Capítulo 16
"Porque melhor é que padeçais fazendo bem (se a vontade de Deus assim o quer), do que fazendo mal."
— 1 Pedro 3:17
Já era próximo do meio-dia quando Aurora fez uma pausa. Talvez fazer trabalho braçal sob o sol a pino enquanto não havia ingerido nada além de água pelas últimas 24 horas não tivesse sido a melhor ideia que ela já havia tido.
Um pouco sem fôlego, avisou à irmã que faria uma pausa rápida e desceu até a cozinha, pegando um copo de água e o bebendo devagar para que não lhe causasse dor quando atingisse estômago — o que não ajudou muito.
Respirou fundo e, em passos automáticos, caminhou escadas abaixo, passando direto pela porta da loja, saindo para a rua e escorando-se na parede turquesa. Fechou os olhos e respirou fundo, logo em seguida os abrindo para se perguntar o que, em sã consciência, estava fazendo ali.
Já deveria ser quase meio-dia, ou seja, era quase hora de entregar o jejum. Precisava orar, então o que estava fazendo na calçada? Por que seus pés a haviam levado ali, para início de conversa?
Com um impulso, desencostou-se da parede e fez menção de se virar para entrar, mas estagnou no lugar. Vinha caminhando sério em sua direção François, amigo de seu pai.
Olhou para baixo, encarando o vestido sujo de terra e pensando o quão suada e descabelada estaria naquele momento. Deu um sorriso amarelo e acenou de leve para homem que parecia ter algo muito sério para lhe falar. Ele continuou caminhando até ela e, sem alterar a expressão facial, parou para dizer:
— Há momento para tudo debaixo do céu, e é tempo de espera. Espere.
Assim que ele terminou de dizer aquelas palavras, Aurora pôde ouvir o longínquo badalar do sino anunciando que já era chegado o meio-dia. O tempo de jejum havia acabado.
Ela nada respondeu. Os lábios entreabertos, os olhos desviados para o chão, o sentimento de leve tontura, o peso na parte inferior da cabeça. Nem sequer pensou em perguntar a François o motivo de ele não estar com os outros homens em batalha, muito menos pensou em o agradecer ou se despedir. Respondeu apenas com um maneio positivo de cabeça.
Ambos sabiam o que havia acontecido ali, então ele se despediu brevemente e seguiu seu caminho, deixando-a com seus pensamentos.
Então não era "sim" e nem "não". Era "espere".
Atônita, guiou-se para dentro da loja, ainda sem total equilíbrio. Subiu para o quarto e fechou a porta, sentando-se no chão e começando a última oração daquele propósito. Com poucas e baixas palavras entregou o jejum, agradeceu pela resposta e pediu entendimento para interpretá-la.
Ela sabia que Deus não dá minúcias de seus planos para as pessoas. Ele aponta a direção e as guia por ela, mas não fala quantos passos darão e de que lado o vento soprará — fora algumas necessárias ou misericordiosas exceções.
Ainda assim, não pôde se segurar de pensar, após o amém: "esperar o que? E por quanto tempo?". Quão falha se sentiu ao perceber que a resposta de Deus não havia sido o que seu coração desejava e que o mesmo estava frustrado.
— Certo — falou em um fio de voz. — Pai, você sabe que o meu coração queria outra resposta, e é inútil esconder de você que ele murchou um pouco. — Respirou fundo. — Me perdoa por essa falha, Pai. E... me ajude a superar isso, por favor. Me ajude a caminhar pela sua boa, agradável e perfeita vontade. Cura o meu coração humano e falho, por favor. Me ajude a receber de forma diferente suas respostas... — fez uma pausa enquanto pensava se ainda queria falar mais. Concluindo que sim, completou: — Mas por favor, me conforte... me ajude a amar a sua vontade, ainda que eu não a entenda.
Ainda que desanimada se levantou, saindo do quarto e subindo até o terraço. Chamou Marie Louise para o almoço e voltaram ao segundo andar para lavar novamente as mãos. Foi ainda suspirando que se sentou à mesa com Marie Claire, Océane e Marie Louise. Foi a irmã mais nova que, percebendo o semblante da moça, perguntou:
— Tudo bem, Aurora?
— Vai ficar, Claire — forçou-se a dar um pequeno sorriso. — Eu só preciso esperar.
— Pelo o quê? — A criança prosseguiu.
Aquela situação toda era tão complicada. Por saber que não poderia falar tudo, naquele momento, para a irmã; por saber que a cabecinha de Claire não iria conseguir entender somente com as informações que Aurora poderia dar... informações sobre amor, paixão, frustração, guerra e mundo espiritual...
Por amor, escolheu não responder a ela naquele momento.
— Nós saberemos quando acontecer — cresceu um sorriso sincero e amoroso no rosto.
Por um momento, perguntou a si mesma se era assim que Deus a via. Com limitações para entender o assunto, altas chances de confundir as informações e sem a experiência necessária para obter a resposta desejada e fazer com ela algo útil. A resposta para aquela pergunta ela tinha, e era positiva. Claro que em graus, contextos e formas diferentes, mas ainda assim as relações eram muitíssimo parecidas.
Almoçou mais feliz — e como aquela comida estava deliciosa. A primeira refeição após um jejum sempre é a melhor comida do mundo e sempre faz lembrar o quão mais gratas as pessoas deveriam ser por ter algo tão necessário presente em suas vidas. Contudo, por ser básico e terem se acostumado à sua presença, às vezes deixa de aparecer em suas orações.
Assim que terminaram o almoço, seguiram com os afazeres. Océane continuou na loja, ainda que naquele dia a clientela fosse pouca. As três irmãs subiram para o telhado, onde Marie Claire também quis ajudar.
E, ainda que vez ou outra os pensamentos de Aurora viajassem aos seus entes que estavam em batalha, optou por se manter presente naquele momento com as irmãs, fazendo tudo com atenção e cuidando das crianças que ajudavam.
Ainda que com pontos de aflição, aquele dia terminou calmo e suave como a terra molhada entre seus dedos e iluminado como o sol acima de sua cabeça. E que bela vista aquele telhado tinha. Aurora nem sequer sabia que ainda era possível apreciar vistas bonitas em tal estado avançado de guerra. Mas era. E como era.
***
O dia seguinte começou como todos os outros. Naquela manhã de 2 de setembro, Aurora usava o vestido rosa claro o qual vestia no primeiro dia em que viu Tadashi. Dentro daquela peça delicada e clara, ajudava a tia a reorganizar algumas fitas de cetim da loja na área de acessórios quando ouviu uma gritaria vindo da rua.
Levou os olhos para a vitrine afim de ver algumas crianças correndo numa mesma direção. Então ouviu alguém gritando da rua: "são eles, eles voltaram!".
Um arrepio percorreu seu corpo. Imediatamente largou o que fazia e foi até a porta, acelerando a velocidade a cada passo. Encontrou uma rua cheia de pessoas correndo numa mesma direção — a da entrada da cidade.
Sem nem olhar para trás, partiu em disparada na direção que as pessoas seguiam, orando para que encontrasse aqueles que ela amava inteiros. Ou pelo menos vivos. Céus, não sabia nem pelo o que orar naquele momento, tantos eram os pensamentos em sua mente.
Assim que chegou próximo ao portão da cidade, pôde ver Frederic entrando na cidade de mãos dadas com Louciene. Aurora sorriu aliviada, ao passo em que uma descarga de energia positiva lhe percorreu e seus olhos se encheram de lágrimas.
— Pai! Lou! — Gritou, chamando a atenção deles.
Correu mais rápido ainda na direção deles, alcançando-os em poucos segundos. Ambos a abraçaram apertado, suspirando em alívio e felicidade. Ambos estavam bem, inteiros, juntos e saudáveis.
— Acabou, minha filha — Frederic falou com a voz embargada em um choro que teimava a sair. — A guerra acabou.
Assim que o silêncio reinou entre os três, Aurora pôde ouvir, em meio às dezenas de vozes em conversas indistintas, uma voz familiar. Ergueu o olhar para ver, ao longe, os irmãos Sakurai próximos a um outro e mais velho samurai.
Yuri estava alguns metros afastada, olhando com preocupação para o irmão. Seus olhos estavam vermelhos em sinal de quem havia chorado, mas sua expressão atual era séria — ainda que dolorida. Assistia, como um soldado em prontidão, o irmão discutir com o outro samurai. Aurora demorou para o reconhecer, até que teve um relance de um dia passado. Ele era o líder que ela vira aquele dia no porto.
Tadashi estava claramente brigando com o samurai mais velho à sua frente. Ambas as vozes estavam alteradas, gritando em japonês e gesticulando, como se fossem se atacar a qualquer segundo.
Finalmente, Aurora prestou atenção nas feições das pessoas com uniforme militar à sua volta — estavam todos cabisbaixos. Ensanguentados, sentados nas ruas, chorando. Haviam poucos sorrisos.
— Nós perdemos? — Aurora se afastou do pai e da madrasta um pouco, encarando-os e reformulando a pergunta: — nós perdemos a guerra?
Ambos evitaram encará-la, desviando o olhar. Por entre seus rostos, Aurora olhou para um Tadashi transtornado além dos portões da cidade e na iminência de entrar em uma briga. Imediatamente se desvencilhou dos braços de Louciene e Frederic, contornando-os e caminhando na direção do samurai.
Quisera ela ter corrido. Quisera ela ter gritado. Quisera ela ter feito qualquer coisa para impedir o que aconteceu a seguir.
Os homens foram um para cima do outro, e tudo que Aurora pôde ouvir fora Tadashi gritar como em um protesto ou resistência em resposta a qualquer coisa que o outro acabara de dizer. Então o homem o empurrou pelos ombros, fazendo-o se desequilibrar e se curvar para a direita.
Yuri partiu na direção deles, finalmente intervindo na discussão. Mas os passos de Yuri não foram rápidos o suficiente, tampouco os de Aurora.
O homem desembainhou a katana e, antes que houvesse tempo para que um coração completasse uma batida, puxou a espada de cima para baixo, no caminho encontrando Tadashi — e levando sangue dele junto.
O mundo pareceu girar mais devagar por alguns segundos. Tudo pareceu mais lento por alguns segundos. Yuri correndo, o sangue de seu irmão respingando e escorrendo da espada alheia.
E Tadashi caindo imóvel no chão.
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