Capítulo 14
"Examinemos seriamente o que temos feito e voltemos para o Senhor. Abramos o nosso coração a Deus, que está no céu, e oremos assim:"
— Lamentações 3:40-41
É claro que o resto daquele dia não foi muito convidativo. Aurora passou duas horas sentada na mesa redonda da sala encarando o pequeno pedaço de papel. Imaginou se o pai já havia salvado vidas no caminho, se Yuri já a dedurara, se eles já haviam chegado.
— Aurora — a voz de Marie Louise a tirou de seus devaneios —, há quanto tempo você está aí?
— Não sei — respondeu desviando os olhos para o próprio pulso, evitando olhar para a irmã.
— Sabe — Marie Louise apareceu em seu campo de visão, fazendo-a elevar o olhar —, eu sei que só tenho onze, mas não sou idiota. Eu percebo as coisas — indicou, com os olhos, para o papel em sua mão. — Você gosta dele?
Aurora apenas voltou a olhar para o papel e respirou fundo enquanto pensava, sem pressa alguma, em uma forma de responder à pergunta. Como demorou a responder mais do que deveria a uma (em tese) simples pergunta, Marie prosseguiu:
— Então você também já sabe a resposta — Aurora ergueu o olhar para encontrar a irmã com um pequeno e acolhedor sorriso. — Se você fosse negar, teria dito "não" antes que eu terminasse a pergunta. — Aurora devolveu o pequeno sorriso. Às vezes falhava em perceber como algumas pessoas a conheciam tão bem. Marie esperou alguns segundos antes de continuar perguntando: — você já orou?
— Já, eu orei assim que eles saíram, mas vou orar de novo daqui a pouco.
— Não — Marie Louise voltou a falar —, já orou para saber se você deve continuar gostando dele?
Aquela pergunta lhe atingiu como um raio. Com tanta coisa passando por sua cabeça, com a guerra e tentar ser forte, não havia parado para pensar que seu coração também merecia atenção, ainda que no meio de tanta loucura. Não havia sequer lembrado disso. Havia simplesmente se deixado levar por um sentimento bom — o que, diga-se de passagem, era raro naqueles dias — e nem havia cogitado perguntar a Deus se o sentimento bom era certo.
Aurora olhou para a irmã como se tivesse visto uma cena triste. Entreabriu os lábios, fazendo menção de responder, apertando o papel em suas mãos, causando leve amasso no mesmo.
— Não... — falou em um fio de voz quase inaudível.
— Então — Marie Louise se virou de lado e ergueu a mão, apontando para a escada que dava para os quartos — é hora de fazer isso.
Aurora concordou lentamente com a cabeça. Por que teria pensado que seu coração teria menos valor naquelas circunstâncias?
E se a resposta fosse "não"? Então teria sido irresponsável consigo mesma e com Tadashi. Teria sido pedra de tropeço em seu próprio caminho e no dele, deixando que dois corações se quebrassem. Iria matar esperanças e sonhos de ambos os lados. Iria ter lágrimas. Mais uma cicatriz para a coleção deixada por aqueles dias.
Independente da resposta que receberia, tinha que admitir que havia sido imatura e irresponsável com o coração de outra pessoa. Ela sempre soube que não se deve alimentar um sentimento antes de perguntar se é da vontade de Deus. E o havia feito por descuido.
Havia usado ele, então?
E se a resposta, naquela altura do campeonato, fosse "não"? Como diria para ele quando voltasse de, céus, uma guerra? Precisando de apoio? Iria postergar? Iria ser covarde?
Ela não tinha o direito de fazer aquilo com ele.
Por um momento, se odiou.
— Quando... — Aurora se levantou devagar, empurrando a cadeira para debaixo da mesa e olhando para Marie — foi que você cresceu tanto? — repetiu as palavras que o pai havia lhe dito mais cedo.
— Em cada segundo que estive com você — Marie Louise repetiu as palavras que Aurora havia respondido ao pai mais cedo.
A irmã mais velha passou pela mais nova devagar, entrando no quarto e fechando a porta atrás de si. Voltou a dobrar o pedaço de papel e o guardou em uma pequena caixa, dentro do armário.
Sentou-se no chão, encostando as costas na porta e encolhendo os joelhos. Fechou os olhos, pensando por alguns minutos no que iria fazer. Tinha que fazer as coisas certas, caso contrário, iria se martirizar. Marcou as regras, o tempo, os horários. Pensou em tudo: cada regra, cada exceção. Repassou, repassou, repassou. Anotou, riscou, pensou. Repassou.
Por fim, ajoelhou-se ao lado da cama, posicionando as mãos sobre os joelhos.
— Pai, eu preciso conversar sério com você — um tanto sem ideia de por onde começar, falou: — e depois preciso te fazer uma pergunta. É uma pergunta muito séria. Para começo de conversa, eu fiz tudo errado — apertou um pouco do tecido do vestido com os dedos. — É um bolo de problemas, dentro e fora de mim.
Respirou fundo.
— Na verdade, essa oração tem um fim específico. Eu vou começar um jejum de vinte e quatro horas. Eu preciso te contar umas coisas, e preciso de uma resposta sua. Não que eu esteja te pressionando a fazer qualquer coisa... mas eu preciso da resposta, você já vai entender o porquê. Seja ela positiva ou negativa... mas, Pai, por favor, eu preciso da resposta.
Respirou fundo e apresentou a ideia. Iria consumir apenas água por vinte e quatro horas; orar de três em três horas, cada oração acompanhada de leitura bíblica escolhida por Deus; além de louvor.
Apresentada a ideia, desceu, fez um lanche rápido e subiu de volta para o quarto, fechando a porta e começando a primeira oração.
— Pai, primeiro eu preciso te pedir perdão pelos meus pecados. Perdão pelos meus erros, pelas minhas falhas, pelas minhas transgressões, por tudo que fiz que lhe deixou triste. Perdão por cada erro que passou despercebido, perdão por cada momento de rancor, de raiva e de ingratidão nos últimos dias. Perdão por ter sido tão negligente com assuntos tão importantes. Mas peço que, por favor, o Senhor ouça as minhas palavras, porque elas vêm do fundo do meu coração. — Fez uma pausa. — Eu irei começar agora o propósito. Pai, não há nada além de mim mesma que eu tenha para lhe dar. Além do meu tempo, além das minhas vontades. Por favor, ouça as minhas orações. Por favor, receba a minha adoração... amém. — Respirou fundo, preparando-se. — Há pouco mais de um mês, eu conheci uma pessoa.
Contou tudo com cada detalhe que podia se lembrar, sem filtros. Cada palavra que quis dizer e não disse, tudo o que disse, tudo o que viu, tudo o que ouviu. Tudo pelo qual passou, tudo que fez, tudo que gostaria ter feito. Tudo que pensou, ainda que se envergonhasse de tal pensamento. Contou tudo. Em certo momento se levantou, eis que os joelhos doíam. Sentou-se na cama para continuar contando. Depois andou pelo quarto.
— ... e até hoje eu não sei se ele conseguiu encontrar o pai daquela garotinha. — Quando seu monólogo completou uma hora, pediu uma pausa. Não queria ficar cansada e, por isso, perder algum detalhe. Tudo que deveria ser dito, ainda que minimamente tivesse a ver com o assunto, seria dito.
Alcançou a Bíblia, sentando-se na cama.
— Certo, agora a leitura — fechou os olhos, segurando firmemente a Bíblia. — Pai, irei começar a minha primeira leitura bíblica desse propósito — pausou. — Você conhece melhor que ninguém a Bíblia, e eu quero ler o que você quiser que eu leia. Seja uma repreensão, seja uma resposta, seja um conforto. Eu só quero saber o que você quer me falar, eu só quero conversar com você. Eu preciso conversar com você. Por favor, me guie. Por favor, me ajude a ler. Revele o que você quiser, faça saltar aos olhos. Leia comigo, pense comigo, esteja comigo, por favor. Amém.
Correu os dedos pelas páginas até abrir a Bíblia e, sem escolher, começar a ler o capítulo que havia recebido.
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