Capítulo 20
"A pedra que os construtores rejeitaram tornou-se a pedra angular; isso vem do Senhor, e é algo maravilhoso para nós."
— Salmos 118:22-23
Conforme os dias foram passando, mais longas e mais frequentes se tornaram as conversas entre Tadashi e Frederic. Aquilo não era algo estranho a Aurora, eis que já havia convivido com outros chamados discipulados.
Tadashi, sempre distante ou, quando perto, calado, parecia muito empolgado com a nova fase de sua vida, o que trazia bons sentimentos à moça. Ele estava vivendo o alvorecer de uma promessa, de uma missão, de um amor — e ela não iria perturbar isso.
Mas Tadashi não era o único calado ou distante. Yuri, inquieta, continuava treinando taekwondo dia após dia, buscando preparo para uma batalha que nunca iria acontecer — ou ecos de uma época que ela desejava ter de volta.
Foi num dia desses que Aurora fingiu não ter visto que ela havia saído e a seguiu porta afora. Chegou sorrateiramente, como que soprada por uma brisa leve dentro da própria cabeça, e parou ao lado dela. Ali, além dos muros da cidade, não tinha alvoroço: era somente Yuri, o vento, os pássaros e...
— Fontaine! — Yuri deu um sobressalto, externando o susto. — Por que você é tão silenciosa? — Resmungou — parece uma assombração.
— De mal humor? — ultrapassou-a, sentando-se próximo ao muro de pedras.
A japonesa apenas a deixou com a própria pergunta enquanto se questionava como ela havia descoberto seu local de refúgio. Teria que achar um novo, e rápido.
Aurora a observou treinar por poucos minutos, vendo-a simular movimentos e golpes. Por fim, perguntou:
— Precisa de ajuda?
Yuri soltou o ar pelas narinas com um sorriso incrédulo. Sim, precisava. Mas não havia nada que aquela garota bem tratada, feminina, abastada e amada a pudesse ensinar ou ajudar com.
"É fácil para você, não é? É natural, você já nasceu assim. Você não sabe como é difícil para mim".
Os cantos da boca de Aurora, antes erguidos, desceram. Ah, sim. Então era por isso.
Aquele pensamento atingiu Aurora quando seu olhar se encontrou com o de Yuri, quase como se essa tivesse pensado alto demais. Mas sabia exatamente que aquele não havia sido o caso, conhecia aquela situação. E, olhando nos olhos de Yuri, soube que ela realmente havia pensado aquilo e que Alguém havia lhe revelado aquele pensamento.
A frase, que a atingiu com um baque, fez seus ombros caírem e suas sobrancelhas se curvarem.
Os últimos dias foram os melhores para alguns, mas os piores para outros. Enquanto um irmão Sakurai havia encontrado um motivo para viver após o exílio e a extinção de seu ofício, a outra continuava em constante crise existencial.
Então, sem futuro, propósito e companhia, era obrigada a assistir outra, sob o mesmo teto, ter tudo isso e sem o mínimo esforço. Até mesmo dentro da cabeça de Tadashi ela tinha mais espaço.
O coração de Aurora afundou. Yuri estava sozinha, magoada, se sentindo abandonada por tudo e por todos. Se sentia sem rumo, e aqueles pensamentos estavam começando a nascer em um coração cada vez mais apodrecido — não demoraria para começar a exalar seu odor de forma cada vez mais forte.
— Como você está, Yuri? — Levantou com um impulso, chegando mais perto.
— Bem — respondeu com escárnio e se virou para caminhar para longe.
— Não, Yuri — Aurora partiu e, após a contornar, parou à sua frente: — como você está? — Como não obteve resposta, tornou a insistir: — eu realmente quero saber. Como...
— Olha só — interrompeu —, Fontaine, essa não é uma boa hora. Eu não tenho mais casa, família, amigos e nem um emprego.
Aurora contorceu as sobrancelhas em confusão. Havia de admitir que Yuri realmente não tinha mais um emprego, mas discordava de todo o resto.
— Você ainda tem uma casa, é a que você dorme toda noite — Aurora falou um tanto quanto magoada. — E você tem todas as pessoas sob o teto dela. Se sangue é o que te incomoda, tem o Tadashi.
— O Tadashi — mal Aurora terminou de pronunciar o nome, Yuri começou sua resposta: — não lembra que eu existo. Você sabe que horas são? São quatro da tarde. É hora do treino diário de taekwondo, mas cadê ele? Se ele não fosse vir por ele mesmo, talvez pudesse vir por respeito a mim. Ele sabe como está sendo difícil.
Ah, sim. Yuri estava sozinha, magoada, se sentindo abandonada, sem perspectiva de futuro, com raiva e a ponto de estapear Tadashi. Não era estranho que estivesse tão alterada.
— Também está sendo difícil para ele — antes de tudo, Aurora anunciou e anotou mentalmente que precisaria falar com ele mais tarde sobre ter se distanciado tanto de Yuri. — Mas talvez vocês possam conversar e remanejar seus horários para fazerem mais coisas juntos.
— Você não está entendendo. Isso era quem nós éramos, era tudo que nós fazíamos. E agora simplesmente não existe mais. Antes era a única coisa, e agora nem prioridade é.
Então é claro que Aurora não entraria no mérito de como os discipulados eram tão mais importantes do que os treinos que, naquela altura, serviam apenas para nostalgia. E exercício físico.
Ainda que fosse verdade, Yuri não iria ouvir. Se ouvisse, explodiria ali mesmo e a situação apenas iria ficar mais complicada, o que poderia apenas dificultar o conhecimento da Verdade de forma ampla.
Ainda que fosse verdade, Yuri não conseguiria ouvir, porque não tinha o entendimento necessário e seu temperamento não estava acessível para correção e aprendizagem naquele momento.
Portanto, ainda que precisasse ouvir umas verdades, aquele não era o momento. Aquela não era a forma. A verdade, que precisa ser dita de forma e em momento sábios, não frutificaria ali. Por isso, Aurora preferiu não debater.
— Eu imagino que deve doer muito. Deve ser horrível, e eu sinto muito por tudo isso. Por tudo.
Yuri fixou o olhar no dela, mordendo a língua e suspirando, tentando represar dentro de si constantes ondas de emoção que arrebentavam e faziam seus olhos arderem.
— Você não tem ideia — forçou uma voz firme, o que naquela altura parecia difícil.
— Talvez, se você me falar, eu entenda.
Yuri desviou o olhar, sentando-se na grama e escondendo o rosto. Aurora imaginou quão grande era o peso dos sentimentos negativos somados dentro dela para que uma mulher sempre tão forte quanto uma muralha despencasse de forma tão rápida.
— Você já sentiu como se... ganhar controle dos seus pensamentos fosse como controlar as ondas do mar? — apertou os dentes e pressionou o punho fechado contra a grama macia, mantendo o olhar desviado da moça. — Eu sempre consegui controlar e sufocar tudo dentro de mim, foi isso que me permitiu ser guerreira por profissão e chegar até aqui viva. Mas eu não consigo controlar esses sentimentos ridículos.
— Esses sentimentos não são ridículos, se doem — Aurora se sentou ao seu lado.
— São sim — Yuri finalmente olhou para ela. Para alguém que já havia levado tapas no rosto em treinos para guerra, chorar por se sentir sozinha parecia uma dor ridícula e que somente adolescentes e pessoas ricas ou sem vivência sentem. Então por que é que doía tanto? Por que é que lhe dilacerava o peito?
— Os seus sentimentos não são ridículos. Nenhum deles, ainda que você mesma pense isso. — Aurora respondeu séria. — Tentar suprimir e negar uma dor não torna você mais forte. Enfrentá-la, sim. — Aurora fez uma breve pausa, deixando-a processar aquelas palavras. — O que é que você sente de verdade, Yuri?
— Raiva — foi a primeira coisa que enumerou e olhou para cima, apertando os lábios, antes de levantar os joelhos e apoiar a testa neles. — Saudade de casa, saudade de falar japonês, saudado meu pai e do meu irmão falando comigo, saudade de andar na rua e as pessoas saberem quem eu sou e me respeitarem por isso, do sashimi da minha tia e das cerejeiras — soluçou, dando-se um tempo para respirar. — Raiva do Tadashi, aquele traíra. Por que ele não fala mais comigo? Encontrou uma família melhor? — Levantou o rosto, encarando Aurora com certa raiva. — Eu estou sozinha aqui, ele não. Mas eu não estou amargurada — secou as lágrimas velozmente. — Nem estou com inveja, eu sou forte e guerreira demais para isso. Eu...
Aurora interrompeu sua auto-sabotagem encostando a mão levemente no ombro dela. Parecendo ter entendido o recado de que não precisava se justificar, de que a dor precisaria ser sentida (para poder ser curada), voltou a contorcer o rosto e continuou:
— E eu tenho raiva de você. Você tem tudo e o seu cabelo é brilhoso. E você fala coisas que fazem sentido e que ajudam, o que só me deixa frustrada, porque eu me sinto bem, mas continuo tendo raiva de você. Como é que você fala essas coisas? E como é que você chegou aqui?
Aurora ergueu novamente os cantos da boca sem tirar a mão do ombro de Yuri.
— Não sou eu quem tem as ideias. Não faço a mensagem, sou só a mensageira. Eu fui enviada aqui, eu falei coisas que outro alguém me mandou.
— Ah, o seu pai?
— O meu Aba. Foi ele quem me disse que você precisava disso. Então você não precisa ficar com medo de falar ou de viver isso aqui, porque não foi uma ideia minha. Foi algo que Alguém que nunca erra desejou para que você se livrasse dessa dor bem antes de você saber que ela estava aí.
— Ah, o Deus — ela voltou a olhar para baixo, erguendo as sobrancelhas. Abriu a boca para dizer "me desculpe, mas eu não acho que Ele exista", mas congelou ao lembrar do olhar de Aurora minutos antes.
Aquele olhar de quando Yuri a insultou mentalmente. Aquele olhar de quem ouviu. E, logo em seguida, reagiu com paciência. Querendo saber por que ela estava chateada.
Aurora não era uma divindade, e isso era tão óbvio. Como, então, aquelas coisas aconteciam por ela e ao redor dela?
Yuri fechou a boca, sentindo seu coração acelerar. Ainda não acreditava naquele Deus, mas não poderia negar o que acabara de ver e ouvir com o próprio corpo.
Talvez fosse o deus de Yuri, talvez fosse aquilo que chamam de telepatia, talvez fosse uma função do cérebro que os cientistas só iriam descobrir dali a 400 anos.
Poderia ser muita coisa. Mas por que, então, seu coração acelerava quando a ideia de cogitar a existência daquele Deus a atingia? Não só acelerava, mas esquentava. Como se queimasse.
Yuri voltou a olhar para Aurora. Quase tudo em seu corpo rejeitava aquele Deus. E se gostasse dele e abandonasse o deus de seu país, de sua família? Nem mesmo aquele eco lhe restaria? Não restaria nada de sua identidade? Aquilo lhe soava errado em tantos níveis diferentes.
Então por que é que...
Um soluço de choro a atingiu.
Levou as mãos à testa ao passo em que voltou a esconder o rosto entre os joelhos, iniciando um choro convulsivo e pouco se importando com a outra presença ali, que tirou a mão de seu ombro.
E que calor era aquele dentro do peito, e que...
Sentiu os braços de Aurora a rodearem, puxando-a para um abraço. Foi então que passou a chorar alto e agarrou o tecido do vestido da outra, em um abraço desesperado.
Doía tanto. Tudo doía tanto. Seu corpo todo, sua mente toda. Doía tanto que poderia morrer. Doía mais que tudo. Sentia saudade, sentia tanta saudade. Tinha um buraco dentro dela, e ela parecia finalmente estar olhando para o abismo abaixo e tendo dimensão de sua profundidade. Era horrível. Deus, como era horrível.
"Mas o Senhor é justo e me castigou,
pois eu me revoltei contra os seus mandamentos.
Todos os povos, escutem!
Vejam a minha dor!
As minhas moças e os meus moços foram levados para longe como prisioneiros.
Pedi ajuda aos meus aliados,
mas eles me traíram.
Os sacerdotes e as autoridades morreram nas minhas ruas,
enquanto procuravam comida
para poder continuar a viver.
Vê, ó Senhor, a minha aflição;
estou profundamente perturbada!
A dor aperta o meu coração
quando penso que me revoltei contra ti.
Há assassinatos nas ruas,
e até dentro das casas há mortes.
Ó Deus, ouve os meus gemidos,
pois não há ninguém que me console.
Todos os meus inimigos sabem da minha desgraça
e ficam contentes porque tu me fizeste sofrer.
Faze com que venha o dia que prometeste,
para que os meus inimigos sofram tanto quanto eu.
Condena-os por causa de todas as suas maldades,
castiga-os como me castigaste por causa dos meus pecados.
Eu não paro de gemer,
e o meu coração está doente."
— Lamentações 1:18-22
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