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Capítulo 24

"Portanto, eu lhes digo: tudo o que vocês pedirem em oração, creiam que já o receberam, e assim lhes sucederá."

— Marcos 11:24


Quando a comida já estava pronta e todos estavam em volta da mesa, Aurora surgiu da cozinha, trazendo o garoto pela mão. Já estava vestido com um dos ternos infantis, mas continuava com fome.

— Beau? — Océane o chamou assim que notou sua presença.

— Vocês se conhecem? — Aurora olhou para o garoto e depois para ela.

— É filho de Madeleine! — Océane explicou, então se voltou para ele: — Onde está sua mãe, Beau? — O garoto deu de ombros, desviando os olhos para o chão. Então Océane continuou: — Ela deve estar preocupada com você!

— Ela saiu — Beau ergueu os olhos —, foi comprar comida. Mas eu fiquei com fome, vim procurar ela.

— Madeleine tem outro emprego? — Aurora olhou para Océane, procurando respostas.

Em resposta, a tia apenas asseverou o olhar, logo em seguida o desviou. Balançou a cabeça negativamente, antes de fechar os olhos e dar um longo suspiro.

— Que tal você ficar hoje com a gente aqui, Beau? — Océane forçou um sorriso para o menino, o olhar vagamente perdido. — Eu aviso sua mãe.

O garoto assentiu, e todos se assentaram à mesa, ainda que sem entender a situação. Vez ou outra trocavam olhares confusos — e assim permaneceram até o fim da refeição. Assim que Aurora passou a tirar os pratos da mesa, Océane se apressou em buscar um casaco e descer as escadas.

Atraídas pela movimentação, Aurora e Yuri a seguiram até o térreo, onde Yuri chamou Océane logo que ela abriu a porta:

— Você sabe onde a mãe dele está?

La Pomme — Océane falou enquanto amarrava a faixa do casaco sobre a própria cintura. — Não me sigam — e fechou a porta, passando o olhar severo sobre ambas.

— O que é isso? — Yuri voltou o olhar para Aurora, bem acima dela nas escadas.

— Um prostíbulo — Aurora respondeu baixo, os olhos perdidos em algum ponto do chão. Logo em seguida se virou, subindo as escadas afim de terminar a tarefa. Foi até a mesa, pegando três copos. Deu meia-volta, voltou-se para a cozinha e, passando na frente da escada, falou: — Não vá, Yuri.

Yuri suspirou exasperada e voltou para o andar de cima, pondo-se a ajudar Aurora.

— A fome deve estar muito ruim — Yuri soltou, entre uma ida e outra à cozinha —. Sabe, lá na parte pobre da cidade. — Aurora apenas concordou com um balançar de cabeça, quando se cruzaram. — Se a Madeleine não tiver o que comer, acha que ela pode vir para cá?

Aurora concordou novamente com um balançar de cabeça, dessa vez se permitindo dar um leve sorriso. Assim que pegou a bandeja de temperos da mesa e foi até a cozinha, terminando de tirar a mesa, Yuri a seguiu com o olhar. Quando ela abriu o armário, Yuri pôde ver que tinham menos da metade de uma prateleira de comida.

Engoliu em seco quando ergueu os olhos, para a prateleira superior, e pôde ver uma pequena teia de aranha. Suspirou preocupada e fechou os olhos. Sentou-se na mesa, já limpa, e esperou Aurora voltar.

Sentadas na mesa, vendo o ponteiro do relógio mudar de direção, esperaram até Océane abrir a porta da loja. Assim que Madeleine pôs os pés naquele andar, seguida de Océane, as moças ergueram os olhares para encarar as recém-chegadas.

Os olhos fundos, as olheiras de cansaço. O vestido sujo, a expressão cansada no rosto de Madeleine.

"A fome está muito ruim", Aurora pensou. "Muito pior do que eu imaginava".

Naquela noite, para economizar a lenha, todos se deitaram ao redor da lareira da sala. Espalhados pelo tapete, na frente da lareira acesa, os nove adormeceram.

Quando Aurora acordou, no dia seguinte, o fogo havia apagado há muito tempo. O chão estava frio, e a lenha preta na lareira já não estava mais quente.

Aurora se sentou, apoiando-se com as mãos espalmadas no chão. A madeira gelada sob suas mãos foi pouco receptiva, mas não menos do que o céu cinza lá fora.

Encolheu-se, abraçando as pernas e tentando contar quanto tempo tinham antes que a comida terminasse — não eram muitos dias. Engoliu em seco, lembrando do sonho que tivera.

Havia sido como todos os outros sonhos daquele mês: com Tadashi; era sempre Tadashi. Ela havia ensaiado dezenas de vezes o que diria se o visse de novo, e como agiria. Também havia visitado praticamente toda a Europa com ele em sonho. E rido das mesmas memórias trinta vezes. E orado a mesma oração centenas de vezes.

Levantou-se e se pôs a fazer o almoço, vez que já passava das dez (e ela era a única acordada). Com Beau e Madeleine a mais, ela usou mais de todas as coisas.

Naquele almoço, as beterrabas e as cenouras acabaram. Agora, tudo que restava nos armários era arroz, temperos, chás e pão. Conforme ela aprontava a refeição, um nó se formou em sua garganta e ela se perguntou quantas mais faria.

"Deus, não se esqueça de nós, por favor", parou de cozinhar e levou as mãos ao rosto, tentando se acalmar.

— Querida, vá por a mesa — uma voz a puxou para a realidade, fazendo-a dar um pulo e olhar para trás. — Eu termino — com os olhos, encontrou Océane parada na porta a observando com olhar de pena.

Assim que passou pela porta, Madeleine a parou:

— Aurora, você não precisa cozinhar para mim, só para Beau está bom. A comida vai acabar rápido demais e...

— Está tudo bem — Aurora a cortou com voz mansa. — Você não vai passar fome, Made.

"Obrigada" ela movimentou os lábios, entregando-se a um choro forte, enquanto se apoiou na parede e escondeu o rosto com as mãos.

Aurora passou os olhos pela sala, encontrando as crianças ainda dormindo e os adultos procurando economizar energia — ou simplesmente tristes. Suspirou pesado e começou a por os pratos na mesa, orando o tempo todo.

Assim que tudo ficou pronto, Frederic se dirigiu à mesa com uma Bíblia para o que provavelmente seria a última refeição propriamente dita antes que o caos se instalasse ali também.

Orou por um bom tempo, enquanto todos esperavam de pé. Depois abriu a Bíblia sem escolher o texto e leu em voz alta:

Elias, porém, lhe disse: "Não tenha medo. Vá para casa e faça o que disse. Mas primeiro faça um pequeno bolo com o que você tem e traga para mim, e depois faça algo para você e para o seu filho. Pois assim diz o Senhor, o Deus de Israel: 'A farinha na vasilha não se acabará e o azeite na botija não se secará até o dia em que o Senhor fizer chover sobre a terra' ". 1 Reis 17:13-14.

Um silêncio percorreu a sala por um instante, seguido de um longo suspiro de Frederic, e sua continuação:

— Deus não se esquecerá de nós — levou os olhos para as filhas: — não tenham medo, minhas filhas, não seria a primeira vez de Deus tirando seus filhos de situações assim. Ele sabe o que fazer, ele sabe do que precisamos. E sabe também até onde podemos aguentar. E nada terminará antes que todas as suas promessas a nós reveladas pelo Espírito Santo se cumpram. Não fiquem ansiosos, nem se desesperem pela falta. O Senhor nos aquecerá e nos cobrirá em todos os desertos.

— Amém — Aurora sussurrou.

Ele fez sinal para que dessem as mãos, então entoou em bom tom:

— Pai nosso que está nos céus, santificado seja o seu nome. Venha a nós o seu reino, seja feita a sua vontade assim na terra como nos céus. O pão nosso de cada dia nos dê hoje, perdoe as nossas dívidas assim como nós perdoamos a quem nos têm ofendido. Mas não nos deixe cair em tentação, e livre-nos do mal; pois seu é o reino, o poder e a glória para todo o sempre, amém.

Em seguida, todos se sentaram e comeram. Ao fim, Madeleine ajudou a tirar a mesa, procurando desconsertadamente fazer qualquer coisa para ajudar a família. Agradeceu mil vezes cada um e colocou Beau no colo, rumando à saída.

Aurora e Yuri a acompanharam, deixando o prédio por alguns minutos e fazendo-lhe companhia por algumas quadras. Quando já estavam perto o suficiente da casa de Made, despediram-se e deram meia-volta.

— Sabe, o Tadashi começou a falar algo sobre querer ser como o seu pai durante a guerra, e eu achei muito estranho — Yuri quebrou o silêncio entre as duas. — Agora eu entendo, porque eu também quero ser como ele. Ele... tem muita esperança. Parece ser menos difícil viver dentro da pele dele.

— Se chama "fé" — Aurora sorriu de leve. — É acreditar em Deus e confiar que ele nos dará o necessário e não se esquecerá de nós, ainda que não possamos ver nenhum sinal de esperança, ainda que pareça impossível. Não é só "ser positivo", é acreditar que somos amados por alguém que pode fazer o que quer e quando quer, que está em todos os lugares, que sabe tudo antes mesmo de acontecer.

— E como eu faço para ter fé?

— Exercitando-a e caminhando com Deus. Assim como todas as armas, ela vai sendo aperfeiçoada e afiada ao longo do tempo; não há atalho. Mas um pouquinho de fé já é um bom começo. — Aurora fez uma pausa. — Ah, teve uma citação da Bíblia que me ajudou. Eu repeti muitas vezes, quando a minha fé era tão pequena que me incomodava: "eu tenho fé, me ajude a ter mais fé".

— Eu tenho fé, me ajude a ter mais fé.

— Exato — Aurora sorriu.

Quando viraram a esquina, contudo, seu sorriso desapareceu. Arregalou os olhos, estupefata, conforme os mesmos se encheram de lágrimas enquanto seu cérebro processava o que via. Seu olhar direcionado para cima, para o topo do prédio turquesa onde vivia, atraiu a atenção de Yuri, que deixou o queixo cair ao ver o que a outra tanto contemplava.

Pendurado do terraço, um fino fio verde contorcido quase chegava à janela do terceiro andar.

Ambas partiram correndo e entraram na casa como furacões, batendo os pés nas escadas e atraindo a atenção de todos na casa. Conforme iam subindo os andares, os presentes na casa se juntavam à corrida, perguntando-as o que estava acontecendo, para onde iam — sem, contudo, obter respostas.

Quando Aurora terminou de subir as escadas para o terraço, suas pernas fraquejaram e ela se encolheu.

A horta havia frutificado, e todo o terraço estava verde. Havia legumes para todos os lados, e não só nas partes com terra. As plantas haviam crescido tanto que já não cabiam em seus caixotes, e se espalhavam pelo chão, e alguns ramos se penduravam para fora do terraço.

Não, não passariam fome. Jeová Jireh.

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