruagem, perto de acompanhá-las, mas virou o rosto para a janela, em vez disso. Não poderia deixar de parecer uma montanha segura para as garotas à sua frente — não naquele momento.
"Coloque toda a sua dor nessa lágrima", pensou consigo mesma. "Ela será a sua única lágrima na frente das suas irmãs" completou o pensamento. Respirou fundo, soltando o ar com pesar e fechando os olhos. E uma única gota, na qual estavam condensados toda a dor do universo e todo o peso que aqueles ombros puderam suportar até então, escorreu quente e grossa pela pele de seu rosto.
E aquela lágrima secaria sozinha; com o vento, com o calor, com o tempo. Ela não moveu um músculo para secar o caminho molhado no seu rosto. Ele desapareceria sozinho, com o tempo. Como quase todo o resto.
Dali algum tempo, quando já era noite, Aurora ouviu o galopar de vários cavalos. Puxou a cortina rapidamente, vendo a comitiva que voltava do front em uma estrada paralela. Além das árvores, podia ver os homens amontoados, uns sobre os outros, jogados em cima de carroças.
Assim que alcançaram a união das estradas e a via se tornou mais larga, passaram a andar paralelos a eles. Mais de perto, percebeu que os homens amontoados já não passavam de corpos frios. Num impulso, fechou a cortina e voltou a olhar para frente, onde as duas crianças dormiam encostadas uma à outra.
Finalmente, quando a carruagem parou, Aurora saltou sem esperar que o cocheiro abrisse a porta. Inspirou o ar frio da floresta e, de olhos fechados, deixou-se ser tocada pela pálida luz da lua. Quando abriu os olhos, encontrou um ou outro soldado a observando, enquanto outros se preparavam para pernoitar.
— Nós vamos acampar aqui essa noite — Tadashi se aproximou pela esquerda, atraindo sua atenção. — Os soldados estão cansados, e não é interessante continuar o caminho sozinhos.
— Tudo bem — Aurora respondeu.
Ela ergueu os olhos para os céus. A infinidade brilhante acima deles jamais deixaria de ser estonteante. As estrelas cintilantes que iluminavam a tela negra em diferentes tons e cores, com suas longínquas luzes, tinham aparência tão delicada e suave, eram tão pequenas e meigas.
Aos milhares, enchiam até onde os olhos não podiam mais ver, banhando uma moça cansada em luz prateada. Aurora suspirou novamente, deixando que um sorriso brotasse em seus lábios. Quase podia ouvir as estrelas cintilando como sininhos de natal.
— Por que você gosta tanto de observar a natureza? — A voz de Tadashi se projetou baixa.
Ela levou os olhos até ele. Não havia visto que os militares já haviam acendido uma fogueira até perceber a iluminação alaranjada no rosto oriental ao seu lado. A luz tremulante e quente que coloria parte da face dele e deixava a outra levemente obscura lembrava Aurora do que acabara de ver. Assim como as estrelas, aquela luz tremulava. Também havia luz e escuridão, também havia contraste; era como uma parte do céu estrelado: só que no chão. Ela sorriu ao pensar nisso.
— Eu não tenho resposta para isso — falou leve e sincera —, acho que gosto de observar tudo que acho bonito — terminou, imediatamente desviando o olhar dele para a fogueira à sua frente. Talvez até mais rápido do que deveria, porque o ouviu soltar o ar pelas narinas como que em uma risada reprimida.
— Certo — pôs as mãos para trás, assumindo uma posição de seriedade. — Acho melhor que você volte para a carruagem e durma, senhorita Fontaine. Nós partimos ao amanhecer.
— Justo — se virou, subindo na carruagem sem pestanejar, antes que o clima ficasse ainda mais estranho. Bateu a porta com certa violência, o que a fez olhar para o lado, com medo de que tivesse acordado as crianças.
Assim que constatou que não o fez, respirou aliviada. Deitou o tronco no banco da carruagem, mantendo as pernas no piso. Pôs os braços sob a cabeça, deixando-se viajar nos próprios pensamentos. Como estaria seu pai naquele momento?
Estaria ele sozinho em uma casa escura que poderia sofrer um ataque a qualquer segundo? Estaria ele nas ruas ou em um hospital improvisado, cuidando dos doentes? Estaria ele na igreja?
E o que esperava por ela em Paris? E quanto tempo passaria lá? Conseguiria cuidar de Louise e Claire? Conseguiria cuidar de si mesma, antes disso?
Sentiu o peso do mundo nos ombros. A pressão de segurar todas as pontas que a guerra insistia em arrancar de suas mãos era sufocante. Tudo estava acontecendo rápido demais... e ela estava frágil demais. A moça sentia que iria rachar e cair aos pedaços a qualquer segundo.
Parecia quebrada, parecia estar segurando os caquinhos de si mesma, e não sabia por quanto tempo mais poderia fazer isso. Como areia, seus grãos escapuliam por entre seus próprios dedos pouco a pouco e sem parar. Estava perdendo o controle... e não tinha forças... para...
Um soluço de choro a alcançou.
Levou as mãos à boca, uma sobre a outra, tentando manter o barulho o mais baixo possível. Tremendo sob o vestido, o coração partido parecia querer gritar para que toda a dor dentro dele saísse.
Poderia ter erguido as mãos para o céu e gritado "por que eu?" poderia ter gritado "por que aqui?". Mas em vez disso, levou as mãos fechadas até os olhos, murmurando:
—Já não tenho mais forças; sou como água derramada no chão. Todos os meus ossos estão fora do lugar; o meu coração é como cera derretida. A minha garganta está seca como o pó, e a minha língua gruda no céu da boca — sua voz quase não saía, de modo que recitou a parte de Salmos 22 em um fio de voz. — Ó senhor Deus, não te afastes de mim... vem depressa me socorrer.
Sentado nas escadas da carruagem, Tadashi fitava o solo enquanto apoiava a mão no cabo da katana. Aqueles dizeres abafados que lhe enchiam os ouvidos pareciam ter um valor muito grande, muito além de um mantra ou uma poesia. Quis perguntar se ela estava recitando a Bíblia, vez que dizia "Senhor Deus". Desse Deus ele já tinha ouvido fala: era um Deus sem nome e, ao mesmo tempo, com muitos nomes.
Ali, do lado de fora, o vento soprava frio. Os homens se espalhavam em torno da fogueira, procurando se aquecer o máximo que podiam. Para Tadashi, seria uma longa noite acordado, atento ao menor sinal de perigo. Mas, claramente, não seria uma longa noite apenas para ele.
Tirou a mão da espada e a levou à fita dobrada e escondida em seu cinto. Àquela altura, valeria a pena ser egoísta e mantê-la consigo? Ele não tinha uma real utilidade para tal adereço e, além disso, talvez um objeto de casa ajudasse a Fontaine inconsolável.
Ele se levantou das escadas, dando duas leves batidas na porta com o dedo indicador. Alguns segundos depois, uma fresta da porta se abriu. O rosto dela estava seco, mas seus olhos e nariz estavam vermelhos. Seus cílios estavam juntos em pequenos aglomerados, sua respiração estava levemente trêmula.
Naquela luz, sua pele perolada se tornava um pouco mais pálida. Os pontos vermelhos e irritados não diminuíam em nada a beleza do rosto que lhe lembrava as porcelanas usadas nos palácios. Os cabelos, pouco controlados, se ajuntavam atrás das orelhas, mantendo o rosto livre.
—Nakanaide kudasai — em um sussurro, de forma que mais se ouviu o ar saindo de sua boca do que o timbre da voz em si, como que em um pedido cansado, falou enquanto franziu o cenho.
Ergueu a mão direita. Enrolada em meio a seus dedos, a fita branca de cetim se pendurava. Seu coração palpitante não lhe deixou mover mais um músculo sequer, esperando uma reação dela. Não deveria colocar um dedo sequer para dentro da carruagem, eis que não queria ofendê-la ou desrespeitar seu espaço de forma alguma.
Em um movimento suave ela segurou a fita, puxando-a para si, fazendo-a se desvencilhar e correr veloz pela pele das pontas dos dedos dele, antes de deixar de tocá-los. Assim que se foi, ele encostou o polegar ao dedo indicador, como se tentasse sentir qualquer eco ou memória que pudesse ter ficado.
Ambos recolheram as mãos ao passo em que ela falou:
— Já faz um tempo que a perdi — fez uma breve pausa, analisando. — Parece que você sempre está por perto.
— É a minha missão...
— Não foi uma reclamação — ela ergueu os olhos de volta para ele, e agora já estavam cheios de lágrimas novamente. Ela parecia tão frágil com aquelas gotas prestes a despencar sem aviso algum ou por qualquer movimento brusco, assim como ela mesma. — Obrigada por não me deixar sozinha.
Mais uma vez, ela o ouviu soltar o ar pelas narinas, conforme um leve sorriso surgiu no rosto de ambos. E, de repente, o peso do mundo em seus ombros pareceu um fardo leve. E todo o barulho do universo se resumiu ao estalar da fogueira e aos sininhos de natal que as estrelas balançavam muito longe dali, assistindo com expectativa aquele diálogo.
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