Capítulo 4
Este capítulo é dedicado ao maior primo que você respeita, por ter sido a primeira pessoa a votar e comentar nessa mais nova empreitada! ESSE É PRA VOCÊ, KAL!
Bushido (武士道) literalmente, "caminho do guerreiro", é um manual e modo de vida para os Samurai. Ele possui 7 grandes virtudes; dentre elas:
忠
[Chuu: Dever e lealdade]
Ao fim do dia, a igreja estava cheia. O velório da Senhora Carpentier não teve um tratamento diferenciado: em meio a vários corpos em caixões dos mais variados tamanhos, pessoas da cidade inteira choravam.
A onna-bugeisha Yuri preferiu ficar longe de todo aquele caos da igreja. Ainda que se compadecesse daquelas pessoas, não achava apropriado ocupar espaço dos familiares e amigos que realmente precisavam estar ali.
Observou com pesar dois soldados franceses balançarem um dos últimos corpos não identificados e o arremessarem para uma pilha de cadáveres em cima de uma carroça de madeira. Ao sinal do superior, os barris de álcool foram abertos. Os soldados maiores erguiam os barris alto, despejando o conteúdo de cheiro forte para cima dos corpos.
Alguns minutos depois, o cheiro de álcool era insuportável ali. Logo em seguida, com outro sinal, tochas foram acesas e espalhadas para os soldados, que as encostaram nos corpos.
E o fogo subiu. Consumindo os cadáveres empilhados como se não tivessem histórias, como se não houvesse ninguém os esperando, como se nunca tivessem realmente vivido, como se não fossem dignos de uma despedida humana.
Yuri procurou com os olhos o irmão mais novo, encontrando-o próximo à igreja. Havia desviado o olhar das piras, mas via que seu rosto se contorcia com o forte cheiro de carne queimando.
Aurora saiu da igreja. Havia consolado quantas pessoas pôde, além de abraçar por um bom tempo a amiga Joana; mas ainda era humana. Ainda precisava respirar e fazer o que havia evitado até então: chorar. Não queria chorar na frente dos que tanto haviam perdido, queria ser forte por e para eles. Queria lhes dar palavras de conforto e esperança... mas a sua dor também precisava ser sentida.
Caminhou em passos apressados para fora da cidade, rumo à floresta. Assim que seus pés pisaram nas primeiras folhas e ela já não podia ouvir mais nenhum choro, acelerou os passos até correr o mais rápido que podia.
Os pulmões queimando, o coração acelerado, os pensamentos a mil: não demorou para que as primeiras lágrimas saíssem. O vestido azul claro vez ou outra se enrolava em seus pés, fato que ela não dava atenção.
No meio do caminho, a fita branca que envolvia seu cabelo meio-preso caiu, fato que também não recebeu atenção. Naquele momento, a fita e o vestido eram as menores preocupações possíveis.
Assim que chegou à uma pequena clareira, freou subitamente. Parou no meio da grama, cercada por uma barreira circular de árvores. A luz que descia filtrada em finos caminhos já não lhe parecia tão bonita; a grama verde repleta de flores já não lhe chamava a atenção; as flores em meio à grama, em seus mais variados tons parecidos com os do céu em seus diferentes momentos também pareciam meros detalhes.
—Deus — falou entre um suspiro e outro. — Por que você deixou isso acontecer? — levou as mãos ao rosto, apertando os olhos com força. — Tem mães sem filhos, tem filhos sem mães — conforme falava mais difícil era continuar a tarefa, mais seu choro tomava corpo, mais sua voz perdia espaço. — Eu sei o quanto dói — apontou para si mesma. — Eu sei. Ninguém mais precisa saber — levou as mãos aos cabelos, apertando-os na altura da raiz. — Por que essas coisas aconteceram? Por que você deixou acontecer?
Uma leve brisa amiga, facilmente reconhecível, tocou-lhe o rosto molhado. Em uma epifania, lembrou-se da caixa que deixava ali. Procurou a árvore marcada com um "A" no tronco. Abaixo dela, cavou com as mãos até encontrar uma caixa metálica. Tirou-a com uma pressa irreconhecível.
Abrindo, puxou um livro sem nome e de capa preta. Secou os olhos, permitindo-se ver o necessário, sem se importar com a terra nas mãos. Abriu o livro em uma parte aleatória, procurando uma explicação, um consolo ou qualquer outra coisa.
"Descanse no Senhor
e aguarde por ele com paciência;
não se aborreça com o sucesso dos outros
nem com aqueles que maquinam o mal.
Evite a ira e rejeite a fúria;
não se irrite: isso só leva ao mal.
Pois os maus serão eliminados,
mas os que esperam no Senhor
receberão a terra por herança."
—Não me irritar? A mãe da minha amiga está morta. Mães da cidade inteira estão mortas. Esperar? Os maus serão eliminados?! — Fechou a Bíblia, em um ato de frustração. — Senhora Carpentier não foi boa ou justa o bastante? Ela tinha um ótimo coração, ela era uma ótima mulher. Não falo sobre a cidade inteira, embora não seja menos triste. Mas eu a conhecia. Ela era boa, ela era sim! Ela não merecia nada disso! Nem Joana!
Cega pela mágoa, deixando-se levar pela tristeza, frustrou-se e chateou-se com seu Pai.
Você nunca leu sobre Estevão? — foi o que foi soprado ao seu coração. — Acaso você não tem conversado comigo e lido a Palavra por toda a sua vida? Por caso foram os grandes feitos, atos e justiça de João Batista justificativa para o livrar de ser decapitado? As obras e a justiça de alguém o salvariam? Acaso alguém é bom o suficiente para ser merecedor de ser salvo? Por acaso, não mais importante do que essa vida, é a vida verdadeira? A vida com Cristo? Não é isso que importa?
Aurora se ajoelhou, encostando o rosto e as mãos na grama e na terra. Os tremores do choro pareciam dominá-la, a mágoa agora parecia perder espaço para a culpa de suas dúvidas.
Você não sabe que a justiça sempre será feita? Talvez não a terrena e falha, mas da minha jamais existiu e nem existirá um que escapará. E não é a minha justiça maior que a terrena? Acaso não sou Eu o defensor dos desamparados?
— Perdão — levou novamente as mãos aos cabelos, apertando-os. — Perdão pelo meu descontrole, eu... — desabou novamente em choro.
Sabia que seu Pai jamais a culparia por estar triste, por estar magoada, por ser humana. Sabia que seu irmão Jesus havia sentido tudo isso na carne, sabia que ele entendia, conhecia bem o Pai que tinha. Mas naquele momento a dor era tão grande, a frustração era tão forte e seu ego estava tão machucado que não conseguia ver além do último. De repente, tudo que havia crido uma vida inteira havia sumido por alguns segundos de pânico. De repente, tudo havia virado fumaça.
Estava envergonhada. Havia entendido a mensagem, mas a dor não sumiria assim tão fácil: continuava doendo, queimando: continuava horrível. Mas ela havia sido lembrada pelo Espírito amigo que, apesar do fato de ela não conseguir ver além daquela dor enorme como uma montanha, existia alguém que vê tudo.
— Aquieta minh' alma... faz meu coração ouvir tua voz... me leva para perto, só assim eu não me sinto só... — murmurou entre lágrimas.
***
Alguns samurais que conseguiam falar a língua daquele país receberam uma missão especial: cada um promoveria especial proteção às famílias dos nobres e sacerdotes locais. No caso dos sacerdotes, eram apenas duas famílias: Carpentier e Fontaine. Um samurai ficou encarregado de proteger os Carpentier — e recebeu punição quando a mãe da família levou um tiro no meio das costas, levando-a à morte. Então Yuri, uma das únicas guerreiras ali, assumiu o posto.
O samurai que havia sido designado para proteger a família Fontaine era o irmão mais novo de Yuri, e ele cumpria seu dever lealmente, mas, naquele momento, de longe. Assim que avistou a filha mais velha saindo da igreja, sabia que ela lhe apareceria com algo imprevisível.
Só piorou quando ela saiu da área civilizada e começou a correr como louca por uma floresta que poderia ter inimigos. Gritar não era uma opção, tampouco alcançá-la e segurar sua boca para que depois ela o complicasse perante seus superiores. Era perigoso demais se aproximar, mas não poderia deixá-la sozinha: preferiu seguir de longe.
Viu o exato momento em que a fita branca que segurava seu cabelo caiu, tremulando para um lado e depois para o outro, descendo em perfeitas ondas até tocar a vegetação verde que lhe passava os tornozelos. Contudo, ele a segurou antes que tocasse a terra.
Parou por um segundo ou dois, erguendo a fita delicada até a altura do rosto e enrolando-a entre os dedos, dando um suspiro cansado. Queria colocar na mente que estava cansado de segui-la por seus caminhos incertos, que estava preocupado em não conseguir concluir sua missão com êxito — mas ele sabia que não era por isso que estava inquieto. O motivo certeiro, contudo, não se deixaria sequer chegar perto de cogitar a ideia de talvez admitir.
Caminhou lentamente em meio às árvores até avistá-la na clareira. Parecia inconsolável, chorando e falando sozinha. No início, chegou a procurar à sua volta quem era seu ouvinte, mas não encontrou ninguém. Intrigado com seu afinco no desabafo, aproximou-se, escondendo-se apenas atrás de uma árvore. Observou-a desenterrar uma caixa e tirar de lá um livro.
O que de tão forte estaria escrito naquele livro para que ela desabasse da forma que fez a seguir? Com o rosto em terra, chorando e pedindo perdão repetidas vezes, tão frágil como uma taça de cristal.
Com quem ela estava falando? Estava falando sozinha? Estava louca?
Em determinado momento, a pele dele foi tocada por uma leve brisa amiga. Imediatamente, uma sensação de consolo e calmaria lhe acometeu. Um arrepio breve e leve pareceu desacelerar o sangue em suas veias e o quão rápido seu coração batia. Seus pensamentos pareceram ficar limpos por alguns segundos — segundos esses em que ele se permitiu fechar os olhos.
Quando os abriu, a luz filtrada das árvores próximas de Aurora parecia trazer mais do que apenas luminosidade: parecia trazer também conforto. Os sons da floresta pareceram mais altos do que seus pensamentos: os pássaros pareciam mais felizes do que todos os humanos e cantavam como se não houvesse amanhã. O clima ameno parecia confortável para deitar-se ali mesmo e deixar o tempo passar, apenas sentindo seu coração bater.
Soltou um suspiro longo, encostando-se na árvore à sua frente. Tudo parecia tão calmo ali, tão leve, confortável. Não sabia que tipo de presença ele estava sentindo, mas era algo que não só estava ao seu redor: parecia também estar dentro dele, fazendo-o ver e ouvir diferente as mesmas coisas que já havia visto ou ouvido.
Abaixou os olhos para a fita enrolada em seus dedos. O cetim branco era agradável ao toque e deslizava por seus dedos, como parecia ser a textura dos cabelos soltos da moça no centro da clareira. Os fios castanhos lhe cobriam o rosto choroso como que propositalmente, como se soubesse que precisavam proteger a moça de olhares indevidos. Agachou-se, ficando da mesma altura dela.
A quem ela pedia perdão? Quem era merecedor daquela postura? Que livro era aquele? Encheu-se de uma curiosidade que lhe acelerou o coração mais uma vez.
Quando ela se levantou, parecendo se recompor, ele permaneceu imóvel. Observou-a guardar o livro na caixa metálica e enterrá-la, andando em passos lentos na direção da cidade.
Chegou a cogitar a ideia de desenterrar a caixa para satisfazer sua curiosidade, mas o senso de responsabilidade falou mais alto: precisava proteger aquela moça estranha e imprevisível de toda e qualquer ameaça.
Ele deveria proteger aquela família à todo custo; deveria seguir Aurora para a cidade. Colocou a fita de cetim a salvo dentro de sua armadura. Pondo-se a seguir Aurora de longe, mas sem perdê-la de vista, caminhou até a cidade.
Ele se perguntou se descobriria com quem ela tanto falava.
Se descobriria de onde veio aquela sensação tão boa.
Bạn đang đọc truyện trên: Truyen247.Pro